Por Inaldo Leitão
O mensalão não existiu. Digo isso com a autoridade de quem estava na Câmara dos Deputados de 1999 a 2007 e jamais vi qualquer indício de que parlamentares recebiam 30 mil reais por mês para votar a favor das matérias oriundas do governo. Eu mesmo votei a favor de proposições que julgava justo aprová-las, assim como disse não às que considerava correto desaprová-las. Se o mensalão tivesse existido, o governo teria que desembolsar todo mês R$12 milhões para abastecer o bolso de 400 deputados ou R$432 milhões no período (2003 a 2005). Consta nos autos que o desvio de recursos foi de cerca de R$100 milhões.
Por outro lado, o governo teria que comprar votos no Senado, uma vez que o nosso sistema legislativo é bicameral. De nada adiantaria aprovar uma matéria numa Casa e vê-la rejeitada na outra, como aconteceu com a proposta de emenda à Constituição que prorrogava a CPMF. Justamente no governo do ex-presidente Lula. Há uma pergunta que me intriga desde que veio à tona a denúncia teatral de Roberto Jefferson sobre o mensalão: se deputados foram comprados, quem são eles? Ora, não há corrupção ativa sem o corrupto passivo.
Não me venham dizer que João Paulo Cunha, à época presidente da Câmara, é um desses vendidos. Primeiro porque presidente não vota, salvo em circunstâncias especialíssimas. Segundo porque o deputado era e é do PT: como alguém se vende a si próprio? Também não me venham dizer que o deputado petista Luizinho vendeu seu voto, eis que era líder do governo na Casa. Na hipótese absurda, ele seria comprador. Aliás, Luizinho foi absolvido pelo mesmo Supremo Tribunal Federal que proclamou a compra de votos dos parlamentares.
O deputado Valdemar Costa Neto, em entrevista à revista Época, declarou que recebeu R$8,7 milhões para pagar contas de campanha dos candidatos do PL nas eleições de 2002. Roberto Jefferson confessou que embolsou R$4 milhões e distribuiu com a bancada do PTB, igualmente para cobrir despesas de campanha. O nome disso não é mesada, pois em todas as hipóteses até aqui citadas não está caracterizada a periodicidade. E, sem repasse periódico, evidente que não se pode falar em mensalão. O nome disso, com todas as letras, é caixa dois de campanha. Que grande parte de candidatos e eleitores conhecem muito bem. Como o crime eleitoral estava prescrito, o relator Joaquim Barbosa torceu a mão para tipificar as condutas como crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha.
Indiferente aos fatos reais, o Supremo Tribunal Federal embarcou na tese do procurador-geral Roberto Gurgel e levou adiante o processo do ‘mensalão’. Transformou o julgamento em espetáculo para o público ávido para ver políticos na cadeia. A grande mídia embarcou na onda e condenou os ‘mensaleiros’, sumária e antecipadamente. Para tanto, contou com o concurso do ministro Joaquim Barbosa, hoje presidente da Corte, conhecido pela deselegância, prepotência e falta de educação com que trata colegas, advogados, juízes e jornalistas.
É certo que o STF é um órgão colegiado e a responsabilidade pelas decisões pertence à maioria dos membros. Mas a vaidade do ministro Barbosa soube captar bem o que a imprensa queria ouvir e jogou a opinião pública contra os colegas que não queriam seguir seu veredito condenatório. Uma pena essa sucumbência, já que juiz julga com os olhos voltados para o senso de justiça – não para a opinião enfurecida da multidão. No caso do ex-ministro José Dirceu, o procurador Roberto Gurgel, no momento da apresentação da denúncia, disse que as provas contra ele eram frágeis.
Prova frágil, até as paredes das faculdades sabem, não podem condenar ninguém. Para driblar essa clássica verdade jurídica, o ministro Joaquim Barbosa se escorou na Teoria do Domínio do Fato, criada pelo alemão Hans Welzel em 1939 para julgar os crimes cometidos na Alemanha nazista – e rechaçada pelo Judiciário germânico. Mas o pior estava por vir. Outro alemão, Claus Roxim, responsável pelo desenvolvimento da citada teoria em 1963, afirmou em visita ao Brasil que a aplicação dela exige prova. Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, respondendo a uma pergunta sobre se seria possível usar a teoria para fundamentar a condenação de um acusado supondo sua participação pelo fato de sua posição hierárquica, Roxim foi enfático:
- Não, em absoluto. A pessoa que ocupa a posição no topo de uma organização tem também que ter comandado esse fato, emitindo uma ordem. Isso seria um mau uso.
Mesmo desautorizado pelo “dono” da teoria do domínio do fato, o ministro Barbosa fez cara de paisagem e seguiu em frente no objetivo de condenar José Dirceu de qualquer maneira. Por quê? Ora, como o ex-ministro da Casa Civil fora denunciado por Gurgel com “chefe da quadrilha”, a exclusão do cabeça destruía a tese para condenar os demais. Ou seja, sem chefe, não tinha quadrilha. A partir deste ponto, estava em construção o que os juristas Luiz Flávio Gomes e Débora de Souza Almeida intitularam em livro de “Populismo Penal Midiático”.
Esse populismo teve seguimento nas fases seguintes da Ação Penal 470. Sempre preocupado em abastecer a mídia com notícias sensacionalistas, Barbosa determinou a apreensão dos passaportes dos acusados antes do julgamento, e sem qualquer fundamentação, em ofensa direta ao inciso IX do art. 93 da Constituição Federal. Um dos argumentos absurdos para tal apreensão, o ministro atribuiu em razão “de declarações que vêm sendo dadas pelos réus contra a mais alta Corte do país”. O censor Joaquim Barbosa desprezou, reincidentemente, a Carta Magna, que encorpou como cláusula pétrea a liberdade de expressão (art. 5º, inciso IX).
Mas a conduta teratológica barboseana continuou na contra mão da lei. Em ato manifestamente abusivo e fora dos padrões normais, o relator da AP 470 criou a figura do trânsito em julgado PARCIAL, brandindo contra a dicção do inciso LVII do intocável art. 5º da Lei Fundamental, verbis: ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Não é preciso ser ministro do STF para saber que a interpretação de norma constitucional é restritiva – nunca extensiva. Barbosa nem quis saber disso: passou por cima da Carta Cidadã. De novo.
Para coroar de êxito o festival populista, o ministro Joaquim Barbosa decidiu que podia rasgar a Lei de Execução Penal. E mandou para o regime de prisão fechada os condenados ao regime semiaberto. Basta qualquer cidadão fazer a leitura da LEP a partir do art. 110 para constatar essa violação. Em mais um gesto de espetacularização e humilhação, mandou recambiar todos os presos para Brasília, sem guia de encaminhamento, cassando o direito deles de cumprir suas penas em estabelecimentos prisionais próximos de seus domicílios.
Tem gente que adora esse circo. Há muitos que aplaudem esse tipo de bravata. Outros tantos podem querer me censurar por estar defendendo o que aprendi como profissional do direito. A todos, direi que a democracia tem regras que não se coadunam com as transgressões às leis de um país. Que a Constituição é o coração do Estado Democrático de Direito. E é no núcleo indevassável da Constituição que estão hospedados os princípios fundamentais e os direitos e deveres individuais e coletivos, ora violados. Aos que discordarem de mim, tenham o meu respeito em homenagem ao contraditório, mas a eles quero lembrar uma frase de Montesquieu: “A injustiça que se faz a um, é uma ameaça que se faz a todos”.
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