terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

JUÍZES E PIERRÔS



Ricardo Giuliani Neto

É carnaval. Voam os confetes e me encanto no multicolorido cipoal das serpentinas. Nos olhos mascarados por sondagens misteriosas, procuro identidades renovadas; encontro práticas carcomidas, envelhecidas por um nojo crescente que parece não ter mais fim. Bronzeados perpétuos esculpem corpos luzentes estimulando sensuais provocações. Há pelancas esvoaçantes encarcerando olhares na liturgia do entrudo momesco.

“Quanto riso, ah! Quanta alegria...”

Como antes, as espumas lançadas selam os reencontros de muito antigamente... Gente que nunca se havia visto, reencontraram-se no lusco-fusco da noite e, como ardores do além-tempo, fizeram-se novos amigos e se lambuzaram de marchinhas de carnaval.

“Foi bom te ver outra vez, tá fazendo um ano, foi no carnaval que passou”.

Ando fantasiado, não sei se de juiz ou de pierrô, enfastiado daquele e deste, mas vou ingênuo, sentimental e cheio de pompons, gola franzida e grande, caminhando escondido na negra capa julgando as minhas próprias fantasias, as tuas condutas e as nossas posturas; examino os biquínis enormes para apreciar os sumaríssimos.

Disfarçado co’a toga, ao ritmo da “Máscara Negra”, com a solenidade de quem reina sobre a liberdade, o patrimônio e a estética dos outros, sobrevôo a humanidade. Tudo a soldo meu, posto nas minhas ingênuas e sentimentais sensações.

Lindas! Feias! Boas! Hipócrita... Nem tão boas! Sentenças arbitrárias típicas das liberdades do carnaval. “Quanto riso, ah! quanta alegria... mais de mil palhaços no salão...” Soa a marchinha como um hino.

Absorvido e encantado com meus poderes momentâneos, saboreio a marcha e pergunto sobre o valor dos justos? Um vencimento? Quantos mil réis? Uma fantasia de pierrô? Ou, três centavos de real? Haveria valor para os justos?

Descem os confetes e o destino nos faz apalpar uns aos outros para continuarmos no infinito círculo dos quase extintos bailes de salão: época de bons julgamentos, bons ventos os que me fazem pierrô... Rompemos as serpentinas e enredamos caminhos. Nesse entrudo, saio juiz... Pierrô desumanizado, fantasiado de caricatura de humanidade; bem que me divirto nesses carnavais. Carne, carne de gente... Preso nas lembranças, afogo vaidades para ouvir rock inglês, uma moda de viola... carnaval... Não quero mais as recordações das leituras descrevendo um mundo que teimo em ver.

“...mais de mil palhaços no salão...”, profética essa marchinha.

Entre palhaços a recordação da leitura na última hora de Última Instância. O TST (Tribunal Superior do Trabalho) negara conhecimento a recurso de uma empresa porque esta recolhera somente R$ 9.617,26, quando na verdade deveria ter recolhido R$ 9.617,29.

Por UM, DOIS, TRÊS centavos, no preparo do recurso, negou-se a jurisdição. TRÊS centavos, quantia que não paga o custo da tinta da caneta usada para a assinatura da decisão... Chora arlequim, chora...

“... eu sou aquele pierrô que te abraçou, que te beijou... meu amor.”

Vergonha! UM, DOIS, TRÊS centavos ... Vergonha... Circulemos no salão. Bebamos do veneno e brinquemos de serpentina... mais de mil palhaços... Música, caricatura de vida engolindo a nós todos.

Julgo as bebedeiras, as imposturas, os dorsos sarados, os cérebros privilegiados e as litúrgicas pelancas, tudo, sem qualquer sem-cerimônia... alegria, alegria... é carnaval... ter vergonha de pelancas penduradas? Não! Nunca! UM, DOIS, TRÊS centavos... e não julgo nada!!! Um viva às pelancas sobreviventes!!!

“A mesma máscara negra que esconde seu rosto...” e faço círculos no salão.

Olha só, vê se dá para encaixar numa música de carnaval, numa cantoria que nos traga alegrias ou numa alegoria qualquer, o argumento do ministro Vieira de Mello Filho? “senão nós vamos discutir se é R$ 0,12; R$ 0,15; R$ 0,03...”

Ah bom!!! “quanto riso, Ah! Quanta alegria, mais de mil palhaços no salão”!!! O arlequim está chorando!!! Ah bom!!! Tudo resolvido!!! Não importa o caso! Importará um pierrô sem-Juízo?

Lá vem ela, linda e esplendorosa, fantasiada de Maria Antonieta, no ritmo da marchinha de carnaval, cabeça segura nos braços, cabeleira de francesinha, canta desafinada: brioches, ao povo, dêem brioches, dêem brioches ao povo... Chora Arlequim, defina as tantas cores que formam tua investidura, mostra tua identidade... Divirta-nos... A sedutora e experta Colombina anda à tua espreita...

Peraí: um brioche custa muitos mais, muitos UM, DOIS, TRÊS centavos?!

“O arlequim está chorando ... no meio da multidão.”

Dizem... Cantarolam... UM, DOIS, TRÊS centavos, inacreditável. Tudo acontece. Três centavos? A 1ª Turma do TST recusou-se ao julgamento, recusou-se a dar jurisdição porque faltaram TRÊS centavos de capacidade para ver um direito muito maior que os livros.

Como eu adoro os livros! Como eu os prestigio... Mas existem pessoas que quando se relacionam com eles somente conseguem dar vida a duas coisas: cupins e egos.

Não esqueça, não, nunca esqueça: “eu sou aquele Pierrô, que te abraçou, que te beijou... meu amor”.

“Vou beijar-te agora, não me leve a mal, hoje é carnaval”.

Sugestão de leitura: Eles, os Juízes, vistos por nós, os advogados. Piero Calamandrei.

Fonte:Última Instância, Segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

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