sábado, 6 de agosto de 2011

A violência pública e privada

Iriny Lopes*


Correio Braziliense - 06/08/2011
Ministra de estado da Secretaria de Políticas para as Mulheres



A violência, quando evidenciada em espaços coletivos, como a recente tragédia na Noruega, que culminou com a morte de mais de 90 pessoas, ou o massacre da escola de Realengo, no Rio de Janeiro, quando um jovem assassinou 12 estudantes e deixou mais 13 feridos, é algo que causa comoção social. A sua visibilidade se dá pelo impacto e pela surpresa perversa que um indivíduo causa em ambientes públicos.

Para além do fenômeno drástico de um ato isolado, seria interessante refletir como a sociedade, ao evitar enxergar e ouvir o drama que se desenha, colabora para o desfecho extremo de casos como esses. Não se trata de justificar o ato violento, mas de ir além da perplexidade inicial e construir coletivamente comportamentos que evitem tragédias anunciadas. Afinal, nos dois episódios se coloca um ingrediente de formação cultural violenta.

No caso de Realengo, a escolha das vítimas em potencial (10 meninas e dois garotos) evidenciou um ódio às mulheres. No da Noruega, um comportamento xenófobo, racista, de aversão a estrangeiros.

Nos dois dramas, os protagonistas elaboraram e produziram seus planos macabros dentro de casa, lugar que se considera privativo. Às comunidades próximas, aos parentes e vizinhos dos homicidas ficam depois a culpa e a pergunta: “E se eu tivesse estranhado o comportamento, observado os sinais de agressividade, teria conseguido mudar o final dessa história?”

O problema dessa percepção é que as pessoas ficam no “se”, no pronome pessoal conjugado no modo condicional imediato e não utilizam a própria experiência para alterar o processo de construção ideológica (porque se trata de uma ideia, de uma formulação) que levou àquela tragédia anunciada.

A violência contra a mulher reúne esses mesmos ingredientes formadores de homens agressivos, mas sofre de compreensão ainda maior, porque ocorre invariavelmente no espaço privado. O erro dessa lógica se localiza no fato dela extrapolar o ambiente familiar e condenar gerações inteiras a um aprendizado de desigualdade de tratamento entre homens e mulheres e de corporificar, como bem lembrou a antropóloga Débora Diniz, em artigo sobre o caso do goleiro Bruno, “uma ordem social perversa”.

Para a antropóloga, “a vida privada não é um espaço sacralizado e distante das regras de civilidade e justiça. O Estado tem o direito e o dever de atuar para garantir a igualdade entre homens e mulheres, seja em casa ou na rua”.

Há cinco anos, em 7 de agosto de 2006, quando da sanção da Lei Maria da Penha, foi deflagrada uma ação de “visibilização” do problema que afeta milhões de brasileiras e seus filhos e filhas, já que, de acordo com dados do Ligue 180, 65% das crianças e adolescentes assistem diariamente a suas mães serem agredidas por seus companheiros, ou namorados (74%) e há mais de 10 anos (40%).

As ruas já sabem que a Lei nº 11.340/06, chamada de Maria da Penha, serve para punir agressores de mulheres. Pesquisa realizada pela Avon/Ipsos (2011) revela que “94% dos brasileiros já a conhecem”, mas poucos (13%) sabem que a legislação vai além da punição e, talvez por isso mesmo, seja considerada pela ONU como uma das três melhores do mundo nessa área.

A Lei Maria da Penha tem a complexidade que o tema exige. Aborda as medidas preventivas, determina responsabilidades para governos e Poder Judiciário, estabelece o funcionamento da rede de atendimento a vítimas e a punição de agressores. Desde sua implantação, mais de 70 mil mulheres obtiveram na Justiça medidas protetivas para sair da situação de risco.

Romper o círculo vicioso da violência urbana também requer um olhar para dentro das casas, onde milhões de brasileiras sofrem espancamentos, humilhações morais, psicológicas e não raramente acabam mortas pelos maridos, companheiros ou namorados. Significa sair da condicionalidade imediata do “se...” e alterar comportamentos, formação escolar e atitude social, não compactuar mais com a dor, que não é alheia. Ela é o reflexo da nossa mais profunda omissão coletiva.

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