quinta-feira, 18 de junho de 2009

Jango monitorado



18/06/2009

Gilberto Nascimento, CartaCapital, de Porto Alegre

O então presidente da República João Goulart despachava no Palácio do Planalto, em 1962, quando sua mulher, Maria Thereza, irrompeu no gabinete, aos gritos, com uma carta e a coleção de discos do cantor Frank Sinatra nas mãos. Foi uma surpresa geral. Alguns ministros riram.

Ela acabara de receber um sonhado e incomum presente. Numa entrevista à revista Time, a primeira-dama dissera que um de seus sonhos era conhecer o ídolo americano. Sinatra leu a reportagem e, sensibilizado, enviou-lhe o presente. “Ele mesmo escreveu. Veio tudo embalado em um pacote com um rótulo da bandeira americana. O Darcy Ribeiro (então ministro da Educação) morria de rir e dizia que o Jango ia ter de ouvir o Sinatra a vida inteira”, orgulha-se Thereza, até hoje.

Jovem e bela, filha de um fazendeiro gaúcho, Maria Thereza era uma primeira-dama muito mais próxima desse cotidiano. Não tinha nada da aspereza política. No exílio no Uruguai, riu certa vez ao atender o telefone e ouvir o seu interlocutor se identificar como Juan Perón. “João, tem um homem aqui ao telefone dizendo que é o Perón”, chamou Jango. Era o próprio presidente argentino (morto em 1974).

No governo, Thereza cuidou da área assistencial. Mas tinha uma forte intuição política. Esteve sempre ao lado do marido. Casou-se com Jango quando tinha apenas 17 anos e contava apenas 23 quando ele chegou à Presidência.

É considerada a primeira-dama mais bonita e admirada do Brasil. Nas festas, desfilava modelos especialmente desenhados pelo estilista Denner, o seu preferido.

Maria Thereza viveu alguns dos mais intensos e delicados momentos da vida do País. Sofreu no exílio. Diz ter sido vítima, ao lado do marido e dos filhos, de ameaças e perseguições. O casal era monitorado por espiões o tempo inteiro, como comprovam documentos de órgãos de repressão do Brasil divulgados por CartaCapital, na edição de 18 de março.

A ex-primeira-dama busca manter viva a memória de Jango. Aos 65 anos, cobra investigações do governo brasileiro sobre as circunstâncias ainda não esclarecidas da morte do ex-presidente, em 6 de dezembro de 1976, em Mercedes, na Argentina, oficialmente de ataque cardíaco. Um ex-agente do serviço secreto uruguaio, Mario Neira Barreiro, preso em Charqueadas (RS), garante que Jango foi envenenado.

Ao lado do neto, Christopher Goulart, Thereza exibe documentos também do governo uruguaio que reforçam as denúncias do monitoramento a Jango. Em fichas com dados sobre o ex-presidente brasileiro naquele país, consta, já em 1965, um ano depois do golpe no Brasil, que ele poderia ser vítima de atentado.

O Ministério do Interior uruguaio informou ao Conselho Nacional de Governo que “fontes sérias e responsáveis brasileiras” falavam de um “presumível complô- contra o ex-presidente brasileiro”. Esse documento foi requisitado ao Uruguai pelo Movimento de Justiça e Direitos Humanos e pelo Instituto Presidente João Goulart, entidade criada pela família Goulart.

Os militares uruguaios seguiam os passos de Jango. Documentavam os seus negócios e encontros com políticos brasileiros e latino-americanos. Tudo sobre ele constava nas centenas de páginas de relatórios dos agentes: onde nasceu, estudou, nomes de familiares, etc.

Há relatos, por exemplo, como o de um roubo de 190 mil dólares em uma fábrica que pertenceria a Jango, a Tacuarembó Indústria Oleaginosa S/A, no departamento (estado) uruguaio com o mesmo nome. Na ficha, é citado um bilhete em que um certo Leonel Barboza manifestava o seu agradecimento pelo dinheiro ao senhor Goulart “em nombre del Fidel”.

Não se esclarece se seria uma alusão ao então presidente cubano Fidel Castro ou a um grupo de esquerda uruguaio chamado Frente de Esquerda de Libertação, que usava a sigla Fidel. Christopher, diretor do Instituto João Goulart, afirma que acusações de que Jango recebera dinheiro de Fidel não fazem sentido. “Ele era muito rico, bem antes de entrar na política. Nunca precisaria desse dinheiro.”

Os relatórios contam detalhes da vida de Jango, de 1965 a 1976. Falam de negócios que teriam sido realizados em conjunto por Jango e o ex-governador gaúcho Leonel Brizola, que também esteve exilado naquele país. Os dois, segundo os órgãos de repressão uruguaios, compraram os hotéis Alhambra e California, em Montevidéu, e tinham participação no frigorífico Tacuarembó e em fazendas da região. Relata ainda a compra de um avião e de um restaurante.

Numa das fichas, de outubro de 1972, um ex-piloto de Jango, Rubén Rivero, é acusado de envolvimento com o grupo guerrilheiro uruguaio Tupamaros. Rivero é apontado como um braço direito e administrador de bens do ex-presidente. A família de Jango nega que ele tivesse essa função.

Nada escapava aos agentes. Os espiões delatavam desde a abertura, em 1968, de um restaurante chamado Cangaceiro, em Montevidéu – que Jango teria aberto para ajudar exilados brasileiros –, até reuniões, “com elementos trotskistas com a finalidade de criar problemas na chegada de Lincoln Gordon, secretário-assistente de Estado para Assuntos Latino-Americanos”, em 1966.

Os uruguaios documentaram uma viagem do ex-presidente brasileiro a vários países europeus e africanos, em abril de 1974. No retorno, de acordo com os relatórios, Jango encontrou-se com o presidente argentino Juan Perón e sua equipe econômica. Em março do ano seguinte, ele montou numa cidade uruguaia (o nome está ilegível no documento) um escritório de importação e exportação em sociedade com o empresário brasileiro Orpheu dos Santos Salles. Para os uruguaios, seria um escritório de “fachada” para facilitar contatos de Jango “fundamentalmente com a China comunista”.

Os contatos com os políticos do Cone Sul eram detalhados. Em outro documento da Direção Nacional de Informação e Inteligência do Uruguai, de 28 de novembro de 1974, os agentes descrevem um encontro em Buenos Aires, no Aeroporto de Ezeiza, entre Jango, o senador uruguaio Zelmar Michelini e o ex-presidente boliviano general Juan José Torres, também exilados naquele país. Michelini e Torres – e também o ex-presidente da Câmara dos Deputados do Uruguai, Hector Gutierrez Ruiz – foram depois assassinados na Argentina em 1976, pela Operação Condor, o plano de cooperação entre as ditaduras sul-americanas para eliminar opositores políticos. Esses assassinatos reforçam a tese de que Jango pode ter sido morto.

Thereza e a família seguem numa cruzada em busca de esclarecimentos. Seu neto Christopher tem percorrido o Rio Grande do Sul para falar sobre o avô em escolas, sindicatos e ONGs. Em agosto, a família inaugurará em São Borja (RS), a terra natal de Jango, o Memorial Casa João Goulart.

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