terça-feira, 28 de setembro de 2010

A dra. Cureau esquentou o anonimato


Wálter Maierovitch

Espera-se que o MP Eleitoral não mais pratique a forma mais torpe, covarde e vil de atacar

A minha colação de grau em ciências jurídicas e sociais ocorreu em 1971, mas, como estagiário de operadores do Direito, comecei no início de 1969, sempre na companhia de fiéis escudeiros, ou seja, dos livros de doutrina, repertórios de jurisprudência, códigos, lápis, borrachas, canetas-tinteiro e do sentimento de encantamento pelas ciências criminais. Depois de tantos anos, muitos deles como juiz em zonas eleitorais e no Tribunal Regional Eleitoral, ainda não posso afirmar que nada mais me surpreende.

Com efeito, quando Mino Carta, tomado por ira santa, leu-me, na sexta 17 e por telefone, o singelo ofício da Exma. Dra. Sandra Cureau, vice-procuradora-geral Eleitoral, aconselhei-o a verificar, por exame dos autos procedimentais referidos no ofício, qual teria sido o motivo que levou a representante ministerial a “requisitar” (não se trata de solicitação) informações acerca dos contratos de publicidade celebrados com o Executivo Federal, nos anos de 2009-2010, e dos valores recebidos pela Editora Confiança Ltda. – CartaCapital. Mais ainda, não olvidar o advertido pela procuradora Cureau de que tudo deveria ser atendido no prazo fatal de cinco dias, sob pena de “responsabilização” (sic) por crime de desobediência, tipificado no artigo 330 do Código Penal.

Não demorou para a sucursal brasiliense de CartaCapital - descobrir que se tratava de uma acusação feita por pessoa cujo nome era protegido por sigilo garantido pela procuradora Cureau. E, frise-se, não se cuidava de candidato a prêmio, como acontece no caso de mafiosos nas delações premiadas.

O acusador, que ainda não se sabe se agia de forma escoteira ou instrumentalizada, afirmava, sem apresentar nenhuma prova, ter CartaCapital se transformado em balcão de negócios. De modo a se integrar à campanha da candidata Dilma Rousseff em troca de contratos de publicidade do governo federal. Na verdade, o acusador apresentava suposições. Isto sem levar à doutora Cureau, salvo a sua flatus vocis, nenhum elemento de prova a dar sustentação às suas conjecturas.

Dispensável ressaltar o clima de indignação na redação de CartaCapital por parte dos jornalistas que integram o seu quadro laborativo, como se fossem eles partícipes de negociatas e prontos a escrever matérias adrede preparadas. Em síntese, não esperavam desarrazoada ofensa e tamanha desconsideração.

Infelizmente, a dra. Cureau havia se precipitado e estava a “esquentar” um anonimato, que é proibido pela Constituição da República. Numa das suas cláusulas pétreas, a Constituição garante a livre manifestação do pensamento, mas veda o anonimato. E no mesmo artigo, em outro inciso, declara inadmissível a prova ilícita. Ora, o anonimato, pela inverossimilhança, representa prova ilícita, ilegítima à luz da nossa Constituição republicana.

Num brilhante voto dado em sessão plenária do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Carlos Velloso destacou: “O anonimato não é tolerado pela Constituição… Convém registrar que, protegido o denunciante pelo sigilo, isso pode redundar num denuncismo irresponsável, que constitui comportamento torpe”.

Como os atos negociais do governo federal são públicos (divulgados pela Imprensa Oficial) e submetidos ao controle do Tribunal de Contas da União, fica claro estarmos diante de um caso de denuncismo, qualificado pelo gravíssimo fato de o anônimo ter encontrado, sob o manto protetor da dra. Cureau, abrigo para esconder a sua identidade, assacar aleivosias, fazer comunicação falsa de crime e tangenciar o crime de denunciação caluniosa.

O maior penalista de todos os tempos, o friuliano Vincenzo Manzini, escreveu no seu portentoso Trattato di Diritto Penale, que “anônimo é o escrito que impede um fácil reconhecimento do autor, ainda que esse possa ser individualizado”. Como se percebe, o conceito de anonimato, no âmbito criminal constitucional, não é meramente formal, no sentido de englobar apenas o absoluto “ignoto”, como observou Francesco Antolisei, no seu universal Manuale di Diritto Penale.

Não se deve esquecer, ainda, ter o STF, recentemente e no inquérito nº 1957-PR, entendido que o anonimato é postura afrontosa ao Estado de Direito e, para deflagrar procedimento de averiguação de verossimilhança da vox nullius, este terá de contar com um mínimo de idoneidade. Em outras palavras, num Estado de Direito, exige-se uma justa causa, que é a fundada em indícios razoáveis.

Pano rápido. A doutora Cureau- não agiu com a necessária cautela, atropelou garantias constitucionais fundamentais e abriu um perigosíssimo precedente. Espera-se dela não só uma decisão motivada de arquivamento. No interesse público, aguarda-se que não mais dê guarida – à frente de instituição guardiã da ordem jurídica, do Estado Democrático de Direito, e dos interesses sociais e individuais indisponíveis –, à forma mais torpe, covarde e vil de se atacar.


Wálter Maierovitch


Walter Maierovitch é jurista e professor, foi desembargador no TJ-SP

Nenhum comentário: