domingo, 25 de setembro de 2011

Regulação da mídia na América Latina

Do sítio do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC):
 

Em sua mais recente publicação, “Vozes abertas da América Latina: Estado, políticas públicas e democratização da comunicação”, (Editora Mauad/Faperj, Rio de Janeiro, 2011), Dênis de Moraes analisa as ações governamentais em países latino-americanos para tentar reverter a concentração monopolista da mídia. Resultado de estudos desenvolvidos pelo autor nos últimos quatro anos, o livro mostra mudanças em legislações e marcos regulatórios que, durante décadas, favoreceram as dinastias familiares que controlam os meios de comunicação em grande parte do continente.



A obra propõe um questionamento frente a atual situação dos meios de comunicação e caminhos para seguir em um ideal democrático, condizente com o contexto de reordenamentos políticos, econômicos e socioculturais na América Latina. Nesta entrevista ao e-Fórum, o autor resume o conteúdo tratado na publicação.


Que avanços são mostrados neste livro com relação as suas pesquisas anteriores?

Vozes abertas da América Latina é um livro dedicado à análise das transformações em curso nos sistemas de comunicação de países latino-americanos com governos progressistas, avaliando suas perspectivas e dificuldades. Não me limito a um diagnóstico sobre mudanças que começam a colocar em xeque o peso desproporcional da mídia comercial na vida cotidiana e na fixação de valores e mentalidades.

Além de evidenciar as providências governamentais para tentar barrar a concentração monopólica da mídia e descentralizar os meios de informação e difusão cultural, reflito sobre questões análogas, que me parecem decisivas para a longa luta pela democratização da comunicação na América Latina.

A primeira questão é a importância estratégica das políticas públicas de comunicação para redefinir o setor de mídia em bases mais equitativas, combatendo assimetrias que têm favorecido a iniciativa privada (hoje, predominantemente nas mãos de dinastias familiares, muitas delas associadas a corporações transnacionais). Está em questão proteger e valorizar as demandas coletivas frente à voracidade mercantil que prospera à sombra da convergência entre as áreas de informática, telecomunicações e mídia, tornada possível pela digitalização. Isso deve ser feito para em benefício do pluralismo, levando em conta as transformações da era digital e a necessidade de definir o que deve ser público e o que pode ser privado.

A segunda questão abordada é a necessidade de desmistificarmos as campanhas opositoras movidas por elites empresariais, midiáticas e políticas contra as medidas governamentais que visam diversificar a radiodifusão sob concessão pública, impedindo que conglomerados e dinastias familiares continuem acumulando uma quantidade alarmante de outorgas de canais de rádio e televisão, além de controlarem a televisão por assinatura e serviços de internet. Os ataques patrocinados pelas corporações midiáticas têm o objetivo, deliberado mas não assumido publicamente, de impedir um convencimento mais amplo da sociedade em torno das mudanças em curso em determinados países.

As campanhas denunciam “ameaças à liberdade de expressão” que estariam sendo praticadas por governos progressistas. Trata-se de um falseamento claro da questão. O direito de informar e ser informado absolutamente não está ameaçado por legislações democratizadoras, e sim pelos grupos que confundem e reduzem a liberdade de imprensa à liberdade de empresa. O jurista Fábio Konder Comparato, lucidamente, tem enfatizado que o conceito de liberdade de expressão está indissociavelmente vinculado aos direitos públicos e às aspirações coletivas, sem qualquer subordinação a interesses privados ou ambições particulares. Na verdade, qualquer modificação que possa afetar as suas receitas com as joias da coroa – as licenças de canais de rádio e televisão – é rechaçada pela violência discursiva dos grupos midiáticos. Como se as outorgas de radiodifusão fossem propriedades exclusivas, quando, apenas, são concessões do poder público, com prazo de validade fixado em lei, sendo renováveis ou não.

De que forma a comunicação se relaciona com as constantes mudanças no governo e as crises políticas na América Latina e como ela afeta a democracia?
 

Mais do que nunca, a comunicação desempenha um papel decisivo nas disputas de sentido que conformam ou modificam a opinião pública e valores sociais. Os processos comunicacionais estão entranhados na batalha das ideias pela hegemonia – aqui entendida no sentido proposto pelo filósofo marxista italiano Antonio Gramsci: a conquista do consenso e da liderança cultural e política por uma classe ou bloco de classes em torno de determinadas concepções de vida e valores. Daí a importância de evoluirmos para um sistema de mídia que permita múltiplas vozes de se expressarem livremente, sem sujeição aos impérios empresariais. Um sistema de míidia que, incorporando usos e benefícios tecnológicos, favoreça a diversidade informativa, a criatividade, o trabalho cooperativo, a participação social e os direitos da cidadania.
 

As atuais revoltas pelo mundo evidenciaram a abrangência da internet e das redes sociais na disseminação da informação. Isso já vem sendo considerado na América Latina?
 

Sem dúvida. O valor da Internet para a pluralização informativa e cultural e para o ativismo sociopolítico vem se acentuando tanto no plano governamental, quanto no seio da sociedade civil. Trata-se de um ecossistema descentralizado e interativo, não sujeito aos crivos e idiossincrasias da mídia comercial, portanto tendencialmente propício à multiplicação das fontes e à disseminação de pontos de vistas e valores que escapam aos mecanismos de controle de informação e opinião dos meios, classes e instituições hegemônicos.

Cada vez mais governos progressistas percebem a necessidade de expandir seus espaços de divulgação e de interlocução com a sociedade civil, o que tem se traduzido na expansão e no aprimoramento de portais de órgãos estatais (agências de notícias, emissoras de rádio e televisão, jornais e boletins eletrônicos) e na utilização das redes sociais (Twitter, Facebook, Youtube) para veicular conteúdos de interesse coletivo geralmente minimizados ou ignorados nos noticiários midiáticos. No Twitter, podemos acompanhar os pontos de vista dos presidentes da Venezuela, Hugo Chávez, e da Argentina, Cristina Kirchner. Eles diariamente interagem com uma quantidade impressionante de internautas (Chávez com dois milhões de seguidores; Cristina, com 600 mil). Do mesmo modo que, no Youtube, são disponibilizados vídeos sobre atos públicos que dificilmente seriam transmitidos por emissoras de TV ou por portais midiáticos.

Devemos salientar que os usos promissores da Internet estão longe de se esgotar em intervenções governamentais. O ambiente autônomo e interativo do ciberespaço tem proporcionado a entidades e organismos da sociedade civil formas diferenciadas e promissoras de transmissão informativa, burlando a crônica desconfiança dos meios tradicionais em relação às reivindicações comunitárias e aos movimentos sociais.

As fontes alternativas incluem agências de notícias autônomas, portais, jornais estatais e redes sociais, em que os conteúdos são escolhidos e veiculados não em função de ambições concorrenciais e propósitos mercantis, e sim para dar visibilidade de um conjunto de temas e anseios da coletividade, englobando direitos humanos, ecologia, meio ambiente, reivindicações trabalhistas, educação e cultura populares, inclusão social, democratização das tecnologias e do conhecimento, questões de gênero, reforma agrária, reforma urbana, segurança pública, desenvolvimento sustentável, etc.

Essa diversificação temática rompe com as agendas noticiosas fixadas unilateralmente pela mídia, de acordo com suas visões, não raro, excludentes e discriminatórias. Há um crescente sentido público na utilização das redes virtuais, que se combina com novos padrões de sociabilidade, criatividade e inovação. Sem contar as ferramentas digitais que são crescentemente apropriadas pelo ativismo sociopolítico, como o atestam as mobilizações virtuais nos protestos populares recentes na Espanha e no Chile, e para a divulgação independente de conteúdos políticos e diplomáticos antes mantidos em sigilo, como ocorre graças ao site Wikileaks.

Porém, não devemos cair na tentação de acreditar que a solução dos problemas comunicacionais tende a se resolver com a virtualização. Sabemos que as tecnologias não desfazem desigualdades sociais graves; pelo contrário, a despeito dos progressos verificados nos últimos anos, parcela muito significativa das populações mundial, latino-americana e brasileira continua excluída dos acessos e benefícios tecnológicos, bem como segue alijada das condições socioculturais e educacionais adequadas para uma utilização consistente e proveitosa das tecnologias. Indispensável sublinhar que o virtual não substitui métodos e ambientes clássicos de mobilização, participação e luta social.

Continua sendo no território físico, socialmente vivenciado, que se travam as lutas cruciais pela emancipação e pela democratização da sociedade, cultura, da riqueza e da renda. O que existe, sim, é uma interessante relação de complementariedade entre real e virtual, em que novas metodologias de produção, difusão, transmissão, recepção, consumo, interação e sociabilidade se afirmam no universo das redes virtuais, realçando identidades e afinidades eletivas, o que pode representar, dependendo de cada caso, mais colaborações, permutas, intercâmbios e até coesões.

Por fim, percebo, com bastante preocupação, que, ao lado das utilizações sociais da Internet, cresce a mercantilização do ciberespacio, promovida por corporações com poderio financeiro, mercadológico e logístico. O mundo virtual não escapa da obsessão dos agentes do capital de extrair o maior lucro ao menor custo possível. Seus tentáculos estendem-se ao comércio, à publicidade e aos serviços on line. Sem falar que as publicações eletrônicas de grupos midiáticos reproduzem, via de regra, mecanismos de controle monopólico da informação empregados pelos veículos de massa, o que lhes permite ampliar, também no âmbito virtual, sua influência na formação da opinião pública.

Portanto, uma análise do fenômeno Internet precisa ser abrangente, para dar conta da complexidade envolvida. Trata-se de um ambiente tecnológico de usos múltiplos, que, a um só tempo, alarga as fonteiras de expressão, difusão e interação, a baixo custo e sem submissão às estruturas midiáticas, e favorece a comercialização indiscriminada. Não se pode isolar um elemento de análise do outro; devemos problematizá-los, pois ambos se manifestam no cenário virtual, gerando ambivalências, dilemas e contradições.


Existe algum país com uma política pública efetiva a fim de desmantelar o cartel midiático?

O bloco mais ativo é formado por Venezuela, Bolívia, Equador e Argentina, cujos governos são ostensivos na rejeição ao monopólio privado da mídia e ao seu desmedido predomínio na vida social. Entre as medidas que vêm sendo tomadas, devemos destacar as novas legislações para a radiodifusão sob concessão pública, a fim de coibir a concentração dos setores de radio e televisão nas mãos de poucos grupos privados.

Como aponto no livro, a Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual da Argentina já é um paradigma internacional de legislação antimonopólica. Os governos do Uruguai e do Equador nela se baseiam para elaborar, neste momento, anteprojetos que visam estabelecer regras democráticas para a radiodifusão, garantindo espaços aos setores públicos, sociais e comunitários. Importante realçar que as providências antimonopólicas variam de país para país, refletindo peculiaridades socioculturais e correlações de força específicas de cada cenário politico. Mas há consenso de que as disposições legais precisam assegurar condições equânimes em termos de acesso, participação e representatividade nos sistemas de radiodifusão, para que haja equilíbrio nas prerrogativas de atuação entre três instâncias envolvidas: o próprio Estado (com serviço público de qualidade e diversificado), o setor privado (com fins lucrativos e responsabilidades sociais bem definidas) e a sociedade civil (movimentos sociais, comunitários e étnicos, universidades, associações profissionais, produtores independentes, etc.).

No livro são citados os quatro países onde estão ocorrendo mudanças nos marcos regulatórios da radiodifusão. Por que o Brasil ainda não avançou nesse sentido?

Esta é uma pergunta que se impõe, já que, depois dos dois mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva e dos primeiros nove meses do de Dilma Rousseff, continuamos com um dos sistemas de comunicação mais atrasados e anacrônicos da América do Sul. Espero que Dilma venha a propor ao Congresso ou apoiar um projeto de lei que, tomando em consideração as singularidades do caso brasileiro, se inspire nas disposições antimonopólicas da lei em vigor na Argentina, cuja metodologia de elaboração foi participativa e inclusiva.

A presidenta Cristina Kirchner reuniu-se, por diversas vezes, com os setores da sociedade civil envolvidos na matéria, inclusive o empresariado da mídia, a fim de ouvir suas reivindicações. Meu livro defende a tese de que avanços convincentes na luta pela democratização dependerão de vontade política, pressão social organizada e respaldo popular. Não adianta ter apenas boas intenções. É preciso um compromisso político permanente com a diversidade para fazer frente às campanhas midiáticas que desejam preservar privilégios acumulados durantes décadas. A verdade é que uma sociedade complexa, diversificada e desigual como a nossa não pode permanecer, por mais tempo, refém das visões de mundo, das idiossincrasias e dos interesses corporativos da mídia hegemônica.

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