terça-feira, 22 de dezembro de 2009

O impeachment do governador Arruda

Carlos Pompe *


A cena se passa em Brasília, 2009.

A família está toda reunida na sala.

Jotacá palita os dentes, desabado na poltrona. Acabou de comer alguns panetones que ganhou do governador Arruda.

Deusarina, sua esposa, está muito entretida assistindo a novela.

Os filhos são dois, um menino e uma menina. Ela também vê a novela. Ele joga videogame.

Silêncio

De repente, o garoto levanta a cabeça e pergunta:

— Velho, que é impíchimem?

Jotacá fecha os olhos imediatamente para fingir que dorme.

O pequeno insiste:

— Velho?

Pausa:

— O, véio?

Deusarina intervém:

— Jotacá , Adegesto está chamando. Não durma depois de comer, que faz mal.

Jotacá não tem remédio senão abrir os olhos.

— Que é? Por que não me deixam em paz?

— Tão querendo o impíchimem do Arruda. Eu queria que você me dissesse o que é impíchimem.

— Que m...! Você vai fazer doze anos e não sabe ainda o que é impíchimem?

— Se soubesse, não perguntava.

Jotacá se volta para Deusarina, que continua olhando a novela:

—O muié, o filho da mãe não sabe o que é impíchimem!

— Não admira que ele não saiba, porque eu também não sei.

— Coméquié?! Você não sabe o que é impíchimem ?

— Nem eu, nem você; aqui em casa ninguém sabe o que é impíchimem.

— Ninguém, coisa nenhuma! Eu não sou burro! Assisto o Brasil Urgente, leio o Correio Braziliense!
— A sua cara não me engana. Você é muito prosa. Vamos: se sabe, diga o que é impíchimem ! Então? A gente está esperando! Diga!...

— O que quer é me irritar!

— Mas, homem de Deus, por que você não confessa que não sabe? Não é nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. Já outro dia foi a mesma coisa quando Adegesto lhe perguntou o que era proletário. Você falou, falou, falou, e o menino ficou sem saber!

— Proletário — acudiu o senhor Jotacá — é o cidadão pobre que vive do trabalho mal remunerado.

— Sim, agora sabe porque foi ao dicionário; mas dou-lhe um doce, se me disser o que é impíchimem sem se arredar dessa cadeira!

— Que gostinho você tem de me ridicularizar na frente das crianças!

— Oh! ridículo é você mesmo quem se faz. Seria tão simples dizer: — Não sei, Leo, não sei o que é impíchimem; vai buscar o dicionário, meu filho.

Jotacá ergue-se de um ímpeto e brada:

— Mas se eu sei!

— Pois se sabe, diga!

— Não digo para me não humilhar diante de meus filhos! Não dou o braço a torcer! Quero conservar a força moral que devo ter nesta casa! Vá para o diabo!

E o senhor Jotacá, exasperadíssimo, nervoso, deixa a sala de jantar e vai para o seu quarto, batendo violentamente a porta.

No quarto havia o que ele mais precisava naquela ocasião: um dicionário...

A menina toma a palavra:

— Coitado do véio! Ficou bravo logo depois de comer! Dizem que é tão perigoso!

— Não fosse bobo — observa dona Deusarina — e confessasse francamente que não sabia o que é impíchimem!

— Pois sim — acode Adegesto, muito pesaroso por ter sido o causador involuntário de toda aquela discussão — pois sim, mãe; chame o véio e façam as pazes.

— Sim! Sim! façam as pazes! — diz a menina em tom meigo e suplicante. — Que tolice! Vocês brigarem por causa do impíchimem!

Deusarina dá um beijo na filha, e vai bater à porta do quarto:

—Jotacá, venha sentar; não vale a pena ficar bravo por tão pouco.

O camelô esperava a deixa. A porta se abre imediatamente.

Ele entra, atravessa a casa, e vai sentar-se na poltrona.


— É boa! — brada Jotacá depois de largo silêncio — é muito boa! Eu! eu ignorar a significação da palavra impíchimem! Eu!...

A mulher e os filhos aproximam-se dele.

O homem continua num tom profundamente dogmático:

— Impíchimem...

E olha para todos os lados a ver se há ali mais alguém que possa aproveitar a lição.

— Impíchimem na verdade é impeachment, é coisa de inglês e norte-americano, pra tirar quem manda do governo

— Ah! — suspiram todos, aliviados.

— Coisa de gringo, percebem? E querem fazer isso com o pobre do Arruda! É essa coisa de copiar americano, e a gente perde os panetones no final do ano!...


Texto colado de Plebiscito, de Arthur Azevedo, uma das grandes figuras do humorismo brasileiro, escrito 1890. Se o leitor quiser ler o original e ver uma primorosa interpretação por Antônio Abujamra, clique aqui http://www.almacarioca.net/plebiscito-arthur-azevedo/

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