O historiador Lincoln Secco lança "História do PT", relato analítico de três décadas da história de um dos principais partidos da esquerda mundial. Em uma narrativa rigorosa e vertiginosa, ele busca decifrar os rumos de uma agremiação nascida contra a ordem e que se adaptou ao pragmatismo do poder como ele é.
Por Gilberto Maringoni, em Carta Maior
Há um belo livro na praça para aqueles que desejam entender a trajetória do PT.
Refaçamos a frase. Há um belo livro na praça para aqueles que desejam entender a vida política brasileira das últimas três décadas. Com três vantagens: é rigoroso, bem escrito e curto. Trata-se de História do PT (Ateliê Editorial, R$ 30), de Lincoln Secco, professor de História da USP.
Embora filiado ao partido e membro do conselho de redação da revista Teoria e Debate, órgão teórico da agremiação, Secco tomou distância das histórias oficiais e louvações a personalidades. Decidiu combinar o exame de grandes processos políticos e sociais com a narrativa miúda de reuniões de base e militantes anônimos. O resultado é uma história muito mais ampla do que as protagonizadas pelas grandes lideranças e mostra o Partido dos Trabalhadores como um fenômeno político e cultural indissociável da história recente do Brasil. O livro é dividido em quatro capítulos: Formação (1978-1983), Oposição Social (1984-1989), Oposição Parlamentar (1990-2002) e Partido de Governo (2003-2010).
Batismo de fogo
Secco mostra que o PT não é apenas fruto das greves operárias do ABC paulista – embora ali esteja o ponto agudo da crise histórica que o gerou – mas de condições criadas para a entrada na cena política de um largo contingente de setores empobrecidos da população. As lutas que se espalharam pelo país nos anos 1980 – com destaque para as Diretas Já – acabaram funcionando como o batismo de fogo da primeira geração de militantes, culminando com o Lula lá, da campanha presidencial de 1989.
A formação da agremiação foi fruto também de condições locais em diversos pontos do país, num contexto geral de crise da ditadura e de necessidade vital de expressão política dos setores populares, muito além dos operários industriais urbanos. Em detalhado levantamento, o livro mostra como em muitos lugares foram decisivos a atuação de setores da Igreja, de antigos militantes da luta armada, de trabalhadores rurais, de funcionários públicos, de grupos de estudantes e de clubes ou associações da periferia, entre outros. Esse mosaico social amplo e flexível possibilitou que em seu primeiro ano de atividade (1981), o partido já estivesse organizado em 21 estados.
Ao mesmo tempo, o historiador vê com certa melancolia os rumos tomados pelo PT a partir dos anos 1990, com a paulatina transformação de uma agremiação impulsionada pelo espírito militante em uma máquina eleitoral eficiente, burocratizada e moderada.
Avanços e recuos
“Há que se considerar que depois dos anos 1980, vitórias eleitorais se tornaram rotina e o PT foi paulatinamente absorvido pela força histórica do poder local”, escreve ele. Somam-se a isso três fatores da cena política mundial: o avanço do neoliberalismo nos anos 1980-90, a queda dos regimes do leste europeu, que colocaram em xeque a própria existência da esquerda, e as transformações que o progresso tecnológico provocou no mundo do trabalho. Precarização, perda de direitos e desemprego estrutural resultaram em recuo do ímpeto de lutas e enfraquecimento das entidades sindicais. As históricas bases sociais da esquerda trincaram. Uma intensa guerra ideológica deflagrada pela imprensa encontrou eco nas universidades e espalhou-se pela sociedade, exaltando as vantagens da democracia liberal e do livre mercado.
O PT cresceu enquanto a maioria dos partidos de esquerda ao redor do mundo entrava em parafuso e a socialdemocracia europeia entregava-se aos dogmas ultraliberais. Era quase impossível que um partido popular passasse incólume por duas décadas de ofensiva conservadora.
A retomada do desenvolvimentismo
Lincoln não exalta uma suposta primazia do PT como partido de esquerda na história brasileira. Ele lembra que o Partido Comunista Brasileiro (PCB), fundado em 1922, “esteve muito perto de ser um partido de massas num de seus curtos períodos de legalidade (1945-1947)”. Em 1945, o partido tinha mais de cinquenta mil militantes e elegeu 14 deputados e um senador. Alcançou 10% da votação para a presidência da República e despontava como a quarta força eleitoral do país.
O curioso da história é que o PT surgiu como contraponto – no campo da esquerda – à linha moderada adotada pelo PCB a partir do final dos anos 1950. Os comunistas passaram a atribuir à “burguesia nacional” um papel progressista e adotaram o nacional-desenvolvimentismo como bandeira de luta.
Para os petistas dos anos 1980, essa era a essência do que chamavam de “reformismo”. Á época, o termo tinha uma conotação negativa em relação à tática “revolucionária” de vários grupos que convergiam para o PT. Quem examina os governos petistas no plano federal percebe claramente uma retomada de uma tradição desenvolvimentista, embora essa guinada nunca tenha ficado clara nos documentos oficiais do partido.
Atualização e moderação
Para se adequar aos novos tempos – ou promover seu aggiornamento, no linguajar da esquerda – o partido sofreu também mudanças internas. A mais importante delas se deu a partir do 8º Encontro Nacional, em 1993. Uma cisão na tendência hegemônica, a Articulação (dirigida por Lula, José Dirceu, Luis Gushiken e outros) resultou na vitória de grupos mais à esquerda. Curiosamente, a principal liderança desse conjunto de correntes era o atual presidente do partido, Rui Falcão.
A situação teve duas decorrências principais. A primeira é que, a partir dali, Lula decidiu se afastar dos embates internos e deslocar suas atividades para o Instituto da Cidadania, ONG destinada à realização de debates e formulações fora do âmbito partidário. Lincoln Secco aponta que, com isso, “a Nova Maioria eleita no 8º Encontro dirigia o PT, mas não guiava seus principais líderes”.
O segundo passo foi dado no 9º Encontro, em 1997, quando. José Dirceu foi eleito presidente da legenda. “Sacramentava-se uma dupla que Lula há muito procurava. Alguém que pudesse domesticar o PT enquanto ele se dedicava às ruas”. Foi a fórmula encontrada para conter os chamados “radicais”, abrir o leque de alianças e preparar o PT para a chegada ao palácio do Planalto.
Secco recusa-se a entoar o coro dos que veem uma suposta traição de ideais iniciais a partir daí. Nem mesmo a Carta aos brasileiros, lançada ás vésperas da eleição de 2002 para acalmar os chamados mercados, seria um ponto de virada. “A trajetória do PT foi constantemente de aumento de influência eleitoral e moderação ideológica desde os anos 1990. (...) A Carta foi apenas espuma no mar”, lembra ele.
No fim, o autor deixa uma pergunta no ar: “É melhor manter os princípios e nunca chegar ao governo e não fazer mudanças favoráveis aos mais pobres? Chegar assim ao poder muda essencialmente a sorte dos de baixo?”
Gilberto Maringoni, jornalista e cartunista, é doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de “A Venezuela que se inventa – poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez” (Editora Fundação Perseu Abramo).
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