A cena se passa em Brasília, 2009.
A família está toda reunida na sala.
Jotacá palita os dentes, desabado na poltrona. Acabou de comer alguns panetones que ganhou do governador Arruda.
Deusarina, sua esposa, está muito entretida assistindo a novela.
Os filhos são dois, um menino e uma menina. Ela também vê a novela. Ele joga videogame.
Silêncio
De repente, o garoto levanta a cabeça e pergunta:
— Velho, que é impíchimem?
Jotacá fecha os olhos imediatamente para fingir que dorme.
O pequeno insiste:
— Velho?
Pausa:
— O, véio?
Deusarina intervém:
— Jotacá , Adegesto está chamando. Não durma depois de comer, que faz mal.
Jotacá não tem remédio senão abrir os olhos.
— Que é? Por que não me deixam em paz?
— Tão querendo o impíchimem do Arruda. Eu queria que você me dissesse o que é impíchimem.
— Que m...! Você vai fazer doze anos e não sabe ainda o que é impíchimem?
— Se soubesse, não perguntava.
Jotacá se volta para Deusarina, que continua olhando a novela:
—O muié, o filho da mãe não sabe o que é impíchimem!
— Não admira que ele não saiba, porque eu também não sei.
— Coméquié?! Você não sabe o que é impíchimem ?
— Nem eu, nem você; aqui em casa ninguém sabe o que é impíchimem.
— Ninguém, coisa nenhuma! Eu não sou burro! Assisto o Brasil Urgente, leio o Correio Braziliense!
— A sua cara não me engana. Você é muito prosa. Vamos: se sabe, diga o que é impíchimem ! Então? A gente está esperando! Diga!...
— O que quer é me irritar!
— Mas, homem de Deus, por que você não confessa que não sabe? Não é nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. Já outro dia foi a mesma coisa quando Adegesto lhe perguntou o que era proletário. Você falou, falou, falou, e o menino ficou sem saber!
— Proletário — acudiu o senhor Jotacá — é o cidadão pobre que vive do trabalho mal remunerado.
— Sim, agora sabe porque foi ao dicionário; mas dou-lhe um doce, se me disser o que é impíchimem sem se arredar dessa cadeira!
— Que gostinho você tem de me ridicularizar na frente das crianças!
— Oh! ridículo é você mesmo quem se faz. Seria tão simples dizer: — Não sei, Leo, não sei o que é impíchimem; vai buscar o dicionário, meu filho.
Jotacá ergue-se de um ímpeto e brada:
— Mas se eu sei!
— Pois se sabe, diga!
— Não digo para me não humilhar diante de meus filhos! Não dou o braço a torcer! Quero conservar a força moral que devo ter nesta casa! Vá para o diabo!
E o senhor Jotacá, exasperadíssimo, nervoso, deixa a sala de jantar e vai para o seu quarto, batendo violentamente a porta.
No quarto havia o que ele mais precisava naquela ocasião: um dicionário...
A menina toma a palavra:
— Coitado do véio! Ficou bravo logo depois de comer! Dizem que é tão perigoso!
— Não fosse bobo — observa dona Deusarina — e confessasse francamente que não sabia o que é impíchimem!
— Pois sim — acode Adegesto, muito pesaroso por ter sido o causador involuntário de toda aquela discussão — pois sim, mãe; chame o véio e façam as pazes.
— Sim! Sim! façam as pazes! — diz a menina em tom meigo e suplicante. — Que tolice! Vocês brigarem por causa do impíchimem!
Deusarina dá um beijo na filha, e vai bater à porta do quarto:
—Jotacá, venha sentar; não vale a pena ficar bravo por tão pouco.
O camelô esperava a deixa. A porta se abre imediatamente.
Ele entra, atravessa a casa, e vai sentar-se na poltrona.
— É boa! — brada Jotacá depois de largo silêncio — é muito boa! Eu! eu ignorar a significação da palavra impíchimem! Eu!...
A mulher e os filhos aproximam-se dele.
O homem continua num tom profundamente dogmático:
— Impíchimem...
E olha para todos os lados a ver se há ali mais alguém que possa aproveitar a lição.
— Impíchimem na verdade é impeachment, é coisa de inglês e norte-americano, pra tirar quem manda do governo
— Ah! — suspiram todos, aliviados.
— Coisa de gringo, percebem? E querem fazer isso com o pobre do Arruda! É essa coisa de copiar americano, e a gente perde os panetones no final do ano!...
Texto colado de Plebiscito, de Arthur Azevedo, uma das grandes figuras do humorismo brasileiro, escrito 1890. Se o leitor quiser ler o original e ver uma primorosa interpretação por Antônio Abujamra, clique aqui http://www.almacarioca.net/plebiscito-arthur-azevedo/
Fonte:Portal Vermelho
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