“Nosso
Homem em Havana” é um livro de ficção do genial Graham Greene. Mais que
uma novela de espionagem, a obra é uma sátira política coalhada de
ironias e sarcasmos.
Nela,
Greene conta a história de James Wormold, um vendedor britânico de
aspiradores de pó, que reside em Havana. Abandonado pela mulher e com
problemas financeiros, ele acaba recrutado pelo serviço secreto do Reino
Unido.
Precisando
do dinheiro extra, mas sem ter nada de relevante para reportar a
Londres, Wormold cria uma rede fictícia de informantes, misturando
personagens reais, muito dos quais ele sequer conhece, com nomes
inventados. Gera relatórios com base em notícias requentadas de jornais e
em muita imaginação para preencher as lacunas de tramas escabrosas.
Ao
sentir a necessidade de apimentar suas informações e obter mais
dinheiro, Wormold passa a remeter a Londres diagramas de peças de
aspiradores de pó, apresentando-os como plantas de uma “base comunista
secreta escondida nas montanhas”.
Num
dos momentos mais hilariantes do livro, o chefe de Wormold em Londres,
ao discutir os desenhos de aspiradores de pó, afirma: “Diabólico, não é?
Acredito que podemos estar diante de algo tão grande que fará a Bomba H
se tornar uma arma convencional”.
Não
sei se os repórteres da revista Época que colocaram o título da obra de
Greene em sua mais recente “reportagem” sobre Lula leram o livro.
Provavelmente, não. Se tivessem lido, teriam percebido que o sarcasmo de
Greene veste como luva de pelica em sua, assim digamos, “obra
jornalística”.
A
nova “reportagem” insiste em reapresentar as ações internacionais do
ex-presidente Lula, que usa do seu enorme prestígio mundial para
promover o Brasil, seus produtos e suas empresas no exterior, como algo
escabroso e escuso.
Da
mesma forma que o personagem de Greene, tentam vender desenhos de
aspiradores de pó como se fossem uma nova superbomba, a qual, como de
hábito, “implodirá a República”.
Como
Wormold, a brava revista de “jornalismo investigativo” mistura
verdades, meias verdades e uma alta dose de imaginação para criar uma
precária peça de ficção policial, travestida de reportagem objetiva e
imparcial.
Emulando
Worlmold, a revista aposta na paranoia anticomunista para que suas
informações prosaicas e anódinas se convertam numa trama diabólica. Com
efeito, essa revista, assim como várias outras no Brasil, navega hoje
nas revoltas e obscuras águas do anticomunismo, do “antibolivarianismo” e
do antipetismo. Recriaram, em pleno início do século XXI, o mesmo clima
da Guerra Fria que vigorava nos anos 50 e 60 do século passado.
Isso
tudo no momento em que o próprio governo norte-americano aposta na
aproximação à Cuba, no fim do embargo e, é claro, na realização de
grandes negócios na ilha, com o providencial auxílio de poderosos
lobbies políticos-empresariais.
A revista Época está definitivamente fora de época.
Aparentemente,
está também um pouco fora de si. Só isso explica a ignorância abissal
sobre o estratégico tema da exportações de serviços.
O
setor de serviços representa, hoje, cerca de 80% do PIB dos países mais
desenvolvidos e ao redor de 25% do comércio mundial, movimentando US$ 6
trilhões/ano. Somente o mercado mundial de serviços de engenharia
movimenta cerca de US$ 400 bilhões anuais e as exportações correspondem a
30% desse mercado. É um segmento gigantesco, que cresce mais que o
mercado de bens.
Infelizmente, apesar dos esforços recentes, o Brasil investe pouco nessas exportações.
Assim,
enquanto que, no período de 2008 a 2012, o apoio financeiro do Brasil
às suas empresas exportadoras de serviços foi, em média, de US$ 2,2
bilhões por ano, o apoio oficial da China às suas empresas exportadoras
alcançou, nesse mesmo período, a média anual de US$ 45,2 bilhões; o dos
Estados Unidos US$ 18,6 bilhões; o da Alemanha, US$ 15,6 bilhões; o da
Índia, US$ 9,9 bilhões.
Na
realidade, apenas cerca de 2% da carteira do BNDES vão para obras
brasileiras no exterior. E, ao contrário do que dizem Época e outras
revistas fora de época, não se trata aqui de “empréstimos camaradas”
para Cuba e outros países “comunistas e bolivarianos”, protegidos por
sigilo indevido com a finalidade de encobrir atos ilegais.
Em primeiro lugar, o país que mais recebeu empréstimos do BNDES para obras de empresas brasileiras no exterior foram os EUA.
Em
segundo, nenhum centavo desses empréstimos foi para países ou governos
estrangeiros. Os empréstimos são concedidos, por lei, às empresas
brasileiras que fazem as obras, e o dinheiro só pode ser gasto com bens e
serviços brasileiros. Como a construção civil possui uma longa cadeia,
tais empréstimos têm um impacto muito positivo na economia nacional.
Estima-se que, apenas em 2010, as exportações de serviços de engenharia
tenham gerado cerca de 150 mil empregos diretos e indiretos no País.
Além disso, os gastos com a importação de bens brasileiros em função de
algumas dessas exportações financiadas pelo BNDES ascenderam a US$ 1,6
bilhão, no período 1998-2011. Entre tais bens, estão os aços, os
cimentos, vidros, material elétrico, material plástico, metais, tintas e
vários outros.
Em
terceiro, os empréstimos não são “camaradas”.
No caso dos empréstimos
às empresas brasileiras para a construção do Porto de Mariel, o BNDES
usou a Libor e mais um spread de 3,81%, juros superiores ao praticados
pela OCDE, que usa, no mesmo caso, a CIRR mais um spread de 3,01%.
Em
quarto, o sigilo parcial das operações financeiras visa proteger as
informações privadas do tomador do empréstimo, conforme determina uma
norma tucana, a Lei Complementar Nº 105, de 2001. Mesmo assim, o BNDES é
considerado, pela insuspeita Open Society Foundations,
como o banco de investimentos mais transparente do mundo. Ademais,
qualquer juiz de primeira instância pode abrir totalmente as operações,
se considerar que há algo suspeito nelas.
Em quarto, como
o mercado mundial de obras é muito concorrido, os países fazem
poderosos lobbies para obter contratos. Presidentes,
primeiros-ministros, monarcas e ex-presidentes com prestígio se empenham
para que as empresas de seus países consigam obras no exterior. Assim
como se empenham também para que comprem os produtos de seus países.
Quanto
à participação de Lula, só mesmo o mais completo mentecapto ou o mais
irracional dos anticomunistas pode imaginar que o ex-presidente poderia
ter feito algo de ilegal ou mesmo antiético em reuniões que contaram com
a participação de diplomatas e que foram devidamente registradas em
documentos oficiais do Itamaraty. Aliás, mesmo que quisesse, Lula jamais
poderia ter influenciado tais empréstimos, os quais têm de passar por
uma longa série de instância técnicas para serem aprovados e liberados.
Saliente-se
que Época só teve acesso aos documentos sigilosos graças à Lei de
Acesso à Informação, promulgada em 2012 por Dilma Rousseff.
Fosse
nos áureos tempos do paleoliberalismo, tais empréstimos não teriam
despertado a suspeita de Época. Como de fato não despertaram, quando FHC
aprovou os primeiros empréstimos para o metrô de Caracas, já com a
Venezuela presidida pelo “perigosíssimo” Hugo Chávez.
Na
improvável eventualidade de que tivessem despertado suspeitas, Época
não teria tido acesso a informações sigilosas. Caso tivesse tido acesso a
informações sigilosas, por aquáticas vias de obscuras cachoeiras,
duvidamos que Época tivesse publicado uma linha sequer. Caso tivesse
publicado alguma coisa, duvidamos ainda mais que alguém tivesse levado a
sério. Caso algum paranoico tivesse levado a sério, duvidamos que
procuradores tivessem ensejado qualquer ação, para não cair no ridículo.
Caso algum procurador tivesse caído na fácil tentação de se expor a
holofotes desavergonhados, o providencial engavetador-geral teria feito o
que sempre se fazia na época, com o apoio da Época.
Na
época, nem mesmo os lobbies em prol de empresas estrangeiras nas
alegres privatizações despertavam suspeitas. Mesmo hoje, quem se bate
pela Chevron, pela Alstom, pela entrega do pré-sal e pela abertura do
mercado brasileiro às construtoras estrangeiras curiosamente está acima
de qualquer suspeita. Esses são “estadistas”. Só não se sabe bem de que
país.
Mas
vivemos em outra época. Na época do vale-tudo contra o “comunismo”, o
“bolivarianismo” e o “lulopetismo”. Na época do vale–tudo contra o
mandato popular. Na triste época do vale-tudo contra Lula, o melhor
presidente da história recente do país. O ex-presidente que hoje é o
rosto do Brasil no mundo. Na horrorosa época em que quem defende o
Brasil e suas empresas, como Lula, é apresentado como criminoso.
Nesses
tempos bicudos de Guerra Fria zumbi, vale até mesmo apresentar
diagramas de aspiradores de pó como perigosíssimas instalações
comunistas secretas.
Greene
nunca imaginou que suas ironias e sarcasmos sobre a Guerra Fria seriam
revividas na forma de “reportagens” que se levam a sério.
Diabólico, não é?
Marcelo Zero
Sociólogo, especialista em relações internacionais e assessor da Liderança do PT no Senado
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