domingo, 21 de junho de 2009

Paulo Abrão:camponeses anistiados são patrimônios da nação


A rotina pesada dos últimos dias envolvendo julgamento e oitivas em Brasília e em São Domingos do Araguaia (PA) deu ao presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão, um ar ao mesmo tempo cansado e satisfeito. Após a anistia de 44 camponeses, 72 outros foram ouvidos para elucidar dúvidas sobre seus processos, a serem analisados ainda neste ano. “É um sentimento de dever parcialmente cumprido”, diz Abrão ao Vermelho. Para ele, os camponeses são “protagonistas da construção democrática do Brasil”.


Abrão: reconhecimento oficial não tem volta A concessão de anistia política a esses 44 camponeses do Araguaia, na sua avaliação, encerra um ciclo que estava em aberto desde a guerrilha, há mais de 30 anos?


Ainda é cedo para afirmar isso porque vai depender da análise dos depoimentos que colhemos nesta sexta-feira (19). Se forem suficientes para a instrução final dos requerimentos que estão na Comissão de Anistia, muito em breve saberemos. Mas, se entendermos que ainda não são suficientes, a Comissão não deixará de empenhar seus esforços, mesmo que tenhamos que voltar aqui pela quarta vez à região do Araguaia, para colhermos as últimas informações que possibilitem levarmos justiça para quem ainda está esperando. Por outro lado, temos de ver que o ciclo não se esgota com a reparação; resta pendente a busca dos corpos, a abertura dos documentos oficiais e a ação junto à Corte Interamericana de Direitos Humanos. O ciclo somente poderá ser encerrado quando, depois que a reparação estiver concluída – e essa é nossa tarefa na Comissão – houver responsabilização, verdade e justiça com relação aos crimes cometidos durante a ditadura.

Como a investigação e a reparação aos camponeses contribuem para a elucidação de episódios relacionados à ditadura?

A primeira contribuição é o fato de que a declaração de anistiado político que essas pessoas estão recebendo, do ponto de vista jurídico, é o reconhecimento público pelo Estado de que esses fatos ocorreram. Portanto, o Brasil admite oficialmente que torturou, prendeu arbitrariamente e cometeu abusos sexuais através de suas forças repressoras, violando os direitos humanos dessa população no contexto do combate aos guerrilheiros. O reconhecimento oficial não tem volta. A partir disso, certamente poderemos dar novos passos na tentativa de não só buscar documentos e registros oficiais, como também para mostrar à sociedade brasileira que essa região foi sitiada e isolada do resto do país e ficou esquecida por mais de 30 anos já que intencionalmente não se promovia nenhuma atividade nessa região por conta do receio de vir à tona tudo o que de fato aconteceu aqui. Por conta disso, a região onde ocorreram os conflitos acabou ficando ainda mais atrasada socialmente do que as demais regiões do Norte do país. Perceba o quanto isso significa em termos de aprofundamento das desigualdades sociais desse povo. A partir desse reconhecimento oficial, tanto o governo federal quanto o estadual devem passar a promover políticas públicas para acelerar o processo civilizatório aqui, processo esse que significa a conquista de direitos e a implementação de políticas públicas de efetivação dos direitos humanos e sociais, como educação, saúde e cultura. Essa é a minha esperança e a minha expectativa.


Acredita que a atuação dos comunistas na região naqueles anos semeou algo nessa região?

É interessante sua pergunta por que o episódio da guerrilha dá notoriedade à região. E se há algo primordial que foi deixado de lição com relação aos guerrilheiros, aos resistentes brasileiros – tratados pelos militares como terroristas, como pessoas inimigas do Estado brasileiro – é a de que hoje o povo da região percebe como, em verdade, a guerrilha foi um espaço de resistência e de conquista da democracia. Portanto, os moradores da região, tanto quanto os perseguidos famosos, também são protagonistas da construção democrática do Brasil. Esse empoderamento individual, que lhes garante o papel de memória viva de nossa história – e nesses termos, são um patrimônio da nação brasileira – pode desembocar num processo interessante de politização e de valorização dos direitos políticos, dos princípios democráticos, da participação na luta de resistência contra todo tipo de tirania e arbitrariedade. Quando se considera a parcela da população mais humilde, que não teve acesso a seus direitos mais elementares, essa lição simbólica, esse gesto maior, talvez seja tão importante quanto os anos de escola que eles deixaram de ter ao longo do tempo.

Os primeiros resultados desse julgamento foram satisfatórios?

Sim, estou muito satisfeito porque foram dois anos de intenso trabalho. Talvez somente o portal Vermelho saiba o quanto isso foi trabalhoso porque vocês nos acompanharam em todas as edições dessas nossas atividades. O que dá mais satisfação é ver o trabalho e o empenho de nossos conselheiros, que prestam voluntariamente, sem receber nenhum pagamento por isso, um serviço de relevante interesse do povo e da nação. E fazem isso apesar de saberem que as políticas de direitos humanos ainda não são prioridade em nosso país, mesmo dentro do governo Lula. Quando vemos nos olhos desse povo a volta da crença na justiça, quando vemos a reconciliação desses brasileiros com sua pátria e o rompimento com o rancor de mais de 30 anos de esquecimento, temos que estar satisfeitos. É um sentimento de dever parcialmente cumprido.


Na sua avaliação, o que impede que a questão dos direitos humanos esteja na centralidade do governo Lula e dos governos brasileiros de maneira geral?

Acho que esse impedimento está principalmente na falta de formação política de nosso povo. Nem sempre basta o fato de os governantes serem esclarecidos; é necessário que a população também pleiteie politicamente esse assunto como uma questão prioritária para a nação.

Mas dentro do governo, há divergências sobre essa questão, notadamente na responsabilização dos torturadores...

Minha tese é a seguinte: enquanto os direitos humanos não forem tema de um debate público de uma campanha para a presidência da República, isso não se tornará uma prioridade no Brasil. Em países como Chile, Argentina e Uruguai, por exemplo, o processo de responsabilização dos torturadores, a revogação da lei de anistia, só se deu porque houve um processo de conscientização pública da sociedade no debate político durante as campanhas eleitorais. E aqui no Brasil, de algum modo, há ainda um fortíssimo receio de se publicizar as opiniões em relação às posições políticas e públicas dos nossos potenciais candidatos em relação a esse tema. E não deixa de ser uma postura conservadora. As eleições de 2010 podem ser uma oportunidade, até porque os dois principais potenciais candidatos à presidência da República (Dilma Roussef e José Serra), são dois ex-perseguidos políticos. Esse fato pode, por um lado, indicar que esse debate ocorra. Mas, por outro, também pode haver uma espécie de visão presa apenas à simbologia relacionada ao fato de eles terem sido perseguidos, inteirando assim a velha noção falaciosa de que o importante é olhar para frente e não discutir o passado. No entanto, quero reafirmar que minha percepção é a de que, se queremos que esse debate seja um debate público mesmo em época de campanha eleitoral, isso tem que ser uma reivindicação da sociedade civil.


De Marabá,
Priscila Lobregatte

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