sexta-feira, 27 de julho de 2012

O STF agirá como corte criminal, e não ‘política’

 
 
por Pedro Estevam Serrano*



Uma questão que tem ocupado espaços nobres de debate na mídia é a de que se deve o chamado caso do mensalão ter um julgamento técnico-jurídico ou político.

A rigor o tema é ao menos parcialmente vazio de sentido. A jurisdição como função constitucional do Estado é uma função sempre política, pois trata-se de uma das atividades fundamentais que se realizam pela possibilidade do uso legitimo da violência para fazer valer suas determinações.


Por outro lado, essas mesmas determinações são produzidas por seus agentes, os magistrados, não com fundamento em sua vontade autônoma, mas sim com fulcro na vontade heterônoma da lei, como forma de solução definitiva de conflitos de interesse, e neste aspecto são técnico-jurídicas por excelência, ou seja, o poder político é exercido através e submisso ao direito e não ao largo dele. É assim que funciona o chamado Estado de Direito.

Mas a expressão “político” não tem sido usada por alguns formadores de opinião nesse sentido que expressei acima. Em essência, argumentam que como o julgamento do “mensalão” será realizado pelo STF e este é uma corte constitucional, e não um tribunal comum, tal julgamento deve se dar com a busca de um equilíbrio entre o juízo que emana do processo e a satisfação da chamada opinião pública, pois, segundo esse entender, as cortes constitucionais atuam com uma esfera de agir autônomo maior que a dos juízes comuns na interpretação da lei. Este o sentido da expressão “julgamento político” que parcela da mídia quer ver realizado no caso do “mensalão”.


Tal opinião expressa um efetivo desconhecimento das competências constitucionais e da natureza jurídica-institucional de nossa Suprema Corte.


De forma sintética, nos limites que possibilita um texto jornalístico, podemos afirmar, grosso modo, que dois modelos de jurisdição constitucional foram conformados no primeiro mundo desde o surgimento do Estado Constitucional de Direito.


A jurisprudência norte-americana, a partir do clássico Caso Marbury vs. Madison, construiu seu sistema de controle de constitucionalidade pelo chamado judicial review, ou seja, a constitucionalidade das leis é controlada pelo exercício corrente da atividade judicial comum. A partir de casos concretos de conflitos entre pessoas, as leis podem ser declaradas inconstitucionais.
Como há naquele país a figura jurídica do precedente, que obriga os órgãos judiciais a adotar as decisões anteriores de tribunais superiores em casos semelhantes, a decisão da Suprema Corte que declara inconstitucional uma lei num caso concreto acaba tendo efeito para toda a sociedade.


Já na Europa continental a forma historicamente construída de controle de constitucionalidade das leis foi outra, iniciando-se na Constituição Austríaca de 1920, aperfeiçoada por emenda de 1929, por inspiração de um dos maiores juristas do direito contemporâneo, Hans Kelsen, e influenciada certamente pelo fato de inexistir nos sistemas jurídicos da Europa continental a figura jurídica do precedente com vinculação de decisões futuras.


No sistema europeu, o controle de constitucionalidade, com as eventuais peculiaridades de cada país, é feito de forma concentrada por um órgão distinto do Poder Judiciário, chamado normalmente de Corte Constitucional, ou seja, as leis tidas como inconstitucionais têm seu controle realizado em abstrato, sem estar relacionado ao julgamento de um caso judicial concreto, por um órgão não integrante da estrutura do Poder Judiciário.


Na concepção de Kelsen, as cortes constitucionais teriam assim um papel de legislador negativo mais que de juízes, revogando leis tidas como inconstitucionais.


Daí surgem as concepções doutrinárias, mal compreendidas por parcela de nossa mídia, que atribuem à jurisdição constitucional um caráter mais político do que técnico-jurídico, a partir da visão que as normas constitucionais seriam dotadas de uma inafastável amplitude e vaguidade semântica que exige de seu aplicador mais que uma mera interpretação técnica, aproximando-a mais da atividade política do legislador que daquela do juiz comum.


Divergimos desse ponto de vista que vê tamanho poder do aplicador da norma constitucional na formulação de seu sentido, por entendê-lo superado no atual momento do pensamento jurídico, mas a questão da natureza constitucional do julgamento do mensalão não exige ingressar neste debate para ser deslindada.
Nossa Constituição

 adotou um modelo híbrido de controle de constitucionalidade entre os sistemas norte-americano e europeu, podendo ser realizado tanto de forma abstrata quanto no julgamento de casos concretos.


E mais: nosso STF, embora realize o controle abstrato de constitucionalidade, é órgão integrante do Poder Judiciário, possuindo além das atribuições de corte constitucional uma série de competências próprias de uma corte judicial comum, como o julgamento de recursos extraordinários em processos comuns, de mandados de segurança contra algumas autoridades federais, o julgamento de alguns processos crimes etc.


O STF não é uma corte constitucional apenas, pois exerce mais funções que o controle de constitucionalidade.


E aí o grande equívoco manifestado em editoriais e artigos de parte de nossa mídia. Ao julgar o caso do mensalão, o STF não estará atuando como corte constitucional, não estará realizando qualquer forma de controle de constitucionalidade, mas sim atuando como uma corte criminal comum, conforme a alínea “b” do artigo 102 de nossa Constituição.


Atuará como órgão de aplicação da ordem jurídica penal, nem se cogitando de exercer o papel supostamente “político” que parcela de nossa doutrina enxerga nas cortes constitucionais.


Das áreas do Direito em que atua nossa Jurisdição, certamente a criminal é a que o magistrado ou a corte julgadora mais deve ter sua decisão amalgamada às provas do processo, ao ponto de em havendo dúvida razoável quanto à autoria ou a materialidade do delito, o réu deve ser julgado inocente. É a chamada presunção de inocência.


A lei penal é, sem duvida, a que menos permite ao intérprete construções subjetivas autônomas em sua interpretação, pois, por ditame constitucional as normas penais devem ser interpretadas restritivamente, salvo quando em benefício do réu.


Querer que o magistrado leve em conta uma chamada opinião pública, que em verdade é a opinião publicada, numa decisão de processo-crime, como forma de mitigar o valor das provas constituídas no processo, mais que uma ofensa a direitos fundamentais dos acusados, é um inequívoco atentado aos valores e princípios mais comezinhos de um Estado Democrático de Direito. Trata-se de querer transformar o julgamento em linchamento.


Cabe, sim, a uma mídia democrática fiscalizar se o STF na fundamentação de sua decisão a realizará segundo as provas do processo e de acordo com nossa ordem jurídica e não procurar substituir a magistratura no exercício de suas funções.
*é advogado, colunista do site de CartaCapital e professor da Faculdade de Direito da PUC-SP

2 comentários:

julio disse...

Não se devem cometer equívocos propositais. Oficialmente, a Corte Jurídica brasileira decide sobre aspectos de Direito, de Justiça, com imparcialidade, e não de forma política. Não obstante os seus ministros sejam, imoralmente, de indicações políticas do presidente da República.
Nos Legislativos, os seus Conselhos de Ética, estes sim, decidem diferentemente dos procedimentos do Poder Judiciário, onde os julgamentos são políticos e dizem respeito aos indícios de práticas de atos contrários à ética e ao decoro parlamentar.

Audo disse...

O imoralidade nas indicações dos minstos do STF pelos presidentes, reside no fato de o próprio executivo apostar nas indicações espúrias para que bandidos togados possam livrar a cara de corruptos e corruptores acampados por vários mandatos no executivo. Dai a reforma no judiciário com o controle externo do STF jamais entrar em pauta de votação.Enquanto essa reforma e reforma política não forem aprovadas tudo não passa de retórica entre o malho e o ferro frio.