quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Presidente do Incra defende repasse a quem apoia reforma agrária

O presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Rolf Hackbart, diz que está preparado para defender a legalidade dos repasses de recursos a entidades privadas ligadas à reforma agrária na Comissão Parlamentar de Inquérito Mista (CPMI) criada para apurar possíveis irregularidades nesse tipo de operação.


"Nossa política é pública, é transparente, a sociedade conhece, pela execução orçamentária do Siafi [Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal], pela fiscalização do TCU [Tribunal de Contas da União]", diz.

Com seis anos e três meses à frente do Incra – o mais antigo no cargo – e o feito de ter assentado 529,4 mil famílais em 42,3 milhões de hectares no atual governo, Rolf Hackbart afirma que gostaria de aproveitar a oportunidade para defender um novo modelo agrícola sustentável para o país, a partir da experiência dos assentamentos da reforma agrária.

"Se o planeta e o Brasil continuarem com o atual modo de produção e de consumo, o planeta explode. E olha que eu não sou catastrofista, não vai explodir amanhã. Não é isso – a contaminação pelos agrotóxicos, a monocultura, a concentração da propriedade da terra tornaram esse modelo insustentável", ressalta Hackbart, em entrevista à Agência Brasil. Para ele, a solução para a produção de alimentos "limpos", livres de agrotóxicos, é a desconcentração da propriedade rural e a criação de cadeias produtivas que respeitem o bioma de cada região do país.

Com um orçamento de R$ 4,6 bilhões para ser executado em 2010, três vezes mais do que quando assumiu o Incra em 2003, Hackbart quer dar mais atenção à melhoria de qualidade e rentabilidade dos assentamentos, sempre respeitando o meio ambiente. O Incra tem hoje 500 técnicos que trabalham com manejo sustentável e licenciamento ambiental.

Também em 2010, o Incra vai fiscalizar milhares de propriedades rurais com área superior a 15 módulos rurais para averiguar se estão respeitando o meio ambiente, se cumprem com os níveis de produtividade e as obrigações trabalhistas. Devem ser vistoriadas mais de 7 milhões de áreas agricultáveis das diversas regiões do país. Quem estiver fora da lei poderá ter suas terras desapropriadas.

A seguir a integra da entrevista:

Agência Brasil (ABr): João Pedro Stédile, coordenador do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, diz que se o governo tivesse feito a reforma agrária, o MST não teria necessidade de existir.

Rolf Hackbart: O governo Lula criou 3,139 mil assentamentos de 2003 para cá e destinou 42,3 milhões de hectares de terras para a reforma agrária. O orçamento do Incra passou de R$ 1, 5 bilhão em 2003 para R$ 4, 6 bilhões em 2009. Nós incluímos no governo Lula 529,481 mil famílias no programa da reforma agrária. Isso representa, na minha opinião, a prioridade para a reforma agrária.

ABr: Então, a crítica não é justa?


Hackbart: Não acho justa, até porque eu entendo que a existência do MST e de outros movimentos sociais vai além do acesso à terra. Não é só acessar a terra. Fazer reforma agrária é obter terras, assentar as famílias, criar linhas de crédito e produzir. Os movimentos sociais se organizam por crédito, assistência técnica, educação e moradia. Nos próprios assentamentos onde o MST tem influência, a principal pauta é a liberação do recurso para construção e recuperação de casas.

ABr: Como o senhor se sente executando um programa como esse, que é contestado de um lado por quem representa os beneficiados e de outro pelo latifúndio?


Hackbart: Eu me sinto tranquilo operando dentro dessas contradições, lutando por um país mais justo, para mudar o modelo agrícola. O Incra, na minha gestão, reflete a correlação de forças da sociedade, que se organiza, que pressiona no Parlamento, que pressiona na mídia. Não existe uma visão de que a reforma agrária está pronta, não. A propriedade e o uso da terra no Brasil ainda são muito concentrados. O último senso agropecuário do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] vai mostrar que a desigualdade não aumentou, o que é um avanço, embora ainda haja uma concentração da propriedade enorme. Uma sociedade não se desenvolve com concentração de renda, nesse caso, do meio de produção terra, que é um meio de produção finito. O nosso grande desafio continua sendo o de desconcentrar a propriedade da terra para um conceito moderno de reforma agrária.

ABr: E como se pode obter novas áreas?


Hackbart: Só podemos obter novas áreas avaliando se as propriedades cumprem a função social. Nós vistoriamos por ano, em média, 7 milhões de hectares de terra, o que não quer dizer que todos vão ser obtidos para a reforma agrária. São vistorias para ver se esses imóveis cumprem ou não a função social: se produzem, se respeitam a legislação ambiental e trabalhista.

ABr: E qual é o conceito moderno de reforma agrária?


Hackbart: O conceito moderno é o que vem do Estatuto da Terra, que resgata a pauta de movimentos sociais e estudiosos da academia, que parte do raciocínio por bioma. Deve, a partir daquele bioma, definir como se dará o destino das terras. Para que tipo de produção? Para que tipo de cultura? Uma atividade produtiva que proteja o meio ambiente e gere renda. E mais, eu entendo que um dia o país vai avançar, quando debater o limite do tamanho de propriedade rural. Não pode é não ter limite.

ABr: Qual deveria ser o limite de área de propriedade rural?


Hackbart: Isso ninguém sabe. Acho que isso tem que ser o resultado do debate da sociedade, e eu acho que é por bioma, ainda gosto do velho conceito de bacia hidrográfica, mas hoje é moderno chamar de bioma, é mais atual. Nesse bioma, qual é o limite do tamanho de propriedade? A sociedade tem que dizer que aqui tem um limite. A correlação de forças da sociedade hoje no Brasil não permite esse debate.

ABr: O senhor está dizendo que o andamento da reforma agrária, na verdade, é resultante de uma correlação de forças da sociedade.


Hackbart: Também é resultado da correlação de forças e de uma decisão política do governo, evidentemente. Também é, e eu sinto isso muito na pele, resultado da capacidade operacional do estado. Nós temos cerca de 3.300 assentamentos onde vivem 1 milhão de famílias em 80 milhões de hectares. O Estado presta assistência técnica, faz estrada, escola, leva luz, dá educação. Não é só o Incra – são os prefeitos, os governadores. A União precisa de mais estrutura, mais equipamento, mais técnico qualificado e mais parceria. Cobrar tudo do Incra é impossível, isso que nós temos que rever.

ABr: E do ponto de vista da eficácia e da eficiência, hoje consegue-se fazer um assentamento com custo menor do que em 2003?


Hackbart: Esse é o tipo de raciocínio de que eu gosto de tratar, no seguinte sentido: É um investimento. Caro é ter criança na esquina pedindo esmola, caro é construir presídio, caro é a fome, caro é não ter cidadania. Hoje, em média, no Brasil para assentar uma família, [o custo] fica entre R$ 50 mil e R$ 60 mil. Uma família que gera, segundo o IBGE, três empregos diretos. No Nordeste é mais barato, no Centro-Oeste é mais caro. Isso é investimento porque nós estamos tratando aqui de problemas estruturais e não de conjunturais. Vai ter acesso à terra ou não, vai ter a casa ou não, vai ter água ou não, vai ter energia ou não. E o grande desafio que eu vejo na sociedade brasileira é enfrentar um novo modo de produção na agricultura.

ABr: A reforma agrária está fora desse modelo?


Hackbart: Não, a reforma agrária está dentro do novo modo de produção da agricultura. É que as pessoas ainda veem a reforma agrária como pegar um pedaço de terra e dividir, partilhar. Não. O novo modo de produção na agricultura – e Copenhague vai mostrar isso agora, já está mostrando – que se o planeta e o Brasil continuarem com o atual modo de produção e de consumo, o planeta explode. E olha que eu não sou catastrofista, não vai explodir amanhã. Não é isso – a contaminação pelos agrotóxicos, a monocultura, a concentração da propriedade da terra, a terra ainda como reserva de valor tornaram esse modelo insustentável.

ABr: Há críticas segundo as quais os assentamentos não respeitam o meio ambiente. O Incra cobra dos assentados um compromisso com a preservação?


Hackbart: A proteção do meio ambiente é prioridade da reforma agrária. Todo assentamento reflete a realidade econômica, social e ambiental daquela região. O que quero dizer? Tem problema ambiental nos assentamentos? Claro que tem. Imagina se no norte de Mato Grosso e no sul do Pará não tem. Onde é o arco do desmatamento, então tem. Em 2004, criamos a Coordenação de Meio Ambiente no Incra. Hoje, há mais de 500 técnicos trabalhando com manejo sustentável e licenciamento ambiental. Nós entramos com 4, 193 mil pedidos de licenciamento dos assentamentos. Temos exemplos de produção, de preservação ambiental fantásticos do Brasil inteiro, de assentamentos que produzem e protegem o meio ambiente. Acho que isso é um indicador de que um dia a sociedade começará a observar que dá para fazer diferente.

ABr:Que tipo de coisas?


Hackbart: Manacapuru, por exemplo, em Manaus, tem 1.600 famílias em dois assentamentos com proteção ambiental, com reserva ambiental, com a APT [Área de Proteção Permanente] que exportam, vendem filé de peixe, exportam açaí, protegem as águas. Um assentamento no sul da Bahia exporta cacau orgânico, fora o que é para consumo. Qual é nosso desafio nesse caso do cacau? Ele vai em contêineres. E ainda o chocolate na Alemanha, na Bélgica, e a gente compra o chocolate aqui. O que devia ter era a indústria aqui, agregar valor aqui, esse é nosso grande desafio. E assim há vários exemplos no país inteiro.

ABr: Essa visão ecológica de sustentabilidade dos assentamentos pode servir de modelo para a agricultura brasileira?


Hackbart: Ou o desenvolvimento sustentável acontece na prática, ou o modo de produção e de consumo – principalmente esse modo de produção americanizado e de consumo americanizado – vai inviabilizar grandes regiões do país. Quer um exemplo? Desertificação dos solos. Degradação e desertificação: Minas e Rio Grande do Sul, norte de Mato Grosso. Uma das razões, não a única, é a monocultura e o veneno. O desenvolvimento sustentável do ponto de vista econômico, ambiental e social tem que ser perseguido. Aí, nós temos que raciocinar o Brasil por bioma. Como produzir aquele bioma, o que produzir que gere renda, que não seja um aquário, uma ilha isolada, que se integre na economia, que proteja o meio ambiente e que seja socialmente justo? O Brasil é um dos raros países que têm possibilidade de promover desenvolvimento rural sustentável em cidades menores, em regiões menores. E já há pesquisas em universidades mostrando que os jovens das periferias aceitam, gostam ou gostariam muito de voltar para o meio rural. Claro que com condições.

Abr: Quais as metas do Incra para 2010?


Hackbart: Continuar priorizando o acesso à terra. O censo agropecuário mostrou, embora a desigualdade não tenha aumentado, que a concentração da propriedade é alta no Brasil. Vamos implementar a fiscalização cadastral. Aqueles imóveis acima de 15 módulos fiscais serão fiscalizados para ver se cumprem a função social. Se a propriedade é produtiva, cumprir a legislação ambiental e trabalhista. Se não cumprir? Pode ser passível de desapropriação para reforma agrária. Como é que você vai fazer isso? Fiscalização, técnico na rua. A gente fiscaliza 6 a 7 milhões de hectares por ano. Esperamos também melhorar a qualidade de vida nos assentamentos, integrá-los na cadeia econômica. Uma cadeia econômica que produza alimentos limpos, que proteja o meio ambiente. Esperamos ainda fazer um ordenamento territorial e fundiário, onde se inclui a regularização fundiária. A definição do que é área de quilombo, áreas públicas e privadas. Acabar com a grilagem de terras públicas federais, especialmente na Amazônia, que é a grande causa da violência, da destruição do meio ambiente.

ABr: Dá para saber quanto das terras brasileiras estão sem documento?


Hackbart: Ninguém sabe.

ABr: Mas há muitas propriedades que não têm documento?


Hackbart: Não é que não tenham documento. O cartório aceita tudo. Na Amazônia Legal, é clássico: o cartório registra a cadeia dominial e a matrícula do imóvel. Temos que ter um piso fundiário certo. É não ter um andar sobre o outro, vários documentos em cima de um mesmo imóvel. Em Rondônia, nós encontramos casas com 23 documentos. No Pará, o próprio Tribunal de Justiça fez um levantamento nos cartórios e constatou que o estado tem 125 milhões de hectares e eles encontraram mais 124 milhões registrados. Tem que cancelar. E cancelaram um título registrado em um cartório, de 440 milhões de hectares, de um proprietário, metade do Brasil. Você vai para o Uruguai, todo o território tem um nível só. E todo ele já referenciado, cadastrado, registrado.

ABr: E o que vai dar para fazer no ano que vem?


Hackbart: Nós vamos chegar no final do governo com quase 200 mil títulos entregues de regularização fundiária. Nós estamos com mais de 851 processos de delimitação dos territórios quilombolas.

ABr: Como o Incra vai lidar com a instalação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que vai apurar irregularidades no repasse de recursos aos movimentos sociais?


Hackbart: Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, da Câmara e do Senado, é um instrumento do Poder Legislativo, legítimo. Eu não vejo nenhuma necessidade da instalação dessa CPMI. Todos os processos do Incra, da reforma agrária, são públicos, nós somos fiscalizados todos os dias pelo Tribunal de Contas da União, pelo Ministério Público, pela Controladoria-Geral da União. Tivemos agora a CPI da terra e a CPI das ONGs, onde o Incra forneceu literalmente um caminhão de documentos.

ABr: Há denúncias de que parte dos recursos do Incra vai para organizações não governamentais que realizam manifestos contra a reforma agrária.


Hackbart: Isso não procede. Tem setores da sociedade brasileira que são contra a reforma agrária. Então, com essa iniciativa, querem parar a reforma agrária. Eu diria o seguinte: a democracia brasileira custou caro para a sociedade. Ter movimento social organizado para ajudar o trabalhador pobre do campo é muito bom. Pena que tem tão pouco. Eu vou dar um exemplo. Criar um assentamento com 1.125 famílias, como estamos criando agora no sul de Mato Grosso do Sul, se não tiver organização social lá é muito mais difícil. Por isso que o Incra, para executar os seus programas, como assistência técnica, construção de casa, estrada, precisa da parceria de municípios, estados e entidades privadas. E tudo está baseado na lei. O que nós sempre cobramos é a realização do objeto e a correta prestação de contas. E onde isso não for feito, nós tomamos todas as providências.

ABr: O senhor está preparado para responder às demandas da CPI?


Hackbart: Estou preparado. Acho que vai ser um bom debate. Inclusive para debater a reforma agrária, que é a prioridade do país. Nossa política é pública, é transparente, a sociedade conhece, tem condições de conhecer, pela execução orçamentária do Siafi, da fiscalização do TCU [Tribunal de Contas da União], e do próprio parlamento. Nós recebemos aqui, todos os dias, os órgãos de fiscalização, de controle, de imprensa, os movimentos sociais. O setor patronal vem aqui.

ABr: Será um espaço para defesa da reforma agrária?


Hackbart: Não, porque a CPI sempre é uma comissão para investigar e não para debater. Acho que esses setores atrasados, que representam aquele latifúndio escravocrata, sobrevivem politicamente dessas crises. Tanto é que vários, grandes e médios produtores vêm aqui e dizem - e seus representantes no Parlamento - que a preocupação deles é acesso a mercado, é tributação, infraestrutura, sementes, o seguro e o preço.

Fonte: Agência Brasil

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