Excelente texto.
Por Ralf
Rickli
A defesa diz que o mensalão simplesmente não existiu: teria sido um
mega-boato com a intenção de derrubar ou pelo menos dificultar ao máximo a
atuação do governo petista democraticamente eleito – e quem nasceu há mais de 50
anos e já viu esse filme inúmeras vezes, no Brasil e fora, sabe que é
perfeitamente plausível: quem esteve por cima da carne seca nunca a largou sem
briga.
Mas… e se tiver havido mesmo o tal mensalão? Será o
caso de estar gritando “cadeia nesses ladrões”, como tenho visto fazerem algumas
pessoas que, por seu envolvimento em outras causas, sei que são bem
intencionadas?
Acho uma grande bobagem o ditado “mente vazia oficina do diabo”, mas boas
intenções sem boa informação e reflexão consistente, essas com certeza o são.
Foi justamente a LIUCAN - Legião dos Inocentes Úteis a Causas Nocivas –
quem amplificou as ondas emitidas por uns poucos malévolos conscientes e
possibilitou a ascensão de Hitler, Franco, Médici, Pinochet, Bush, bem como os
assassinatos de um Allende, um Gandhi e outros (não muitos) que tenham chegado
ao poder ou liderança apesar de serem do bem. O que vale inclusive, segundo os
relatos existentes, para a crucificaçãomais famosa da história.
O que, afinal, teria sido o mensalão? Um esquema de apropriação de
dinheiro público por parte de gente do governo e de seus aliados?
Nada disso! - segundo a própria acusação. Teria sido um esquema em que gente
do governo teria pago - quer dizer: teria soltado dinheiro,
não pego, e dinheiro de origem privada, não pública.
Detalhe: o dinheiro usado seria oriundo de atividades publicitárias.
Esse tipo de atividade, embora não seja propriamente produtiva, tem altissimo
valor de mercado justamente por sua capacidade mágica de fazer qualquer
supérfluo ser comprado e gerar fortunas. Ou seja: publicidade
é sempre uma máquina de criar valor onde não existia, e essa
criação de valor é “natural” e perfeitamente legal no sistema capitalista. Mais:
obviamente a publicidade não cria valor só para os outros, mas surfa junto na
onda do valor que criou.
De modo que não é preciso perguntar de onde o dinheiro teria sido tirado: se
há publicidade envolvida, não seria preciso tirá-lo ilegitimamente de nenhum
lugar. A lógica do sistema possibilita concentrá-lo do que está difuso por aí
como quem condensa água do ar, sem nenhuma contravenção.
Segundo, essa gente do governo teria pago a
quem? Não a efetivos aliados – pois verdadeiros
aliados jamais cobrariam – e sim a efetivos inimigos (mesmo que não
declarados) para que estes suspendessem sua oposição-por-princípio, e
possibilitassem ao governo a aprovação de determinados projetos.
E aí (terceiro passo) chegamos ao que mais
importa: projetos de quê natureza? Ou: essa gente do
governo teria pago para quê? Seriam
projetos para se auto-beneficiarem, ou beneficiarem aliados, ou contrários de
uma ou de outra maneira ao interesse público?
Aqui o que os acusadores costumam dizer é que o PT pagou para que outros não
atrapalhassem o seu “projeto de poder” – e aí os inocentes e culpados úteis
exclamam em coro “oh, que horror!” - como se todo partido não
fosse, por natureza, legal e legitimamente, um projeto de poder!
Com o que permanecemos dentro do terceiro ponto: o PT queria o poder
para quê? Pelo poder em si? Para beneficiar seus próprios membros e
aliados?
Ora, os oito anos do governo Lula mostraram claro que não (e opto aqui por
não entrar no governo Dilma para não introduzir novas variáveis que não
pertencem ao caso): o que o PT conseguiu reunir de poder foi aplicado
basicamente em duas frentes:
i. construir um espaço de autonomia para o Brasil na cena internacional
(sem o qual tampouco haveria autonomia nas decisões internas), e
ii. iniciar um processo de distribuição mais equitativa, entre a população, do produto social nacional – a começar pela comida no prato.
ii. iniciar um processo de distribuição mais equitativa, entre a população, do produto social nacional – a começar pela comida no prato.
Tenebrosos objetivos, não?
Sim, de fato tenebrosos: para as elites que dominaram este território por 502
anos produzindo desigualdade intencionalmente, para através dessa desigualdade
concentrarem poder para – elas sim – usarem apenas em benefício próprio.
Ou seja: o PT teria pago, com dinheiro privado, para que o deixassem empregar
o mandato recebido da população para seus fins legais e mais do que legítimos:
para o bem coletivo dessa mesma população.
Mas, esperem aí: o PT já não havia recebido esse mandato legalmente?
Por que ainda precisaria pagar para poder exercê-lo?
Por que – sim, meu caros: a lei foi feita pela mesma classe de senhores que
criaram intencionalmente a desigualdade por 502 anos, e cheia de salvaguardas
para que o efetivo poder não lhes escapasse das mãos.
E esses senhores sabiam que os projetos do PT empurrariam o país ainda que
uns poucos passos no rumo da diminuição do seu poder senhorial.
Mas alguns deles teriam se mostrado dispostos a permitir alguns desses passos
– provavelmente na fé de que não iriam muito longe mesmo – em troca de algumas
pequenas compensações pessoais.
A esta altura não começa a ficar claro quem são os bandidos, quem foi ou pode
ter sido vítima nessa história?
Se vocês pensam que vou dizer “o PT” ainda não estão apanhando todo o alcance
da coisa: a vítima nesses casos é sempre o povo brasileiro - e o PT
junto com ele, na medida em que estava tentando
representar de fato os interesses desse povo,
e não apenas nominalmente.
MAS COMPRAR VOTO É CRIME SEJA COMO FOR, NÃO?
Não vou negar: se tiver havido o mensalão, membros do PT terão de fato feito
coisas previstas na lei como crimes:formalmente tratar-se-ia de corrupção ativa
– ainda que estivessem pagando para que pessoas que atuam normalmente contra o
interesse público atuassem uma vez em favor deste – isto é: pagando para alguém
se tornar menos mau,precisamente o oposto do sentido da palavra
“corromper”!
Uma coisa curiosa neste ponto é: há grandes resistências no próprio congresso
quanto ao reconhecimento de culpa nos atos de corrupção ativa – por exemplo,
inculpar o empresário que pagou para liberar algo de seu interesse, e não apenas
o político ou funcionário que cobrou a propina. Mas no caso do mensalão – apenas
neste! – praticamente toda a culpa e recriminação são dirigidas justamente à
frente ativa da suposta corrupção; mal se mencionam os nomes da frente passiva,
ou seja: dos que teriam pedido e/ou aceitado dinheiro para abrir caminhos, que
em outros casos costumam ser os únicos apontados como criminosos.
Outra coisa curiosa é falar-se como se o PT tivesse inaugurado esse tipo de
procedimento, quando todos sabem que no Brasil ele é tão antigo quanto a chegada
do dinheiro ao território, além de estar presente em qualquer lugar do mundo onde exista esse
sistema de poder oligárquico falsamente chamado de “democracia
representativa”.
Por que, então, um esquema mais antigo que o Brasil começaria a ser
denunciado justamente quando o PT assumiu o poder? Mais: por que a
classe média e elites brasileiras, corruptas e corruptoras desde sempre,
passaram a fazer campanhas “contra a corrupção no governo” justamente durante os
governos que mais combateram a corrupção em toda a história do país? (Basta
conferir os números da Polícia Federal para ver o quanto!)
Justamente porque, como já sugeri acima, o PT começou a usar o
sistema pseudo-representativo como se fosse pra ser de verdade: em favor dos
interesses coletivos da população.
Então precisa ser apeado do poder seja como for! E até mesmo os que teriam
vendido seu voto ao PT devem ser punidos: afinal, teriam traído os interesses de
sua própria classe (aclasse dominante) em troca de vantagenzinhas meramente
pessoais, e ainda bastante modestas! – mas punidos fora dos holofotes, como
também já apontei, pois afinal “no fundo eles ainda são dos nossos”…
Mas admito: nada disso nega o fato de que, se mensalão houve, os atos
praticados por membros do PT terão sido ilegais.
Mas terão sido ilegítimos? Ou teriam sido ilegais no sentido em que
era ilegal um escravo fugir do seu senhor, ou uma mulher ao domínio do seu
marido tirânico?
DA ILEGALIDADE DE TODA REVOLUÇÃO
Embora eu não seja um trotskista – pois não sou -ista nenhum! –
neste ponto quero invocar um conceito de Trotsky que me tem feito pensar
bastante: ele teria dito que ética é uma questão bastante simples, do ponto de
vista revolucionário: ético é tudo aquilo que serve à revolução, antiético
tudo aquilo que vai contra ela.
Conheci essa ideia de Trotsky através da crítica que o ex-marxista (e em
parte meta-marxista) Edgar Morin faz a ela: observa que Trotsky acabou sendo
assassinado por alguém que acreditava piamente estar servindo à revolução com
esse ato.
Não é uma crítica desnecessária: mostra que não podemos jamais atrelar todo
nosso arsenal de critérios a uma única palavra, pois de uma palavra é muito
fácil manipular o sentido conforme nos convém. Precisamos ser capazes de chegar
à mesma avaliação partindo de pelo menos dois ou três princípios diferentes, que
validem um ao outro.
Feita essa ressalva, podemos passar a considerar que tampouco o conceito de
Trotsky é sem fundamento – desde que se olhe com cuidado o sentido da palavra
“revolução”.
No sentido cru, revolução é simplesmente “revolver, revirar”, pôr em cima o
que estava embaixo, e vice-versa. Marx a usa no sentido de a classe majoritária
da sociedade – a que realiza os trabalhos mais físicos e concretos – vir a
assumir o poder, o que seria uma absoluta novidade histórica, pois o poder sempre foi
disputado entre classes que estavam mais acima – como a burguesia e a
aristocracia feudal -, sem alterar a situação de submissão da classe
trabalhadora (embora esta vez por outra seja chamada a ajudar nas lutas dos
poderosos, seduzida com lemas como “liberdade, igualidade e fraternidade”,
apenas para ser chutada escada abaixo assim que não seja mais necessário tê-la
ao lado, como aconteceu na revolução burguesa francesa).
Mas Marx não era nenhum imbecil de imaginar que uma classe majoritária
pudesse viver sentada em tronos dando ordens a uma pequena minoria de
ex-burgueses e ex-nobres que passariam a fazer todo o trabalho pesado! Marx vê
essa etapa (a tomada de poder pelo proletariado) apenas como estratégia para
a destruição da estrutura de classes, e instauração final de uma sociedade
sem classes que, em o sendo, poderia prescindir da instituição do Estado e do
próprio dinheiro (o que é perfeitamente lógico, mas obviamente não cabe tentar
demonstrar em um ou dois parágrafos!).
Ora, é só tendo em vista seu sentido final (a sociedade sem classes)
que a palavra “revolução” ganha seu sentido pleno: trata-se da
realização das mesmas velhas e boas igualdade, liberdade e fraternidade – só que
realização universal, envolvendo a humanidade inteira, e não
apenas as camadas dos “gentis-homens”, “filhos de algo”, “gente de bem(ns)” e
que tais.
E o que realmente importa é chegar a esse resultado, e não que ele aconteça
por este ou por aquele meio. Se Marx, no ponto em que estava, só conseguia
enxergar como meio para isso uma “ditadura do proletariado”, não quer dizer que
por toda a eternidade só possa existir esse meio. Não me proponho aqui a
discutir que outros poderia haver, apenas insistir em que a tal ditadura do
proletariado foi proposta como meio, e não fim. O fim é a sociedade sem nenhum
tipo de exploração ou opressão.
Voltemos agora ao PT, no momento em que assumiu o poder
federal. Seu objetivo era dar tantos passos quanto fossem possíveis, na
conjuntura atual, na direção da universalização dos direitos. Diante de si tinha
um muro multissecular de improbidade e interesses escusos. Brechas se ofereceram
que, embora ilegais, permitiriam “colocar um pé na porta”, calçar posições a
partir das quais depois seria possível prosseguir de modo, digamos, menos
informal.
A outra opção seria desperdiçar o mandato que lhe havia sido concedido
formalmente, sem realizar conquista nenhuma em favor da população. Ou alguém
aqui acha que tinha alguma chance, em vez disso, convocar a população a
defenestrar com as próprias mãos os corruptos do congresso? Por muito menos que
isso João Goulart foi apeado em 1964, por militares brasileiros comprados pelo
capital internacional.
Em resumo: acredito que não houve mensalão, mas se tiver havido eu o
entendo como perfeitamente legítimo e ético como ato
revolucionário. Pelo menos no momento em que teria acontecido, um ato
muito mais eficiente no sentido da distribuição urgente de direitos (a começar
por comida!) do que qualquer tentativa irresponsável de apelar para uma força
física de que não se dispunha (e olhem que coloco este verbo no passado apenas
como um gesto de
esperança…)
Ilegal? Sem dúvida, em relação aos limites de uma legalidade desenhada para coibir a realização da justiça. E o reconhecimento desses limites da legalidade não são invenção marxista: 1400 anos antes de Trotsky, já Santo Agostinho dizia que “uma lei injusta não é em absoluto uma lei”.
Ilegal? Sem dúvida, em relação aos limites de uma legalidade desenhada para coibir a realização da justiça. E o reconhecimento desses limites da legalidade não são invenção marxista: 1400 anos antes de Trotsky, já Santo Agostinho dizia que “uma lei injusta não é em absoluto uma lei”.
O que conta no PT é que seu governo realizou o mais veloz e massivo
processo de “desmiserificação” da história. Se foi sem mensalão,
melhor. Se foi com mensalão, me importam muito mais os milhões de brasileiros
que deixaram de passar fome do que o respeito à legalidade burguesa. Não
diminuirei em um milímetro minha admiração pelo governo Lula e todos os que o
viabilizaram.
Quanto aos que clamam pela condenação… pode parecer bem
esquisito, mas o que isso me recordou foi uma passagem da “Paixão segundo São
Mateus”, obra em que o relato bíblico foi musicado e comentado poeticamente por
Bach, o compositor barroco alemão. Nessa passagem a multidão, atiçada pelos
notáveis da sociedade da época, está pedindo a Pilatos que crucifique Jesus.
Pilatos pergunta, segundo o texto bíblico: “mas o que foi que ele fez de mal?”.
Antes que a Legião dos Inocentes Úteis responda, Bach convoca um soprano
angelical a cantar: “A todos nós ele fez o bem: aos cegos deu visão, aos
paralíticos fez andar, aos aflitos ele reergueu – fora isso meu Jesus nada fez”
– após o quê a multidão açodada volta a rugir: “manda crucificar! manda
crucificar!”. Vale lembrar que os tais notáveis haviam encontrado bases legais
para isso.
Estou certo de que quando a história da nossa época for relatada com
suficiente distância, os que agora clamam pela condenação do partido e do
governo que realizaram “o mais veloz e massivo processo de desmiserificação da
história” aparecerão sob a mesma luz que aqueles que gritaram “manda
crucificar”.
Da minha parte, não sei o quanto a minha voz pode, nem se deixarei um só
traço visível na história – mas pelo menos morrerei com a satisfação de não ter
sido à horda míope dos inocentes-úteis-a-causas-nocivas que eu juntei minha
pequena força.
Com mensalão ou sem mensalão.
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