Primeiro presidente eleito pelo voto popular após a ditadura, Fernando Collor de Mello extinguiu o temido Serviço Nacional de Informação (SNI). Mas os militantes, partidos e organizações de esquerda continuaram a ser monitorados pelo órgão de inteligência criado em seu governo: a Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), cujos documentos secretos foram disponibilizados para a consulta pública, nesta segunda (2).
Najla Passos
Brasília - Como ato contínuo à sua posse como o primeiro presidente eleito pelo voto popular após os 21 anos de ditadura, em 15 de março de 1990, Fernando Collor de Mello extinguiu o temido Serviço Nacional de Informação (SNI), o órgão de inteligência criado em 1964 pelo regime militar. Mas a medida não teve o efeito que os militantes pelas liberdades democráticas esperavam. Documentos secretos disponibilizados à consulta pública nesta segunda (2) comprovam que o monitoramento das ações da esquerda permaneceu como prática institucional no governo Collor, embora não tenha sido suficiente para impedir o impeachment dele, dois anos depois.
Os documentos fazem parte do acervo da também extinta Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), responsável pelas ações de inteligência do governo brasileiro de 1990 até a criação da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em 1999. Foram disponibilizados à consulta pública por efeito da Lei de Acesso à Informação, em vigência desde 17 de maio deste ano. Ainda não estão completamente inseridos no sistema do Arquivo Nacional. Dos mais de 20 mil documentos produzidos pela SAE, poucos mais de 5 mil já encontram-se catalogados. Mas são suficientes para revelar que partidos de esquerda, movimentos sociais e sindicais continuaram na mira dos agentes secretos.
Em 1990, cada uma das atividades realizadas pelo então presidente do Partido dos Trabalhadores (PT), Luiz Inácio Lula da Silva, merecia atenção especial dos arapongas do governo. Principal adversário de Collor na histórica eleição de 1989, Lula mantinha uma extensa agenda política para fortalecimento do partido nas eleições para governadores daquele ano. Além da sistemática oposição ao governo, desgastado desde seu início em função da adoção de planos econômicos que só aprofundavam as dificuldades enfrentadas pela população.
O lançamento do livro “Sem medo de ser feliz”, do jornalista e assessor de campanha do Lula, Ricardo Kotsho, em 3 de maio de 1990, mereceu registro da SAE. A obsessão com as atividades de Lula e do PT era tão evidente que até mesmo a lista de assinantes do Boletim Nacional do PT foi objeto de interesse dos arapongas oficiais. Há farto material também com atualizações de endereço e ocupação dos seus principais dirigentes do partido. Além de análises da representatividade crescente da legenda que, conforme informavam os agentes da SAE, “dobrou sua bancada, passando de 16 para 36 parlamentares”.
Os registros dão ampla importância ao encontro de Lula com o presidente do PDT, Leonel Brizola, em 7 maio de 1990, quando ambos ratificaram um pacto de não agressão entre os dois partidos. Indicam fatos corriqueiros como a participação de Lula na festa realizada em São Paulo, em 21 de dezembro de 1990, para arrecadar fundos para o PT. E informam que outras ocorreriam, na sequência, em Santa Catarina e Rio Grande do Sul, com a mesma finalidade.
Há documentos com referências às críticas feitas por Lula ao governo Collor na imprensa, nos seus discursos, nas suas visitas a outros países. “Em 23 de junho de 1990, o Presidente do PT, LILS desembarcou no AIC [Aeroporto Internacional de Cumbica], procedente da Europa, onde manteve contato com dirigentes da esquerda. Na ocasião, LILS criticou o presidente da república, acusando-o de estar cometendo os mesmos erros de governos anteriores para combater a inflação”, diz um dos documentos.
As atividades do Governo Paralelo do PT, criado em 15 de julho daquele ano, para sistematizar a oposição à Collor, mereceram atenção especial até o fim do governo do ex-presidente. Há descrições minuciosas dos lançamentos dos programas do partido para a educação brasileira e para a reforma agrária, dentre outros. A reunião entre membros do Governo Paralelo com economistas cubanos, por exemplo, em 21 de setembro de 1990, deixou a SAE em alerta.
A arapongagem ilegal fica evidente em documento que revela o conteúdo de dois artigos de autoria de Lula, ainda inéditos, que teriam sido escritos para serem publicados no Boletim Nacional do PT. Segundo os agentes da SAE, em um dos artigos o então presidente do PT traçava um panorama do cenário político brasileiro pós-eleitoral. No outro, mostrava a insatisfação da população com os políticos que estavam no poder.
O delírio anticomunista comum aos agentes que integraram o SNI também mostra sinais de permanência. Em documento datado de 1991, os agentes da SAE informam sobre uma possível estratégia definida por setores mais radicais do PT e do PCdoB que, estarrecidos com a inércia que dominava os setores da esquerda convencional, haviam decidido apelar para a prática de atentados, inclusive contra o próprio presidente Collor, como forma de “despertar as forças populares”.
As atividades da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e seus sindicatos filiados também mereceram interesse da espionagem produzida pelo governo Collor. Prova é o documento “Influência das organizações ideológicas na CUT”, produzido pela SAE naquela mesmo ano de 1990, com a análise das tendências que compunham a central. “A CUT, braço sindical do PT, com representação em todos os estados da federação, está infiltrada por organizações comunistas de linha revolucionária que adotam uma conduta de confronto declarado ao governo. E dirigida por líderes radicais que defendem e incitam os movimentos reivindicatórios, utilizando-se da greve como principal instrumento de conscientização e demonstração de força do operariado, para construção de uma sociedade socialista”, diz o documento . Agência CartaMaior
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