18/06/2009
Publicado na Revista do Brasil
O cavalo-de-pau dado pelos bancos americanos e europeus nas finanças mundiais pegou a economia brasileira no exato momento em que se preparava para um salto de qualidade que a levaria a um novo milagre econômico, desta vez com distribuição de renda e sem ditadura. O governo respondeu atacando pela primeira vez o cerne do poder financeiro: a extorsiva taxa básica de juros.]
Em setembro do ano passado, quando a crise dos bancos explodiu, a economia brasileira estava crescendo a uma taxa anual da ordem de 6,8%. Os investimentos em novas máquinas, galpões e infraestrutura haviam chegado a 20% do Produto Interno Bruto (PIB), uma taxa só comparável à dos primórdios do milagre econômico. Em todo o país empresas planejavam a expansão, depois de quatro anos de crescimento médio acima de quase 5%.
Os primeiros efeitos da crise entre nós foram a disparada do dólar e o corte súbito dos empréstimos bancários. O dólar foi de R$ 1,70 em setembro para R$ 1,90 em outubro e terminou o ano perto de R$ 2,40 porque os especuladores correram para a moeda como refúgio. Empresas que deviam aos bancos com aquela maldita cláusula que multiplicava os custos do empréstimo exponencialmente a partir do dólar a R$ 1,80 começaram a anunciar prejuízos milionários.
Os financiamentos de fora, que representavam cerca de 10% do total, secaram de um dia para o outro com o colapso do Lehman Brothers. Os de dentro secaram porque os bancos ficaram sem saber que outras empresas também estavam quebradas, além das que admitiram as perdas publicamente. ]
O governo diagnosticou corretamente que era preciso, antes de tudo, estancar a disparada do dólar e restabelecer a confiança no sistema bancário. Para segurar o dólar, o Banco Central sacou das reservas internacionais e entrou vendendo a moeda americana. Anunciou a ampliação da garantia de depósitos e aplicações para até R$ 20 milhões para instituições menores em dificuldades de liquidez, visando desarmar qualquer risco de uma corrida aos pequenos bancos, os mais vulneráveis ao fim dos financiamentos externos. Também reduziu para esses bancos o chamado compulsório – que é o volume de depósitos dos clientes que os bancos têm de recolher ao Banco Central e não podem ser usados para empréstimos.
Tudo isso foi feito sem alarde, enquanto a maioria dos jornalistas “especializados” fazia exatamente o contrário, alimentando o pânico e uma visão pessimista do futuro. Marcos Nobre, que não é jornalista (é professor do Departamento de Filosofia da Unicamp), escreveu em sua coluna na página 2 da Folha de S.Paulo que Lula foi rápido, eficiente e focado: “Rompeu pela primeira vez o terrorismo econômico que se instalou desde a globalização econômica da era FHC”. Nobre lembrou ainda a importância das políticas de valorização do salário mínimo e sua extensão aos benefícios da Previdência, robustecendo o mercado interno, que acabou sendo a plataforma de recuperação. Tudo aquilo que os tucanos, demos e seus seguidores na imprensa criticavam como errado é o que está nos ajudando nesta crise.
Reação radicalizada
Mesmo com a reação vigorosa e correta do governo, a maioria das empresas teve de cancelar, reduzir ou adiar investimentos. Além da asfixia da falta de crédito, contratos de exportação foram subitamente suspensos. Como eram os investimentos que naquele momento puxavam o crescimento da economia, deu-se uma queda dramática na produção industrial e na taxa de expansão do PIB. Um coice muito pior que o dado por Antonio Palocci, então ministro da Fazenda, no primeiro ano do governo Lula.
Daquela vez o PIB ainda cresceu mísero 1,3%. Agora houve queda de 3,6% no último trimestre de 2009 em relação ao trimestre anterior. E a produção da indústria despencou 25% – número impressionante, como se indústrias inteiras tivessem parado de produzir.
Lula então radicalizou. Fez da crise uma oportunidade para deflagrar mudanças estruturais há muito desejadas pelos setores mais esclarecidos da sociedade, mas até então levadas em marcha lenta. Era a hora de tentar quebrar o domínio do capital financeiro e do mito por ele alimentado há décadas, de que no Brasil não pode haver taxa básica de juros abaixo dos 10%.
Os bancos privados continuavam a não emprestar? Que entrem em cena os grandes bancos estatais. Mais uma vez se mostrou a importância de terem sido estancadas as privatizações promovidas pelo tucanato no setor bancário. Graças ao Banco do Brasil, Banco do Nordeste, Caixa Econômica Federal e BNDES, o governo contra-atacou oferecendo crédito que os bancos privados negavam.
Não houve hesitação. O BNDES já tinha atingido o limite de empréstimos em relação ao seu capital? Pois aumente-se o capital do BNDES. O presidente do Banco do Brasil não entendeu o caráter excepcional da situação e continuou se comportando de modo burocrático? Pois troque-se o presidente do Banco do Brasil.
Mas o gesto mais importante foi o ultimato dado a Meirelles para que forçasse um corte nos juros da taxa básica, a Selic, que o governo paga pelos títulos de sua dívida. Os neoliberais que ainda controlam o Banco Central haviam cometido o desatino de elevar mais esses juros em plena crise, de 13% para 13,75%, sob o falso pretexto de que a inflação ainda era um perigo, quando a mãe de todos os perigos já era a recessão que em todo o mundo ocidental se espalhava como uma pandemia. Enquanto bancos centrais cortavam os juros radicalmente para tentar tirar a economia do atoleiro, aqui, nossos neoliberais faziam o contrário. Apenas a partir de janeiro, em um reconhecimento explícito do erro, começaram as sucessivas quedas nas reuniões do Comitê de Política Monetária (Copom); foram cortados 3,5 pontos e a Selic chegou a 10,25%.
Menos impostos
A derrubada da taxa básica não ajudou muito a abrir as torneiras do crédito privado, mas a economia com o pagamento de juros da dívida pública interna permitiu reduzir impostos e expandir a rede de proteção social sem aumentar o déficit federal. É uma transferência de renda dos mais ricos para os mais pobres. Dos que vivem de renda para o mercado interno de consumo.
O primeiro a ser reduzido foi o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) dos carros. Medida importante dado o peso dessa indústria na economia, embora capenga do ponto de vista da necessidade de transformar nosso padrão de consumo. Teria sido melhor associá-la à introdução do carro elétrico, que já é uma realidade em muitos países, a modelos menores e menos poluentes e ao transporte coletivo. As falências da GM e da Chrysler nos Estados Unidos mostram que se esgotou o modo de produção de carros baseado no lançamento de novos e caros modelos todo ano.
Curiosamente, essa medida de Lula a imprensa não criticou, tal é a força da indústria automobilística entre anunciantes e, indiretamente, entre os jornais. Com as megafusões de cervejarias, bancos, telefônicas, entre outras, acabou a guerra de propaganda em alguns setores, o que, somado a novas limitações nos anúncios de bebidas e cigarros, tornou os comerciais de carros vitais à sobrevivência dos jornais.
Depois o governo cortou impostos em mais uma dúzia de itens importantes, incluindo eletrodomésticos, materiais de construção e motos. Em alguns casos, o IPI foi zerado. Lula também ordenou à Petrobras que aumentasse seus investimentos. A Petrobras é tão relevante na economia brasileira que seus recursos em infraestrutura são da mesma ordem da soma de todos os demais investimentos do mesmo tipo do governo federal. O que fazem os tucanos e os demos? Pedem uma CPI da Petrobras.
Outra frente em que Lula radicalizou foi na busca da unidade dos governos sul-americanos. Principalmente para desarmar as tentativas de guerra comercial que sempre acontecem em momentos de desespero econômico. Primeiro, mandou que fosse elevado o limite dos convênios de créditos recíprocos. Esse é um mecanismo pelo qual os BCs acertam entre si, apenas de tempos em tempos, o saldo das transações das empresas de cada país, não sendo preciso acertar cada uma das transações. Desse modo, é possível continuar o intercâmbio comercial, mesmo na falta de financiamentos ou de reservas de moeda forte. Além disso, o BNDES abriu uma linha de crédito especial para empresas argentinas. E mais: o Brasil criou um fundo de R$ 10 bilhões para empréstimos a países do continente, que podem ser saldados em moeda própria.
Oportunismo
Enquanto isso, os governadores pouco fizeram para ajudar a tirar a economia da recessão. Poderiam reduzir o ICMS, principal imposto estadual – e pesado, em alguns casos chega a 30%. Apenas Roberto Requião, no Paraná, reduziu o ICMS, e de modo amplo: em 95 mil itens de consumo popular. No Mato Grosso a medida foi adotada para o gado em pé, mas só em uma pequena região, para tirar os frigoríficos do sufoco. Em Goiás, sobre o álcool. Houve algumas outras reduções isoladas, como a do ICMS sobre a indústria naval no Rio de Janeiro e sobre o feijão em São Paulo, mas não para combater a recessão, e sim como parte de uma eterna guerra fiscal entre estados. O Rio quer atrair a indústria naval de São Paulo. São Paulo quer proteger o feijão paulista do de Minas.
O governador José Serra, de São Paulo, onde está 35% da indústria do país, prometeu cortar impostos em materiais usados na produção para exportação, mas ficou só na retórica. Enquanto isso, partiu para a implantação agressiva de dezenas de pedágios novos em todas as rodovias estaduais, além do aumento de preço dos já existentes, para ampliar a arrecadação. A medida incide diretamente sobre o custo dos transportes e, portanto, dos alimentos. Já são 112 os pedágios estaduais. Na Rodovia Marechal Rondon, um trecho entre Bauru e Campinas – importante eixo de transporte de alimentos – que antes custava R$ 7,40 sai agora por R$ 18,80.
A lógica desses governadores: mais impostos para construir mais pontes, viadutos e estradas, não porque criam emprego, mas porque têm visibilidade, trazem mais votos do interior e mais apoio das empreiteiras. De olho na sucessão de Lula, acreditam que podem tirar proveito eleitoral se a recessão derrubar a popularidade do presidente.
Lula, generoso e manhoso, ainda deu uma colher de chá postergando pagamentos de dívida das prefeituras com o INSS e oferecendo aos estados um empréstimo de R$ 4 bilhões para pagar em oito anos, com um ano de carência.
Com tudo isso, a economia brasileira ainda não voltou aos níveis pré-crise. A indústria se recupera lentamente e a situação do emprego continua delicada. Todo o horizonte se modificou. O plano de construção de 1 milhão de moradias populares fortemente subsidiadas é mais uma cartada dessa radicalização. Por isso mesmo, governadores e prefeitos demos e tucanos relutam em aderir. Lula cresceu com a crise. A oposição encolheu. O país enfrenta uma encruzilhada, ou radicaliza, ou regride.
Bernardo Kucinsk é jornalista
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