terça-feira, 10 de dezembro de 2013

O "mensaleiro" inimigo

Joaquim Barbosa


A ilegalidade da prisão dos condenados no caso do mensalão é evidente e dispensa maiores comentários. A ordem antecipada de execução da pena, antes do transito em julgado do caso, como já tratamos em artigo anterior é de constitucionalidade no mínimo duvidosa, atentando contra direitos fundamentais dos réus.
Walter Maierovich em recentes artigos na CartaCapital,  demonstrou os descumprimentos da lei de execução penal até mesmo em assuntos de natureza disciplinar, como no caso da inconstitucional e ilegal decisão de opor uma mordaça aos condenados, impedindo-os do livre exercício do seu direito a livre expressão contrariando nossa Carta Magna e a referida lei de execução penal
A nosso ver o que mais assusta é o encarceramento de pessoas que não foram condenadas a este tipo de pena. Por maiores que sejam as tentativas de produção de um discurso sinuoso de justificação a realidade é crua: pessoas não condenadas definitivamente ao aprisionamento estão aprisionadas.
Não se desrespeita apenas mandamentos constitucionais e de legalidade neste tipo de comportamento de nosso sistema de justiça, mas regras elementares de civilidade. Conquistas civilizatórias mínimas já assentadas ha mais de século são solenemente desprezadas. Prende-se em regime fechado quem não foi condenado a prisão em regime fechado.
O que também chama a atenção é que o protesto contra tal tipo de conduta ilícita e autoritária, a reivindicação de direitos legítimos pelos condenados é tida no mais das vezes, pelos órgãos de comunicação, como luta por privilégios. O argumento é rasteiro mas revelador, quase um ato falho. Se a maioria da população pobre encarcerada não tem garantido direitos mínimos, até mesmo o de contar com advogado e defesa, muitos estando presos ilicitamente, porque os condenados do mensalão devem ser atendidos em sues direitos? Ou restaure-se a legalidade a todos ou mantenham-se todos no fosso da ilegalidade e do arbítrio
Quase como dizer: se muitos detidos pela policia como suspeitos de crimes são torturados, porque não torturar os “mensaleiros” também? A mesma mídia que protestava ,corretamente, contra o uso de algemas quando da prisão de Daniel Dantas agora quer instaurar a indistinção de classes no sistema prisional pela universalização do arbítrio e não dos direitos. O que diferencia Daniel Dantas e outros detidos semelhantes de José Dirceu e Genoino?
A diferença é clara. Para esses setores midiáticos e sociais Dirceu e Genoino devem ser postos na mesma categoria politico-penal da maioria pobre da população, a de inimigo.
Conforme já tratamos em artigos anteriores e mesmo em trabalhos acadêmicos a figura do inimigo há de ser tida como categoria politica no plano da Teoria do Estado.
A expressão inimigo, aqui tem sentido próprio e especifico, como a pessoa que não é tida no plano jurídico-politico como pessoa, Tem seus direitos fundamentais suspensos. É tratado como um ser vivente sem proteção jurídica ou politica por sua condição humana. “Vida nua “ portanto na expressão de Giorgio Agambem.
Durante o regime militar brasileiro, o inimigo era o comunista. Como o comunista é difícil de identificar no todo social, a sociedade em sua totalidade tinha seus direitos suspensos em alguma medida. Todos, por exemplo, tinham o direito a livre expressão suprimido, os oposicionistas, seus parentes, amigos e alguns incautos também viam suspensos seus direitos a vida e a integridade física. Ou seja, a sociedade civil, não fardada, era a inimiga
No Brasil de hoje o inimigo é o “bandido”. O bandido tem etnias diversas ,de acordo com o local do território nacional, mas em geral é afrodescendente. E sempre é pobre
O incluído do centro expandido das grandes cidades e dos bolsões de riqueza no campo, quando suspeito de crime ou quando eventualmente condenado é tratado como o ser humano que erra, tem os direitos fundamentais de sua condição humana mantidos mesmo na detenção ou condenação. Não perde seus status jurídico e político de humano.
O pobre quando suspeito de crime é morto, sem qualquer respeito ao seu direito a vida. Se não é morto é preso sem processo real ou defesa efetiva. Sequer se cogita de qualquer cumprimento da legalidade na execução de sua pena. É tratado como inimigo, como vida nua, sem qualquer tipo de proteção de direitos mínimos inerentes a sua condição humana.
Ora o que se pleiteia é que os réus dos mensalão não sejam tratados como os de sua classe social, os incluídos do centro urbano, mas sim como os excluídos da periferia
O sistema punitivo de nossa Justiça funciona sobre um nítido mecanismo de distinção de classes. Talvez seja o âmbito da vida social onde a distinção injusta de classes mais possa ser aferida.
Mas no caso de Genoíno e Dirceu, sua classe social pouco importa. A eles deve ser destinado o tratamento punitivo  do inimigo, do pobre suspeito ou condenado por crime. Creio que tal aspecto pode ser inconscientemente revelador do porquê do excesso.
Deseja-se não apenas a condenação dos réus mas seu máximo sofrimento. Deseja-se retirar-lhes sua condição humana pela condenação. Deseja-se trata-los como inimigos e não como seres humanos que erraram.
Talvez não apenas pelos supostos crimes que cometeram, mas também pelo fato de serem políticos com relevante papel na construção do partido e do governo que em nossa historia recente mais fez pela maioria pobre de onde os bandidos e os inimigos provem.
Os “mensaleiros” devem ter por parte do sistema punitivo tratamento igual ao do segmento social que defenderam por toda sua vida politica e  não o costumeiramente oferecido aos integrantes da classe social a qual efetivamente pertencem.
Estariam tais mensaleiros sendo punidos também por alguma imaginária “traição de classe”?  Filhos da classe média incluída que dedicaram seu tempo vivido a combater os privilégios deste mecanismo de opressão social.
O caso do mensalão ainda esta vivo, só se pode analisá-lo por biopsia. E a boa analise histórica e politica se faz, normalmente, por necropsia. O tema está muito quente no espirito para conclusões definitivas. Mas essa outra narrativa alternativa à narrativa dominante, que este artigo traz uma de sua dimensões, não pode ser de plano descartada. Há que ser refletida ao menos como possibilidade.

por Pedro Estevam Serrano , CartaCApital

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