Igor Natusch
“Posso falar ‘os livro’? Claro que pode”. A frase, contida em um livro didático da coleção “Viver, Aprender”, provocou polêmica e foi repetida incessantemente como exemplo de que o MEC, que está distribuindo o livro, está incentivando a população a escrever errado, desprezando a norma culta. A reação negativa, reproduzida por alguns deputados e senadores, é fortemente questionada por estudiosos da língua portuguesa, que alegam não apenas que a discussão está fora de foco, como também ataca ideias que não são nenhuma novidade dentro do panorama da linguística. “O livro não traz nenhum absurdo, tanto no estudo da linguística quanto em termos de metodologia”, garante o professor Pedro Garcez, do Departamento de Linguística, Filologia e Teoria Literária da UFRGS.
Segundo Garcez, as frases que estão sendo destacadas e repetidas nos meios de comunicação estão em um contexto adequado, inseridas em uma discussão sobre concordância verbal. Para ele, trata-se de um dos aspectos “mais salientes” quando se trata de linguagem adequada ou inadequada. “Muitos erros gramaticais são comuns na linguagem oral, correntes até, mas não doem no ouvido”, explica ele. “Mas a concordância é algo que perturba, ainda mais quando reproduzida na escrita. Pessoas que não estão familiarizadas com a discussão linguística acabam ficando um pouco chocadas, ainda mais se levarmos em conta o modo como a discussão foi colocada na mídia. A coisa chegou muito de supetão”, afirma.
O livro didático que tornou-se pivô da polêmica segue conceitos de variação linguística adotados no currículo educacional brasileiro desde 1997, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. Os Parâmetros Curriculares Nacionais foram adotados pelo Ministério da Educação na primeira gestão do ministro Paulo Renato Souza, a partir de estudos de linguagem que, segundo Pedro Garcez, já existem há mais de 40 anos.
Mesmo assim, a Academia Brasileira de Letras (ABL) divulgou nota posicionando-se de forma contrária ao uso dos livros didáticos distribuídos pelo MEC. “O manual que o Ministério levou às nossas escolas não o ajudará no empenho pela melhoria a que o ministro tão justamente aspira”, diz a ABL. Em resposta, o Ministério da Educação declarou que “o reconhecimento da variação linguística é condição necessária para que os professores compreendam seu papel de formar cidadãos capazes de usar a língua com flexibilidade. Cabe à escola o papel de criar situações de aprendizagem que possibilitem aos estudantes utilizar diversas variedades linguísticas”.
“No cotidiano, dizer ‘as coisa’ ou ‘os negócio’ é comum ao povo brasileiro, não é algo que apenas pobres ou ignorantes fazem”, afirma Pedro Garcez. E dá outros exemplos que demonstram que, no dia a dia, falar “errado” é mais comum do que se imagina. “É natural apagar o plural nas proparoxítonas, dizer ‘nós tava’, ao invés de ‘nós estávamos’, por exemplo. No Nordeste, praticamente não existe mais morfologia do verbo na língua falada. É ‘eu tava’, ‘ele tava’, ‘nós tava’, ‘eles tava’. Um uso generalizado”. Os próprios jornais, segundo Garcez, adotam liberdades que não cabem na chamada norma culta, como a colocação do pronome após o verbo (por exemplo, “escolheram ele”).
Trechos do livro foram citados fora do contexto, diz Garcez
Nenhuma dessas variantes, porém, deve ser incorporada na norma escrita – nem de acordo com os livros didáticos do MEC, nem de acordo com os estudos de linguística. É o que garante Pedro Garcez. Na leitura do professor da UFRGS, trata-se apenas de reconhecer a existência de variações entre a linguagem falada e a escrita, e em trabalhar conceitos de adequação e inadequação. “Imagine uma peça publicitária usando imperativo, dizendo algo tipo ‘não deixes de vir’. É algo que não daria certo, seria inadequado”, comenta.
O temor de que haja uma incorporação da linguagem coloquial pela norma escrita, admitindo diferentes formas de escrever, é infundado, segundo Garcez. “Há um caráter meio preconceituoso nessa visão de que, se isso acontecer, as pessoas não vão mais se entender”, acusa. “O contexto do que é exposto no livro é justamente o oposto. Para mostrar a importância de melhorar o texto, se fala da necessidade de aprender itens de correção gramatical. São vários pontos, como pontuação, estrutura frasal… E aí chega-se na concordância, dizendo que, dependendo do contexto, não há nada de errado em dizer ‘nós faz’, mas escrever ‘nós faz’ criará uma série de dificuldades”.
Outro elemento contestado por Pedro Garcez refere-se à ideia, defendida por alguns críticos do livro didático do MEC, de que o domínio da dita norma culta é um mecanismo de ascensão social. O argumento surge também na nota divulgada pela ABL sobre o episódio. “Me parece um raciocínio bastante equivocado”, diz o professor da UFRGS. “O mundo é muito mais complexo do que isso. Concordo que para espaços públicos, para a discussão política, o cidadão precisa dominar essa linguagem. Mas não é uma garantia (de ascensão social). De nada adianta falar ‘corretamente’, entre aspas, e não ter outras tantas qualificações necessárias”.
Por fim, o professor de linguística da UFRGS lembra que a manutenção de certos conceitos, além de ignorar o dinamismo da linguagem falada, acaba sendo lucrativa para alguns grupos. “Professores como Pasquale (Cipro Neto), Cláudio Moreno e todos os que publicam obras do tipo ‘Não Erre Mais’ acabam se beneficiando disso (confusão entre língua falada e norma escrita)”, argumenta Pedro Garcez. “Não existe certo ou errado na linguagem falada, e sim adequado ou não adequado. ‘Nós pega peixe’ não encaixa dentro da norma escrita, mas não dá para ignorar que as pessoas usam esse tipo de construção gramatical no dia a dia, enquanto conversam entre si”, conclui.Sul21
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