Coisas da Política - Mauro Santayana
Jornal do Brasil - 24/06/2009
Há, em um de seus estudos sobre a política (Ética a Nicomaco), afirmação de Aristóteles que causa espanto no primeiro momento: a amizade é mais importante do que a justiça, porque onde houver amizade, a justiça já está feita. Ao contrário de seus predecessores, o grande filósofo não deixava a inteligência solta: amestrava-a com rigorosa lógica. A amizade, ou solidariedade, na melhor tradução contemporânea, é a própria razão da vida social. Só a solidariedade pode promover a isonomia, a equalização (isasthenai) das pessoas, normalmente desiguais. Dessa igualdade, que a solidariedade estabelece, se nutrem a teoria e a prática da República. A coisa pública não é apenas o conjunto de bens materiais, mas, também, das ideias e sentimentos comuns, a que chamávamos pátria. O que serve de continente à solidariedade é a consciência de que o bem, objetivo da ética política, só pode ser obtido nessa troca de confiança mútua. Não que seja fácil a uma comunidade a fraternidade entre todos os seus membros – em oposição ideal à guerra de todos contra todos, de Hobbes – mas onde ela se obtiver, haverá o estado de paz necessário à realização integral da vida. Aristóteles mostra que, na solidariedade, em que todos têm alguma coisa a oferecer ao outro, tornam-se iguais o agricultor e o artesão, o médico e o músico, o remador e o piloto, o soldado e o estrategista. A solidariedade consegue, na troca entre as pessoas, o que a convenção monetária faz no intercâmbio dos bens materiais, quando torna equivalentes o valor de coisas diversas, como sapatos e casas: a solidariedade coloca no mesmo plano humano o filósofo e o oleiro. Tanto na fraternidade, como na moeda, o pressuposto básico é o da confiança.
Reúnem-se, assim, na mesma ideia de comunidade, homens com interesses desiguais e opiniões (doxai) diferentes. A opinião, ou doxa, é a expressão daquilo que parece verdadeiro a cada um de nós, já que a verdade não pode ser provada, a não ser pela experiência. A cada um cabe a sua verdade, que é a sua opinião: dela pode persuadir ou não o interlocutor, mas, mesmo não o persuadindo, não deve construir no outro um inimigo. Como se diz em Minas, as ideias devem brigar; não os homens.
A reação contra a decisão do STF que extinguiu a exigência do diploma para jornalistas mostra como estamos distante da lógica política de Aristóteles. O corporativismo é a ampliação do egoísmo, o contrário da solidariedade. Que haja escolas de jornalismo, ótimo. Que haja cursos de cabeleireiros, de mestres-de-obras, de qualquer profissão, é excelente. Por pior que seja um curso, sempre acrescenta alguma coisa. Foi, no entanto, o corporativismo de alguns jornalistas, manifestado por dois ou três sindicatos da época, que reclamou do governo ditatorial a exigência do diploma, com dois objetivos: o de buscar status universitário para o ofício, e o de fechar o acesso das redações aos pobres. Os jornais do passado eram cheios de desdentados e mal vestidos, o que incomodava os bem nascidos. Muitos dos que se opuseram a essa exigência, nela viam discriminação contra os que não tinham como frequentar a universidade. Outros, por saber, pela experiência, que, fora do dia a dia das redações, é impossível aprender a fazer jornal. E por entender que o jornalismo é atividade política: mesmo em uma nota de 10 linhas, o redator faz sua escolha política, ao eleger o tema, encaminhar o assunto, buscar o ângulo que lhe pareça mais adequado. No Brasil, além de Machado de Assis, temos, entre dezenas de outros autodidatas, o excepcional Millôr Fernandes. Contínuo da revista O Cruzeiro aos 15 anos, tornou-se, na opinião geral – e deste colunista – o mais universal dos jornalistas e escritores brasileiros vivos. Aos 85 anos, continua imbatível em sua criatividade, em sua independência, em seu caráter.
Segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a que aderira o Brasil, todos têm o direito de divulgar opinião e informações, por qualquer meio. Informar é também opinar, é expressar a doxa do autor, revelar algo que lhe parece certo e verdadeiro. Quem informa, forma. Cabe aos leitores ou, conforme o axioma capitalista, ao mercado, decidir que produto consumir, que jornal comprar, que matéria ler.
Para o bem e para o mal, a internet já desabou os muros da discriminação, embora haja os que pretendam amordaçar os bytes.
Nenhum comentário:
Postar um comentário