17/06/2009
Para expulsar indígenas que defendiam seu ambiente e seus direitos na Amazônia, o governo peruano os confrontou com policiais e militares pesadamente armados, deixando pelo menos 155 feridos e dezenas de mortos.
Já seria perturbador em um filme sobre o faroeste do tempo em que o “Destino Manifesto” da nação anglo-saxônica justificava por quaisquer meios a remoção das “raças inferiores” do caminho dos mineradores, vaqueiros e construtores de ferrovias. Mais ainda no século XXI, em um país onde a maioria da população tem ancestrais indígenas.
A história é a mesma, em cenário e ambições que vão muito além do Oeste da América do Norte: “Nosso objetivo com a Alca é assegurar às corporações americanas o controle de um território que vai do Polo Norte à Antártica, livre acesso, sem restrições ou dificuldades, para nossos produtos, serviços, tecnologia e capital por todo o hemisfério”, disse, em 2001, o então secretário de Estado de Bush júnior, Colin Powell.
Pela oposição inicialmente do Mercosul, depois também da Venezuela, a Alca não decolou e os EUA passaram a buscar Tratados de Livre Comércio (TLCs) com seus aliados mais próximos na América Latina. Principalmente esse sucessor do Chile de Pinochet e da Argentina de Menem como nova esperança do neoliberalismo em crise: “O crescimento mais rápido das maiores economias da América Latina novamente será o do Peru, entre outras razões porque seu governo vai manter a fé no livre comércio, em vez do socialismo na moda em outros lugares”, previa para 2009 o articulista de The Economist, Michael Reid.
Logo após a ratificação pelo Congresso dos EUA do TLC com o Peru, em dezembro de 2007, o presidente Alan García publicou no jornal El Comércio o artigo O Cachorro do Chacareiro (El Perro del Hortelano), alusão a um ditado hispânico sobre o cão de guarda que “não come e não deixa comer”.
– Milhões de hectares para madeira que estão ociosos e outros milhões que as comunidades e associações não cultivaram nem cultivarão, além de centenas de depósitos minerais que não se pode trabalhar pelo tabu de ideologias superadas, por preguiça ou pela lei do cachorro do chacareiro, “se eu não faço, ninguém pode fazer”. O velho comunista anticapitalista do século XIX se disfarçou de protecionista no século XX e troca outra vez de camiseta no século XXI para ser ambientalista... criaram a figura do nativo silvícola “não integrado”, em nome do qual milhões de hectares não devem ser explorados.
Para García, ambientalistas, indígenas e pequenos proprietários eram meros obstáculos ao lucro, a serem afastados: “Para que haja investimento se necessita propriedade segura, mas caímos no conto do vigário de entregar pequenos lotes a famílias pobres que não têm um centavo para investir”. Um postura comum entre elites de países da América Latina que enfrentam as mesmas contradições entre direitos dos povos nativos, ambiente e crescimento econômico, inclusive o Brasil, mas há anos tal postura não era expressa de maneira tão crua por um chefe de Estado – nem posta em prática com tamanha violência.
Fazendo uso das faculdades legislativas outorgadas ao Executivo para viabilizar o TLC, o governo, em 27 de junho de 2008, baixou dez decretos para facilitar a entrada de companhias petrolíferas nas terras indígenas e a venda de blocos da selva. Não foram submetidos à consideração das comunidades nativas, como exige a Convenção 169 da OIT sobre direitos dos povos tribais, aprovada em 27 de junho de 1989 e ratificada pelo Peru em 1994 (e pelo Brasil, em 2003).
Em 9 de abril, associações que representam 350 mil indígenas amazônicos de 56 etnias, articuladas na Associação Interétnica de Desenvolvimento da Selva (Aidesep), presidida pelo professor Alberto Pizango, da etnia shawi, iniciaram uma paralisação. Tomaram trechos de estrada, oleodutos e gasodutos, criando desabastecimento e falta de energia em cidades da Amazônia peruana e prejuízos de 120 mil dólares diários à PetroPerú.
O estado de sítio decretado em 8 de maio não interrompeu a mobilização, e o Legislativo começou a ceder. Em 19 de maio, a Comissão Constitucional do Congresso declarou inconstitucional o mais crítico desses decretos, o 1.090, que permitia ao governo vender concessões florestais a critério de um departamento do Ministério da Agricultura. Para a comissão, além de não consultar as comunidades afetadas, o decreto, com base no qual as concessões saltaram de 15% para 72% da floresta, extrapola a delegação do Congresso por não ter relação direta com os termos do TLC. Idem quanto ao decreto 1.064, que elimina o acordo prévio de comunidades para iniciar projetos de mineração ou hidrocarbonos e abre terras da selva à exploração agrícola.
Os indígenas anunciaram que se o decreto 1.090 fosse revogado, levantariam o protesto sem esperar pela anulação dos demais, mas, na quinta-feira 2 de junho, o Partido Aprista (governista) recusou-se a pôr a questão em votação. No dia seguinte, o governo ordenou o ataque aos indígenas.
Uma concentração de 2 mil indígenas que bloqueava uma estrada perto da cidade de Bagua (Departamento de Amazonas, junto à fronteira do Equador) foi emboscada por policiais e soldados pesadamente armados, decididos a quebrar sua resistência à força de rajadas de metralhadoras e bombas de gás lançadas por helicópteros. A sequência dos acontecimentos e o número de vítimas não estão claros e exigem uma investigação independente.
A população de Bagua saiu às ruas, incendiou sedes de órgãos do governo e do Partido Aprista e aprisionou 38 policiais, depois liberados. Segundo o governo, morreram “23 policiais, 5 civis e 4 indígenas”, mas os nativos contam 25 mortos e 50 desaparecidos entre os seus.
Depois de passar dois dias à base de pão e água, em um cárcere com aproximadamente 400 indígenas capturados após o conflito, o índio wanpis Moises Chávez Tuwits conta esgotado a sua versão: “Às 5 da manhã, policiais começaram a jogar bombas de gás lacrimogêneo. Logo, o ataque veio por terra, e balas perfuraram os corpos de dois dos nossos companheiros que estavam na ala da frente do combate. A nossa reação foi imediata: mais de 50 homens rumo à captura de dois policiais”.
No povoado de Wawash, a duas horas da cidade de Bagua, a jovem índia awajun Taly Sábio Piuk está desesperada: pai, irmão e sobrinho ainda não voltaram para casa. “Por que está proibido recolher os corpos dos nossos parentes se os dos policiais foram recuperados normalmente?”, pergunta Heriberto Tiwijan, líder da comunidade nativa local, segundo o qual helicópteros jogaram os cadáveres dos índios no rio Marañon, em sacos negros cheios de pedras. Outros contam que os agentes do governo proibiam a assistência e sequestraram feridos nos hospitais.
O advogado Ernesto de La Jara, do Instituto de Defesa Legal, colheu depoimentos que confirmaram a sinistra ação da polícia peruana e exigiu que o Ministério Público intervenha e envie uma equipe especializada para ouvir as testemunhas e buscar corpos pelo rio.
García pode ter ou não ouvido o gabinete ao autorizar a violência, mas recebeu seu apoio. O primeiro-ministro Yehude Simón, preso pelo regime de Alberto Fujimori sob a acusação de liderar o “braço político” do grupo guerrilheiro Túpac Amaru, defendeu o presidente e a ação, embora se resguardasse alegando que em nenhum momento ordenou o uso de armas letais.
O anúncio do governo na televisão mostrou corpos de policiais esfaqueados e chamou os “pseudonativos” de “selvagens”, “assassinos ferozes” e “extremistas” que obedecem a “determinações internacionais” para “deter o desenvolvimento do Peru” e impedir que o país “desfrute de seu petróleo” com o “assassinato selvagem de policiais humildes”. Exibiu soldados de boinas vermelhas, alusão a Hugo Chávez: “Assim atua o extremismo contra o Peru”.
O governo decretou a prisão de vários líderes indígenas e afirmou que Pizango – que, segundo os indígenas, estava escondido em Lima – teria fugido para a Bolívia, onde seria protegido por Evo Morales. No Congresso, o deputado aprista Luis Gonzáles Posada pediu ao governo para investigar uma “conexão boliviana”, acusando Morales de instigar a revolta. O pretexto era uma carta do boliviano a uma conferência indígena realizada em maio no outro extremo do Peru, em Puno, que teria encorajado os indígenas amazônicos: “Nossa luta não termina, da resistência passamos à rebelião e da rebelião à revolução. Este é o momento da segunda e definitiva independência”.
A propaganda do governo García inverteu os termos do confronto. Transformou os agredidos em agressores e apresentou o conflito como se os nativos invadidos por interesses transnacionais, que vivem no Peru há muito mais tempo que os colonos, fossem os invasores estrangeiros. Reanimou o velho racismo de “peruanos” mestiços ou hispânicos “civilizados” contra os “índios selvagens, pequenos grupos que não representam o que há de mais avançado no país”. Por sinal, os mesmos grupos que em 1995 foram convocados para lutar em nome do Peru na guerra contra o Equador.
O vice-presidente da Bolívia, Álvaro García Linera, respondeu à altura: “É um grande erro querer explicar problemas internos olhando para documentos, livros, cartas ou programas. Nenhum povo se rebela por ler um documento. Os povos se rebelam porque sofrem, porque se sentem humilhados, porque se sentem discriminados, porque se sentem roubados”. Nos dias seguintes, a maré começou a virar-se contra o governo peruano.
Organizações indígenas de vários países – Chile, Bolívia, Colômbia, Equador, Guatemala, Nicarágua e Brasil – condenaram Lima e promoveram manifestações em apoio aos nativos peruanos. O governo da Bélgica pediu uma “investigação profunda e independente”, condenou a “violência desproporcional” e chamou o governo peruano a “retomar o diálogo”.
Uma carta assinada por comissões da CNBB, Conselho Nacional de Igrejas Cristãs, MST, Conselho Indigenista Missionário e Articulação dos Povos Indígenas do Brasil foi entregue à embaixada peruana em Brasília, expressando “indignação e repúdio pelo massacre promovido pelo governo do presidente Alan García”. A Anistia Internacional e a Human Rights Watch criticaram o governo, que também teve de ouvir da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão da OEA, a denúncia do “uso excessivo de força pelos agentes públicos” e da detenção de pessoas das quais não se sabe a identidade e o paradeiro.
Em 8 de junho, a ministra da Mulher e do Desenvolvimento Social, Carmen Vildoso, renunciou, em protesto contra a campanha anti-indígena do governo, também surpreendido pela notícia de que Pizango estava em Lima e pedira asilo à Embaixada da Nicarágua, que o concedeu. Tanto a oposição nacionalista, liderada por Ollanta Humala, quanto a fujimorista de Keiko, filha do ex-ditador, exigiram a renúncia do primeiro-ministro Simón. A CGTP, confederação sindical peruana, anunciou uma marcha de protesto em Lima e várias outras cidades, com apoio de estudantes.
Em 10 de junho, o governo teve de recuar. Depois de fazer um acordo com os fujimoristas e os conservadores da Unidade Nacional, o Partido Aprista votou a “suspensão” dos decretos 1.090 e 1.064. A ministra do Exterior, Mercedes Aráoz, disse que a suspensão “prejudica a implementação do TLC”, mas espera que a norma seja “aperfeiçoada” na negociação com os indígenas “o mais breve possível” para não afetar o acordo com os EUA.
Não bastou: os nacionalistas de Humala votaram contra, exigindo a revogação definitiva do decreto, e os indígenas prometeram continuar a paralisação até conseguir esse objetivo. Novos focos de violência podem surgir nos próximos dias, alerta a procuradora Beatriz Merino, que viajou a Bagua para acompanhar o caso e garantir a segurança dos 79 detidos contabilizados pelo governo.
Já seria perturbador em um filme sobre o faroeste do tempo em que o “Destino Manifesto” da nação anglo-saxônica justificava por quaisquer meios a remoção das “raças inferiores” do caminho dos mineradores, vaqueiros e construtores de ferrovias. Mais ainda no século XXI, em um país onde a maioria da população tem ancestrais indígenas.
A história é a mesma, em cenário e ambições que vão muito além do Oeste da América do Norte: “Nosso objetivo com a Alca é assegurar às corporações americanas o controle de um território que vai do Polo Norte à Antártica, livre acesso, sem restrições ou dificuldades, para nossos produtos, serviços, tecnologia e capital por todo o hemisfério”, disse, em 2001, o então secretário de Estado de Bush júnior, Colin Powell.
Pela oposição inicialmente do Mercosul, depois também da Venezuela, a Alca não decolou e os EUA passaram a buscar Tratados de Livre Comércio (TLCs) com seus aliados mais próximos na América Latina. Principalmente esse sucessor do Chile de Pinochet e da Argentina de Menem como nova esperança do neoliberalismo em crise: “O crescimento mais rápido das maiores economias da América Latina novamente será o do Peru, entre outras razões porque seu governo vai manter a fé no livre comércio, em vez do socialismo na moda em outros lugares”, previa para 2009 o articulista de The Economist, Michael Reid.
Logo após a ratificação pelo Congresso dos EUA do TLC com o Peru, em dezembro de 2007, o presidente Alan García publicou no jornal El Comércio o artigo O Cachorro do Chacareiro (El Perro del Hortelano), alusão a um ditado hispânico sobre o cão de guarda que “não come e não deixa comer”.
– Milhões de hectares para madeira que estão ociosos e outros milhões que as comunidades e associações não cultivaram nem cultivarão, além de centenas de depósitos minerais que não se pode trabalhar pelo tabu de ideologias superadas, por preguiça ou pela lei do cachorro do chacareiro, “se eu não faço, ninguém pode fazer”. O velho comunista anticapitalista do século XIX se disfarçou de protecionista no século XX e troca outra vez de camiseta no século XXI para ser ambientalista... criaram a figura do nativo silvícola “não integrado”, em nome do qual milhões de hectares não devem ser explorados.
Para García, ambientalistas, indígenas e pequenos proprietários eram meros obstáculos ao lucro, a serem afastados: “Para que haja investimento se necessita propriedade segura, mas caímos no conto do vigário de entregar pequenos lotes a famílias pobres que não têm um centavo para investir”. Um postura comum entre elites de países da América Latina que enfrentam as mesmas contradições entre direitos dos povos nativos, ambiente e crescimento econômico, inclusive o Brasil, mas há anos tal postura não era expressa de maneira tão crua por um chefe de Estado – nem posta em prática com tamanha violência.
Fazendo uso das faculdades legislativas outorgadas ao Executivo para viabilizar o TLC, o governo, em 27 de junho de 2008, baixou dez decretos para facilitar a entrada de companhias petrolíferas nas terras indígenas e a venda de blocos da selva. Não foram submetidos à consideração das comunidades nativas, como exige a Convenção 169 da OIT sobre direitos dos povos tribais, aprovada em 27 de junho de 1989 e ratificada pelo Peru em 1994 (e pelo Brasil, em 2003).
Em 9 de abril, associações que representam 350 mil indígenas amazônicos de 56 etnias, articuladas na Associação Interétnica de Desenvolvimento da Selva (Aidesep), presidida pelo professor Alberto Pizango, da etnia shawi, iniciaram uma paralisação. Tomaram trechos de estrada, oleodutos e gasodutos, criando desabastecimento e falta de energia em cidades da Amazônia peruana e prejuízos de 120 mil dólares diários à PetroPerú.
O estado de sítio decretado em 8 de maio não interrompeu a mobilização, e o Legislativo começou a ceder. Em 19 de maio, a Comissão Constitucional do Congresso declarou inconstitucional o mais crítico desses decretos, o 1.090, que permitia ao governo vender concessões florestais a critério de um departamento do Ministério da Agricultura. Para a comissão, além de não consultar as comunidades afetadas, o decreto, com base no qual as concessões saltaram de 15% para 72% da floresta, extrapola a delegação do Congresso por não ter relação direta com os termos do TLC. Idem quanto ao decreto 1.064, que elimina o acordo prévio de comunidades para iniciar projetos de mineração ou hidrocarbonos e abre terras da selva à exploração agrícola.
Os indígenas anunciaram que se o decreto 1.090 fosse revogado, levantariam o protesto sem esperar pela anulação dos demais, mas, na quinta-feira 2 de junho, o Partido Aprista (governista) recusou-se a pôr a questão em votação. No dia seguinte, o governo ordenou o ataque aos indígenas.
Uma concentração de 2 mil indígenas que bloqueava uma estrada perto da cidade de Bagua (Departamento de Amazonas, junto à fronteira do Equador) foi emboscada por policiais e soldados pesadamente armados, decididos a quebrar sua resistência à força de rajadas de metralhadoras e bombas de gás lançadas por helicópteros. A sequência dos acontecimentos e o número de vítimas não estão claros e exigem uma investigação independente.
A população de Bagua saiu às ruas, incendiou sedes de órgãos do governo e do Partido Aprista e aprisionou 38 policiais, depois liberados. Segundo o governo, morreram “23 policiais, 5 civis e 4 indígenas”, mas os nativos contam 25 mortos e 50 desaparecidos entre os seus.
Depois de passar dois dias à base de pão e água, em um cárcere com aproximadamente 400 indígenas capturados após o conflito, o índio wanpis Moises Chávez Tuwits conta esgotado a sua versão: “Às 5 da manhã, policiais começaram a jogar bombas de gás lacrimogêneo. Logo, o ataque veio por terra, e balas perfuraram os corpos de dois dos nossos companheiros que estavam na ala da frente do combate. A nossa reação foi imediata: mais de 50 homens rumo à captura de dois policiais”.
No povoado de Wawash, a duas horas da cidade de Bagua, a jovem índia awajun Taly Sábio Piuk está desesperada: pai, irmão e sobrinho ainda não voltaram para casa. “Por que está proibido recolher os corpos dos nossos parentes se os dos policiais foram recuperados normalmente?”, pergunta Heriberto Tiwijan, líder da comunidade nativa local, segundo o qual helicópteros jogaram os cadáveres dos índios no rio Marañon, em sacos negros cheios de pedras. Outros contam que os agentes do governo proibiam a assistência e sequestraram feridos nos hospitais.
O advogado Ernesto de La Jara, do Instituto de Defesa Legal, colheu depoimentos que confirmaram a sinistra ação da polícia peruana e exigiu que o Ministério Público intervenha e envie uma equipe especializada para ouvir as testemunhas e buscar corpos pelo rio.
García pode ter ou não ouvido o gabinete ao autorizar a violência, mas recebeu seu apoio. O primeiro-ministro Yehude Simón, preso pelo regime de Alberto Fujimori sob a acusação de liderar o “braço político” do grupo guerrilheiro Túpac Amaru, defendeu o presidente e a ação, embora se resguardasse alegando que em nenhum momento ordenou o uso de armas letais.
O anúncio do governo na televisão mostrou corpos de policiais esfaqueados e chamou os “pseudonativos” de “selvagens”, “assassinos ferozes” e “extremistas” que obedecem a “determinações internacionais” para “deter o desenvolvimento do Peru” e impedir que o país “desfrute de seu petróleo” com o “assassinato selvagem de policiais humildes”. Exibiu soldados de boinas vermelhas, alusão a Hugo Chávez: “Assim atua o extremismo contra o Peru”.
O governo decretou a prisão de vários líderes indígenas e afirmou que Pizango – que, segundo os indígenas, estava escondido em Lima – teria fugido para a Bolívia, onde seria protegido por Evo Morales. No Congresso, o deputado aprista Luis Gonzáles Posada pediu ao governo para investigar uma “conexão boliviana”, acusando Morales de instigar a revolta. O pretexto era uma carta do boliviano a uma conferência indígena realizada em maio no outro extremo do Peru, em Puno, que teria encorajado os indígenas amazônicos: “Nossa luta não termina, da resistência passamos à rebelião e da rebelião à revolução. Este é o momento da segunda e definitiva independência”.
A propaganda do governo García inverteu os termos do confronto. Transformou os agredidos em agressores e apresentou o conflito como se os nativos invadidos por interesses transnacionais, que vivem no Peru há muito mais tempo que os colonos, fossem os invasores estrangeiros. Reanimou o velho racismo de “peruanos” mestiços ou hispânicos “civilizados” contra os “índios selvagens, pequenos grupos que não representam o que há de mais avançado no país”. Por sinal, os mesmos grupos que em 1995 foram convocados para lutar em nome do Peru na guerra contra o Equador.
O vice-presidente da Bolívia, Álvaro García Linera, respondeu à altura: “É um grande erro querer explicar problemas internos olhando para documentos, livros, cartas ou programas. Nenhum povo se rebela por ler um documento. Os povos se rebelam porque sofrem, porque se sentem humilhados, porque se sentem discriminados, porque se sentem roubados”. Nos dias seguintes, a maré começou a virar-se contra o governo peruano.
Organizações indígenas de vários países – Chile, Bolívia, Colômbia, Equador, Guatemala, Nicarágua e Brasil – condenaram Lima e promoveram manifestações em apoio aos nativos peruanos. O governo da Bélgica pediu uma “investigação profunda e independente”, condenou a “violência desproporcional” e chamou o governo peruano a “retomar o diálogo”.
Uma carta assinada por comissões da CNBB, Conselho Nacional de Igrejas Cristãs, MST, Conselho Indigenista Missionário e Articulação dos Povos Indígenas do Brasil foi entregue à embaixada peruana em Brasília, expressando “indignação e repúdio pelo massacre promovido pelo governo do presidente Alan García”. A Anistia Internacional e a Human Rights Watch criticaram o governo, que também teve de ouvir da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão da OEA, a denúncia do “uso excessivo de força pelos agentes públicos” e da detenção de pessoas das quais não se sabe a identidade e o paradeiro.
Em 8 de junho, a ministra da Mulher e do Desenvolvimento Social, Carmen Vildoso, renunciou, em protesto contra a campanha anti-indígena do governo, também surpreendido pela notícia de que Pizango estava em Lima e pedira asilo à Embaixada da Nicarágua, que o concedeu. Tanto a oposição nacionalista, liderada por Ollanta Humala, quanto a fujimorista de Keiko, filha do ex-ditador, exigiram a renúncia do primeiro-ministro Simón. A CGTP, confederação sindical peruana, anunciou uma marcha de protesto em Lima e várias outras cidades, com apoio de estudantes.
Em 10 de junho, o governo teve de recuar. Depois de fazer um acordo com os fujimoristas e os conservadores da Unidade Nacional, o Partido Aprista votou a “suspensão” dos decretos 1.090 e 1.064. A ministra do Exterior, Mercedes Aráoz, disse que a suspensão “prejudica a implementação do TLC”, mas espera que a norma seja “aperfeiçoada” na negociação com os indígenas “o mais breve possível” para não afetar o acordo com os EUA.
Não bastou: os nacionalistas de Humala votaram contra, exigindo a revogação definitiva do decreto, e os indígenas prometeram continuar a paralisação até conseguir esse objetivo. Novos focos de violência podem surgir nos próximos dias, alerta a procuradora Beatriz Merino, que viajou a Bagua para acompanhar o caso e garantir a segurança dos 79 detidos contabilizados pelo governo.
Antonio Luiz M.C. Costa, CartaCapital
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