terça-feira, 9 de setembro de 2008

BOM DIA, BOA LEITURA


Divagações pré-salinas

Na semana passada fui a uma palestra da socióloga russa Tatiana Vorozheikina, em São Paulo, e tive a oportunidade de acompanhar uma serena análise da atual situação política da Rússia. Vorozheikina não se inclui entre a larga maioria de seus compatriotas que aprova ou tolera o truculento processo político implementado pela incontrolável casta política originada nos órgãos de segurança deserdados após o fim da URSS. Ao contrário, analisou com muito pessimismo as conseqüências da nefasta auto-suficiência desse grupo subterrâneo da política, que se apoderou da máquina pública e de setores estratégicos da economia e governa em favor de seus próprios interesses, com crescente intolerância às liberdades de expressão e de organização política em seu país.
A socióloga descreveu com repugnância a apropriação dos setores de petróleo e gás e o processo de cooptação das inescrupulosas oligarquias empresariais em favor do projeto imposto por esse grupo das forças de segurança originário de São Petersburgo e instalado no poder pelo atual primeiro-ministro Vladimir Putin. Se por um lado as receitas de exportação de hidrocarbonetos permitiram a superação dos impasses macro-econômicos que a Rússia enfrentou nos anos 90, por outro nutriu um projeto autoritário, fora do controle da sociedade. “Uma verdadeira desgraça” – ponderou a palestrante.
Essa parte da fala da socióloga russa me fez imaginar a dificuldade que ela deve ter em seu país para defender seus pontos de vista. A superação do caos econômico da Rússia pós-soviética se deveu principalmente à prosperidade trazida pelos petrodólares, e foi quase unanimemente retribuída a Putin no controverso teatro eleitoral preparado para a aclamação de Dmitri Medvedev na sucessão presidencial. E mesmo em outros continentes nunca será fácil associar conotações desfavoráveis à abundância de petróleo e gás, sobretudo num momento de valorização dessas commodities, quando o mais comum é que sua escassez induza retrocessos políticos de origem econômica.
Essas reflexões remeteram-me ao nosso Brasil, de belas florestas, terras férteis, bom clima e água de sobra. Não bastassem essas riquezas, nosso compatriota honorário, o bom Deus, ainda nos ofereceu bilhões de barris de petróleo escondidos sob espessa camada de sal, abaixo da plataforma oceânica. Após o anúncio oficial da colossal reserva de Tupi (somente a primeira de uma série boas notícias pré-salinas), em novembro de 2007, os editorialistas da revista britânica The Economist associaram-se à nossa presunção: “Depois dessa, é provável que Deus seja mesmo brasileiro” – vaticinaram, sem disfarçar inveja.
Mas a tese de nossa conterraneidade divina fica mesmo convincente quando se leva a sério a mensagem de Vorozheikina de que o petróleo pode ser uma desgraça quando injetado na veia dos regimes autoritários. Benesse celestial ainda maior do que as colossais reservas, foi o divino cuidado de tê-las mantido bem escondidas sob camadas de oceano, rocha e sal, até que nosso Brasil atingisse um momento mais seguro de seu processo democrático. Deus está mesmo é nos detalhes, que me perdoe Satanás!
Creio que nós, brasileiros, nessas alturas de nossa trajetória institucional, podemos nos dar ao luxo de nos despreocupar com desvios políticos extremados do tipo do que assola a Rússia atual. Mas me vieram à memória cenas do passado. Do ocaso do regime militar brasileiro, quando os generais já ostentavam sua ditadura desmoralizada pelo desgaste dos métodos autoritários e derrotada por uma década de crise econômica herdada dos choques do petróleo. Alguém duvida de que os doutrinários da Segurança Nacional não resistiriam a prolongar ao máximo sua tirania, tal qual fez Pinochet, se para tanto tivessem um conveniente pretexto econômico? Uma descoberta como a de Tupi poderia ter sido a desculpa ideal para pretenderem protelar a re-introdução da democracia. Teria o potencial de reverter expectativas econômicas que debilitavam o regime e dar sobrevida à ditadura militar. Difícil estimar, nessa hipótese sombria, quando teria triunfado a luta dos brasileiros por eleições livres e diretas.
Cada um de nós pode especular à sua maneira como poderia estar o Brasil se a descoberta do petróleo do pré-sal tivesse nascido na pré-maturidade de nossa recente democracia. Alguns mais bem-informados dirão, com certa razão, que, se descobertos duas ou três décadas atrás, os depósitos nem poderiam ser explorados, pela indisponibilidade de tecnologia e pelos inviáveis custos de produção por barril, provavelmente superiores aos preços internacionais de então. É provável que sim.
De qualquer forma, é possível conjecturar em tempos mais recentes, quando o Planalto alojava fundamentalistas da privatização que liquidavam o patrimônio da República “no limite da responsabilidade”. Qual poderia ter sido o destino do pré-sal nos idos do ano 2000, tempos da baixa auto-estima nacional e do combate ideológico à competência pública, quando se tentou rebatizar nossa estatal de “Petrobrax”, sob o pretexto de internacionaliza-la mais facilmente? É desoladora a idéia de que as reservas pudessem seguir o obsceno caminho dos leilões a toque de caixa, combinados espuriamente com personagens do submundo empresarial. Uma hipótese sombria, de causar espanto até mesmo na desiludida socióloga russa. Mas felizmente Deus é nosso compatriota!

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