segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Mensalão, Legalidade, Ética – e a horda que gritava “crucifica-o”


Excelente texto.


A defesa diz que o mensalão simplesmente não existiu: teria sido um mega-boato com a intenção de derrubar ou pelo menos dificultar ao máximo a atuação do governo petista democraticamente eleito – e quem nasceu há mais de 50 anos e já viu esse filme inúmeras vezes, no Brasil e fora, sabe que é perfeitamente plausível: quem esteve por cima da carne seca nunca a largou sem briga.

Mas… e se tiver havido mesmo o tal mensalão? Será o caso de estar gritando “cadeia nesses ladrões”, como tenho visto fazerem algumas pessoas que, por seu envolvimento em outras causas, sei que são bem intencionadas?

Acho uma grande bobagem o ditado “mente vazia oficina do diabo”, mas boas intenções sem boa informação e reflexão consistente, essas com certeza o são. Foi justamente a LIUCAN - Legião dos Inocentes Úteis a Causas Nocivas – quem amplificou as ondas emitidas por uns poucos malévolos conscientes e possibilitou a ascensão de Hitler, Franco, Médici, Pinochet, Bush, bem como os assassinatos de um Allende, um Gandhi e outros (não muitos) que tenham chegado ao poder ou liderança apesar de serem do bem. O que vale inclusive, segundo os relatos existentes, para a crucificaçãomais famosa da história.
 
 
 
O que, afinal, teria sido o mensalão? Um esquema de apropriação de dinheiro público por parte de gente do governo e de seus aliados?

Nada disso! - segundo a própria acusação. Teria sido um esquema em que gente do governo teria pago - quer dizer: teria soltado dinheiro, não pego, e dinheiro de origem privada, não pública.

Detalhe: o dinheiro usado seria oriundo de atividades publicitárias. Esse tipo de atividade, embora não seja propriamente produtiva, tem altissimo valor de mercado justamente por sua capacidade mágica de fazer qualquer supérfluo ser comprado e gerar fortunas. Ou seja: publicidade é sempre uma máquina de criar valor onde não existia, e essa criação de valor é “natural” e perfeitamente legal no sistema capitalista. Mais: obviamente a publicidade não cria valor só para os outros, mas surfa junto na onda do valor que criou.
 
 
 
De modo que não é preciso perguntar de onde o dinheiro teria sido tirado: se há publicidade envolvida, não seria preciso tirá-lo ilegitimamente de nenhum lugar. A lógica do sistema possibilita concentrá-lo do que está difuso por aí como quem condensa água do ar, sem nenhuma contravenção.

Segundo, essa gente do governo teria pago a quem? Não a efetivos aliados – pois verdadeiros aliados jamais cobrariam – e sim a efetivos inimigos (mesmo que não declarados) para que estes suspendessem sua oposição-por-princípio, e possibilitassem ao governo a aprovação de determinados projetos.
 
 
 
E aí (terceiro passo) chegamos ao que mais importa: projetos de quê natureza? Ou: essa gente do governo teria pago para quê? Seriam projetos para se auto-beneficiarem, ou beneficiarem aliados, ou contrários de uma ou de outra maneira ao interesse público?

Aqui o que os acusadores costumam dizer é que o PT pagou para que outros não atrapalhassem o seu “projeto de poder” – e aí os inocentes e culpados úteis exclamam em coro “oh, que horror!” - como se todo partido não fosse, por natureza, legal e legitimamente, um projeto de poder!

Com o que permanecemos dentro do terceiro ponto: o PT queria o poder para quê? Pelo poder em si? Para beneficiar seus próprios membros e aliados?

Ora, os oito anos do governo Lula mostraram claro que não (e opto aqui por não entrar no governo Dilma para não introduzir novas variáveis que não pertencem ao caso): o que o PT conseguiu reunir de poder foi aplicado basicamente em duas frentes:

i. construir um espaço de autonomia para o Brasil na cena internacional (sem o qual tampouco haveria autonomia nas decisões internas), e
ii. iniciar um processo de distribuição mais equitativa, entre a população, do produto social nacional – a começar pela comida no prato.


Tenebrosos objetivos, não?
 
 
 
Sim, de fato tenebrosos: para as elites que dominaram este território por 502 anos produzindo desigualdade intencionalmente, para através dessa desigualdade concentrarem poder para – elas sim – usarem apenas em benefício próprio.

Ou seja: o PT teria pago, com dinheiro privado, para que o deixassem empregar o mandato recebido da população para seus fins legais e mais do que legítimos: para o bem coletivo dessa mesma população.

Mas, esperem aí: o PT já não havia recebido esse mandato legalmente? Por que ainda precisaria pagar para poder exercê-lo?
 
 
 
Por que – sim, meu caros: a lei foi feita pela mesma classe de senhores que criaram intencionalmente a desigualdade por 502 anos, e cheia de salvaguardas para que o efetivo poder não lhes escapasse das mãos.
 
 
 
E esses senhores sabiam que os projetos do PT empurrariam o país ainda que uns poucos passos no rumo da diminuição do seu poder senhorial.

Mas alguns deles teriam se mostrado dispostos a permitir alguns desses passos – provavelmente na fé de que não iriam muito longe mesmo – em troca de algumas pequenas compensações pessoais.

A esta altura não começa a ficar claro quem são os bandidos, quem foi ou pode ter sido vítima nessa história?
Se vocês pensam que vou dizer “o PT” ainda não estão apanhando todo o alcance da coisa: a vítima nesses casos é sempre o povo brasileiro - e o PT junto com ele, na medida em que estava tentando representar de fato os interesses desse povo, e não apenas nominalmente.

MAS COMPRAR VOTO É CRIME SEJA COMO FOR, NÃO?

Não vou negar: se tiver havido o mensalão, membros do PT terão de fato feito coisas previstas na lei como crimes:formalmente tratar-se-ia de corrupção ativa – ainda que estivessem pagando para que pessoas que atuam normalmente contra o interesse público atuassem uma vez em favor deste – isto é: pagando para alguém se tornar menos mau,precisamente o oposto do sentido da palavra “corromper”!
 
 
 
Uma coisa curiosa neste ponto é: há grandes resistências no próprio congresso quanto ao reconhecimento de culpa nos atos de corrupção ativa – por exemplo, inculpar o empresário que pagou para liberar algo de seu interesse, e não apenas o político ou funcionário que cobrou a propina. Mas no caso do mensalão – apenas neste! – praticamente toda a culpa e recriminação são dirigidas justamente à frente ativa da suposta corrupção; mal se mencionam os nomes da frente passiva, ou seja: dos que teriam pedido e/ou aceitado dinheiro para abrir caminhos, que em outros casos costumam ser os únicos apontados como criminosos.
 
 
 
Outra coisa curiosa é falar-se como se o PT tivesse inaugurado esse tipo de procedimento, quando todos sabem que no Brasil ele é tão antigo quanto a chegada do dinheiro ao território, além de estar presente em qualquer lugar do mundo onde exista esse sistema de poder oligárquico falsamente chamado de “democracia representativa”.
 
 
 
Por que, então, um esquema mais antigo que o Brasil começaria a ser denunciado justamente quando o PT assumiu o poder? Mais: por que a classe média e elites brasileiras, corruptas e corruptoras desde sempre, passaram a fazer campanhas “contra a corrupção no governo” justamente durante os governos que mais combateram a corrupção em toda a história do país? (Basta conferir os números da Polícia Federal para ver o quanto!)

Justamente porque, como já sugeri acima, o PT começou a usar o sistema pseudo-representativo como se fosse pra ser de verdade: em favor dos interesses coletivos da população.

Então precisa ser apeado do poder seja como for! E até mesmo os que teriam vendido seu voto ao PT devem ser punidos: afinal, teriam traído os interesses de sua própria classe (aclasse dominante) em troca de vantagenzinhas meramente pessoais, e ainda bastante modestas! – mas punidos fora dos holofotes, como também já apontei, pois afinal “no fundo eles ainda são dos nossos”…

Mas admito: nada disso nega o fato de que, se mensalão houve, os atos praticados por membros do PT terão sido ilegais.

Mas terão sido ilegítimos? Ou teriam sido ilegais no sentido em que era ilegal um escravo fugir do seu senhor, ou uma mulher ao domínio do seu marido tirânico?

DA ILEGALIDADE DE TODA REVOLUÇÃO

Embora eu não seja um trotskista – pois não sou -ista nenhum! – neste ponto quero invocar um conceito de Trotsky que me tem feito pensar bastante: ele teria dito que ética é uma questão bastante simples, do ponto de vista revolucionário: ético é tudo aquilo que serve à revolução, antiético tudo aquilo que vai contra ela.
 
 
 
Conheci essa ideia de Trotsky através da crítica que o ex-marxista (e em parte meta-marxista) Edgar Morin faz a ela: observa que Trotsky acabou sendo assassinado por alguém que acreditava piamente estar servindo à revolução com esse ato.

Não é uma crítica desnecessária: mostra que não podemos jamais atrelar todo nosso arsenal de critérios a uma única palavra, pois de uma palavra é muito fácil manipular o sentido conforme nos convém. Precisamos ser capazes de chegar à mesma avaliação partindo de pelo menos dois ou três princípios diferentes, que validem um ao outro.
 
 
 
Feita essa ressalva, podemos passar a considerar que tampouco o conceito de Trotsky é sem fundamento – desde que se olhe com cuidado o sentido da palavra “revolução”.
 
 
 
No sentido cru, revolução é simplesmente “revolver, revirar”, pôr em cima o que estava embaixo, e vice-versa. Marx a usa no sentido de a classe majoritária da sociedade – a que realiza os trabalhos mais físicos e concretos – vir a assumir o poder, o que seria uma absoluta novidade histórica, pois o poder sempre foi disputado entre classes que estavam mais acima – como a burguesia e a aristocracia feudal -, sem alterar a situação de submissão da classe trabalhadora (embora esta vez por outra seja chamada a ajudar nas lutas dos poderosos, seduzida com lemas como “liberdade, igualidade e fraternidade”, apenas para ser chutada escada abaixo assim que não seja mais necessário tê-la ao lado, como aconteceu na revolução burguesa francesa).

Mas Marx não era nenhum imbecil de imaginar que uma classe majoritária pudesse viver sentada em tronos dando ordens a uma pequena minoria de ex-burgueses e ex-nobres que passariam a fazer todo o trabalho pesado! Marx vê essa etapa (a tomada de poder pelo proletariado) apenas como estratégia para a destruição da estrutura de classes, e instauração final de uma sociedade sem classes que, em o sendo, poderia prescindir da instituição do Estado e do próprio dinheiro (o que é perfeitamente lógico, mas obviamente não cabe tentar demonstrar em um ou dois parágrafos!).

Ora, é só tendo em vista seu sentido final (a sociedade sem classes) que a palavra “revolução” ganha seu sentido pleno: trata-se da realização das mesmas velhas e boas igualdade, liberdade e fraternidade – só que realização universal, envolvendo a humanidade inteira, e não apenas as camadas dos “gentis-homens”, “filhos de algo”, “gente de bem(ns)” e que tais.
 
 
 
E o que realmente importa é chegar a esse resultado, e não que ele aconteça por este ou por aquele meio. Se Marx, no ponto em que estava, só conseguia enxergar como meio para isso uma “ditadura do proletariado”, não quer dizer que por toda a eternidade só possa existir esse meio. Não me proponho aqui a discutir que outros poderia haver, apenas insistir em que a tal ditadura do proletariado foi proposta como meio, e não fim. O fim é a sociedade sem nenhum tipo de exploração ou opressão.
 
 
 
Voltemos agora ao PT, no momento em que assumiu o poder federal. Seu objetivo era dar tantos passos quanto fossem possíveis, na conjuntura atual, na direção da universalização dos direitos. Diante de si tinha um muro multissecular de improbidade e interesses escusos. Brechas se ofereceram que, embora ilegais, permitiriam “colocar um pé na porta”, calçar posições a partir das quais depois seria possível prosseguir de modo, digamos, menos informal.

A outra opção seria desperdiçar o mandato que lhe havia sido concedido formalmente, sem realizar conquista nenhuma em favor da população. Ou alguém aqui acha que tinha alguma chance, em vez disso, convocar a população a defenestrar com as próprias mãos os corruptos do congresso? Por muito menos que isso João Goulart foi apeado em 1964, por militares brasileiros comprados pelo capital internacional.

Em resumo: acredito que não houve mensalão, mas se tiver havido eu o entendo como perfeitamente legítimo e ético como ato revolucionário. Pelo menos no momento em que teria acontecido, um ato muito mais eficiente no sentido da distribuição urgente de direitos (a começar por comida!) do que qualquer tentativa irresponsável de apelar para uma força física de que não se dispunha (e olhem que coloco este verbo no passado apenas como um gesto de esperança…)



Ilegal? Sem dúvida, em relação aos limites de uma legalidade desenhada para coibir a realização da justiça. E o reconhecimento desses limites da legalidade não são invenção marxista: 1400 anos antes de Trotsky, já Santo Agostinho dizia que “uma lei injusta não é em absoluto uma lei”.
 
 
 
O que conta no PT é que seu governo realizou o mais veloz e massivo processo de “desmiserificação” da história. Se foi sem mensalão, melhor. Se foi com mensalão, me importam muito mais os milhões de brasileiros que deixaram de passar fome do que o respeito à legalidade burguesa. Não diminuirei em um milímetro minha admiração pelo governo Lula e todos os que o viabilizaram.
 
 
 
Quanto aos que clamam pela condenação… pode parecer bem esquisito, mas o que isso me recordou foi uma passagem da “Paixão segundo São Mateus”, obra em que o relato bíblico foi musicado e comentado poeticamente por Bach, o compositor barroco alemão. Nessa passagem a multidão, atiçada pelos notáveis da sociedade da época, está pedindo a Pilatos que crucifique Jesus. Pilatos pergunta, segundo o texto bíblico: “mas o que foi que ele fez de mal?”. Antes que a Legião dos Inocentes Úteis responda, Bach convoca um soprano angelical a cantar: “A todos nós ele fez o bem: aos cegos deu visão, aos paralíticos fez andar, aos aflitos ele reergueu – fora isso meu Jesus nada fez” – após o quê a multidão açodada volta a rugir: “manda crucificar! manda crucificar!”. Vale lembrar que os tais notáveis haviam encontrado bases legais para isso.

Estou certo de que quando a história da nossa época for relatada com suficiente distância, os que agora clamam pela condenação do partido e do governo que realizaram “o mais veloz e massivo processo de desmiserificação da história” aparecerão sob a mesma luz que aqueles que gritaram “manda crucificar”.

Da minha parte, não sei o quanto a minha voz pode, nem se deixarei um só traço visível na história – mas pelo menos morrerei com a satisfação de não ter sido à horda míope dos inocentes-úteis-a-causas-nocivas que eu juntei minha pequena força.

Com mensalão ou sem mensalão.

Fonte:Sul21

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