sábado, 31 de outubro de 2009

Folha rebate Record e acusa o golpe: trauma da “ditabranda” vive

A Folha de S.Paulo mordeu a isca. Acusada agora pela arquirrival Record de perder leitores em profusão e de viver uma “crise de credibilidade”, a estonteada Folha tentou responder na medida ― mas fugiu das duas denúncias. Sem se dar conta, voltou apenas a se explicar, pela enésima vez, sobre suas relações com o regime militar (1964-1985). Mais do que acusar o golpe, demonstrou que o trauma da “ditabranda” continua vivo.

Por André Cintra

Verdade seja dita: segundo o IVC (Instituto Verificador de Circulação), é o conjunto da grande imprensa ― e não só o jornal da família Frias ― que sofre deserções em massa de leitores. No primeiro trimestre de 2009, O Estado de S.Paulo, a exemplo da Folha, já registrava sua pior circulação diária nesta década (217,4 mil exemplares, bem abaixo dos 391 mil de janeiro a março de 2000). Em agosto, as vendas do Estadão caíram mais um pouco e chegaram à média diária de 213.205 mil.

Mas também é verdade que, no segundo ponto, a matéria da TV Record está coberta de razão: a Folha atravessa a pior crise de credibilidade de sua história. Num excelente e imperdível trabalho jornalístico (veja o vídeo abaixo), a Record prova, exemplarmente, que o diário mais vendido do Brasil foi assíduo colaborador da ditadura militar. A reportagem também lembra que o estopim da crise atual foi o editorial que, em 17 de fevereiro deste ano, classificou de “ditabranda” o nefasto regime dos generais-presidentes.



E o que alegam os réus? Sobre a queda de circulação, nada. A respeito de sua credibilidade em xeque, tampouco. Segundo o site Adnews, Suzana Singer, secretária de redação da Folha, limitou-se a dizer que “as acusações feitas pela Record são falsas. A Folha não compactuou com o regime militar, nunca foi condescendente com casos de tortura e esteve à frente dos demais órgãos de comunicação na campanha pelas Diretas Já. Quando a Folha erra ― como ocorreu no uso do termo ‘ditabranda’ ―, o jornal reconhece e registra seus erros”.

Afirmar que a Folha liderou a campanha das Diretas na grande mídia é chover no molhado. Já dizer que “a Folha não compactuou com o regime militar” é abusar do proselitismo. Como guardião da história da família Frias e de seu jornal, dava para esperar que Suzana Singer fosse, na pior das hipóteses, uma discípula da longa tradição dos jornalistas sabujos, prepostos, caudatários, subalternos. Mas sua resposta à Record mostra que a secretária de redação da Folha vai além e não tem pudor em ser mais realista que o rei.

Os próprios Frias já admitiram a adesão do jornal ao Golpe de 1964 e o prolongado apoio ao regime militar. Em fevereiro de 2001, na comemoração de seus 80 anos, a Folha registrou que “apoiara editorialmente o movimento militar que depôs o governo constitucionalista de João Goulart”. Assumiu, ainda, que apoiou “o governo de Emílio Garrastazu Médici, o mais duro do regime”. Segundo a biografia chapa-branca A Trajetória de Octavio Frias de Oliveira (2007), de Engel Paschoal, os Frias reconhecem o uso de peruas do Grupo Folha em diligências do DOI-Codi e da Oban (Operação Bandeirantes).

Explicar o quê?

O regime militar acabou há mais de 24 anos, e talvez seja mais fácil negar o passado do que deturpar a realidade concreta. A Folha não fala em índices de tiragem porque seus números são sintomáticos. A Record lembra que o jornal saiu de 513 mil exemplares impressos em 1998 para 299 mil em 2008 ― uma queda expressiva de 41% em dez anos.

A debandada prossegue. Na comparação entre os primeiros oito meses de 2009 e período semelhante do ano passado, a circulação da Folha caiu mais 6,13%. Em agosto de 2009, nas bancas de jornal da própria São Paulo (SP), o carro-chefe dos Frias conseguiu vender menos do que outros quatro jornais ― Estadão, Diário de S.Paulo, Agora e até Jornal da Tarde. Tudo isso são fatos.

A Folha não questiona a ideia de “crise de credibilidade” porque sua ficha corrida anda desastrosa. Não houve, neste ano, uma única denúncia, matéria ou opinião da Folha que possa ser considerada como um marco de sua história, um feito especial da imprensa, mais uma grande contribuição do jornalismo à sociedade e ao Brasil. Desde que Otavio Frias Filho passou a ocupar cargos de primeiríssimo escalão na Folha ― e lá se vão 25 anos ―, não há nada sequer parecido com a “tragédia de 2009”.

O caso “ditabranda” ilustra o descompasso entre a opinião pública e a Folha. Em apenas 25 dias — de 17 de fevereiro a 13 de março deste ano —, o “Painel do Leitor” (seção de cartas da Folha) recebeu 369 mensagens sobre a polêmica. O jornal, no entanto, procurou fugir como pôde — apenas 15 mensagens (menos de 6%, portanto) foram publicadas. O ombudsman Carlos Eduardo Lins da Silva recebeu outras 174 reclamações de leitores nos primeiros dez dias após a publicação do editorial.

A insatisfação alavancou o manifesto Repúdio e Solidariedade — um abaixo-assinado on-line que recebeu mais de 8 mil adesões na internet. Em 7 de março, um ato promovido pelo Movimento dos Sem-Mídia levou cerca de 500 pessoas à frente do prédio da Folha, na Rua Barão de Limeira, em São Paulo. Faixas, cartazes e discursos contundentes emparedaram ainda mais o jornal da família Frias. Em meio à manifestação, cem blogs agregados a partir do tema “ditabranda” somavam mais de 60 mil visitas.

No dia seguinte, a Folha se corrigiu parcialmente, numa espécie de autoadmoestação assinada por Frias Filho. “O termo (‘ditabranda’) tem uma conotação leviana que não se presta à gravidade do assunto. Todas as ditaduras são igualmente abomináveis. Do ponto de vista histórico, porém, é um fato que a ditadura militar brasileira, com toda a sua truculência, foi menos repressiva que as congêneres argentina, uruguaia e chilena — ou que a ditadura cubana, de esquerda”.

“Sabor especial”

Quase oito meses depois, a matéria da Record e a reação acalorada da Folha não são as únicas mostras de que a polêmica da “ditabranda” ainda é um fantasma para o jornal paulista. Na última segunda-feira (26), ao ganhar menção honrosa durante a entrega do Prêmio Vladimir Herzog, em São Paulo, o jornalista Rodrigo Vianna espinafrou a Folha: “Receber um prêmio como este, por uma matéria, que lembra os 30 anos da anistia, tem um sabor especial neste ano, em que um importante jornal de São Paulo chamou a ditadura de ‘ditabranda’”.

Não acaba por aí. Em breve, pesquisadores poderão ter acesso a arquivos da Comissão de Anistia que relatam inúmeras parcerias entre Folha e regime militar. Ainda inédito, o magistral documentário Cidadão Boilesen, vencedor do Festival É Tudo Verdade 2009, acusa formalmente a Folha de ceder apoio logístico à ditadura. É bom Suzana Singer afiar a língua para proteger o jornal em que trabalha. Até aqui, seu proselitismo foi tão-somente provinciano ― nada mais.

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