Não deixa de ser interessante que, tendo por motivo o apagão elétrico de 11 de novembro, antigos defensores da total ausência do Estado na economia (o mercado tudo resolveria), todos conhecidos expoentes do ex-governo tucano, estejam reclamando do governo Lula a falta de investimentos em infra-estrutura. Este é um exemplo de como a semântica joga um papel importante na luta política.
Ao fazerem analogia entre o recente apagão e a falta de investimentos em infra-estrutura, eles procuram colocar no mesmo plano simbólico o apagão de Lula e o apagão de FHC. Afinal, Lula e Dilma não haviam dito que, em seu governo, não mais haveria apagão? Estabelecida a igualdade semântica, escamoteando e encobrindo a natureza, ou a causa, de um e de outro apagão, na verdade totalmente diferentes, o resto vira pura luta política.
Trata-se de tentar, mais uma vez, demonstrar que o governo Lula sofre de um problema estrutural de gestão e de operacionalidade. Afinal, o ano de 2010 está batendo à porta e é preciso encontrar brechas que permitam fragmentar a blindagem do governo Lula e derrotá-lo nas próximas eleições. Além de evitar, é claro, que o atual apagão sirva de pretexto para fazer nova reformulação no sistema elétrico montado na era neoliberal.
Visto sobre outro ângulo, o recente apagão pode ensinar alguma coisa. Mesmo porque tem sido comum que palavras e termos usados à vontade, sem explicitação de seu conteúdo, contenham armadilhas políticas, às vezes fatais. Basta lembrar das reformas estruturais que, lançadas ao vento pelos neoliberais como supra-sumo da modernidade, iludiram boa parte da esquerda. Sem sequer se esforçarem para conhecer seu conteúdo, muitos representantes populares lutaram pela aprovação de reformas cuja natureza era antipopular e antinacional.
Portanto, há reformas e reformas, do mesmo modo que há apagões e apagões. As reformas neoliberais, praticadas no Brasil por mais de dez anos, tinham como conteúdo a liquidação do papel do Estado como contraponto à anarquia do mercado. Elas realizaram um desmonte acentuado dos mecanismos necessários àquele papel, a exemplo dos sistemas estatais de planejamento e elaboração de projetos. E, ao mesmo tempo, transferiram de organismos do Estado algumas das funções de controle e regulação do mercado a agências privadas ou semi-privadas.
Sem sistemas estatais de planejamento e elaboração de projetos não é fácil tomar decisões sobre investimentos em infra-estrutura, que precisam ter um horizonte de 20 anos ou mais. Assim, apesar dos esforços, o governo Lula até hoje não conseguiu recuperar a capacidade plena do Estado em planejar e apresentar projetos. Quando as gerações futuras tiverem maior conhecimento dos efeitos do desmonte neoliberal do sistema estatal de planejamento e elaboração de projetos, e o que isso representou negativamente para o país, certamente se perguntarão por que seus responsáveis não foram processados e julgados criminalmente.
O fato é que esse desmonte, e suas conseqüências nos investimentos em infra-estrutura energética, estiveram na raiz do apagão ocorrido durante o governo FHC. Deixados por conta do mercado, os investimentos em geração e transmissão de energia não ocorreram na medida das necessidades. Por um lado, bastou um ano mais seco para que os reservatórios das usinas existentes fossem incapazes de suprir as demandas de geração de eletricidade.
Por outro, mesmo havendo sobra de energia no sul do país, não havia linhas de transmissão interligadas com as demais regiões, que pudessem minorar o suprimento insuficiente. A natureza do apagão da era FHC foi a junção de falta de investimentos em geração e em transmissão, resultando em racionamento e investimentos desordenados e nebulosos em geração termelétrica.
O apagão recente não teve origem em incapacidade de suprimento pela geração, nem na ausência de interligação dos sistemas de transmissão. É quase certo que parte de sua origem seja encontrada nos sistemas de controle e regulação herdados do neoliberalismo, e também em problemas técnicos relacionados com a complexidade da integração nacional das redes de transmissão. Mas é totalmente certo que tal apagão não resultou, nem vai resultar em qualquer tipo de racionamento.
Como, aliás, também é totalmente certo que a semântica vai continuar servindo para tentarem evitar que esse novo apagão sirva de motivo para completar o trabalho de reformulação do sistema elétrico brasileiro, sobre o qual atuam, quase sempre em divergência, o ministério de energia e seu setor de planejamento e projeto, a agência de energia elétrica, a organização nacional de sistemas e o mercado de energia.
Portanto, ou se esclarece o que está em jogo na disputa política, ou a semântica continuará embaralhando corações e mentes. Que, aliás, é o que acontece quando uma parte da esquerda procura analisar o governo Lula diante da reorganização do capitalismo brasileiro, como veremos em comentários posteriores.
Wladimir Pomar é escritor e analista político.
Ao fazerem analogia entre o recente apagão e a falta de investimentos em infra-estrutura, eles procuram colocar no mesmo plano simbólico o apagão de Lula e o apagão de FHC. Afinal, Lula e Dilma não haviam dito que, em seu governo, não mais haveria apagão? Estabelecida a igualdade semântica, escamoteando e encobrindo a natureza, ou a causa, de um e de outro apagão, na verdade totalmente diferentes, o resto vira pura luta política.
Trata-se de tentar, mais uma vez, demonstrar que o governo Lula sofre de um problema estrutural de gestão e de operacionalidade. Afinal, o ano de 2010 está batendo à porta e é preciso encontrar brechas que permitam fragmentar a blindagem do governo Lula e derrotá-lo nas próximas eleições. Além de evitar, é claro, que o atual apagão sirva de pretexto para fazer nova reformulação no sistema elétrico montado na era neoliberal.
Visto sobre outro ângulo, o recente apagão pode ensinar alguma coisa. Mesmo porque tem sido comum que palavras e termos usados à vontade, sem explicitação de seu conteúdo, contenham armadilhas políticas, às vezes fatais. Basta lembrar das reformas estruturais que, lançadas ao vento pelos neoliberais como supra-sumo da modernidade, iludiram boa parte da esquerda. Sem sequer se esforçarem para conhecer seu conteúdo, muitos representantes populares lutaram pela aprovação de reformas cuja natureza era antipopular e antinacional.
Portanto, há reformas e reformas, do mesmo modo que há apagões e apagões. As reformas neoliberais, praticadas no Brasil por mais de dez anos, tinham como conteúdo a liquidação do papel do Estado como contraponto à anarquia do mercado. Elas realizaram um desmonte acentuado dos mecanismos necessários àquele papel, a exemplo dos sistemas estatais de planejamento e elaboração de projetos. E, ao mesmo tempo, transferiram de organismos do Estado algumas das funções de controle e regulação do mercado a agências privadas ou semi-privadas.
Sem sistemas estatais de planejamento e elaboração de projetos não é fácil tomar decisões sobre investimentos em infra-estrutura, que precisam ter um horizonte de 20 anos ou mais. Assim, apesar dos esforços, o governo Lula até hoje não conseguiu recuperar a capacidade plena do Estado em planejar e apresentar projetos. Quando as gerações futuras tiverem maior conhecimento dos efeitos do desmonte neoliberal do sistema estatal de planejamento e elaboração de projetos, e o que isso representou negativamente para o país, certamente se perguntarão por que seus responsáveis não foram processados e julgados criminalmente.
O fato é que esse desmonte, e suas conseqüências nos investimentos em infra-estrutura energética, estiveram na raiz do apagão ocorrido durante o governo FHC. Deixados por conta do mercado, os investimentos em geração e transmissão de energia não ocorreram na medida das necessidades. Por um lado, bastou um ano mais seco para que os reservatórios das usinas existentes fossem incapazes de suprir as demandas de geração de eletricidade.
Por outro, mesmo havendo sobra de energia no sul do país, não havia linhas de transmissão interligadas com as demais regiões, que pudessem minorar o suprimento insuficiente. A natureza do apagão da era FHC foi a junção de falta de investimentos em geração e em transmissão, resultando em racionamento e investimentos desordenados e nebulosos em geração termelétrica.
O apagão recente não teve origem em incapacidade de suprimento pela geração, nem na ausência de interligação dos sistemas de transmissão. É quase certo que parte de sua origem seja encontrada nos sistemas de controle e regulação herdados do neoliberalismo, e também em problemas técnicos relacionados com a complexidade da integração nacional das redes de transmissão. Mas é totalmente certo que tal apagão não resultou, nem vai resultar em qualquer tipo de racionamento.
Como, aliás, também é totalmente certo que a semântica vai continuar servindo para tentarem evitar que esse novo apagão sirva de motivo para completar o trabalho de reformulação do sistema elétrico brasileiro, sobre o qual atuam, quase sempre em divergência, o ministério de energia e seu setor de planejamento e projeto, a agência de energia elétrica, a organização nacional de sistemas e o mercado de energia.
Portanto, ou se esclarece o que está em jogo na disputa política, ou a semântica continuará embaralhando corações e mentes. Que, aliás, é o que acontece quando uma parte da esquerda procura analisar o governo Lula diante da reorganização do capitalismo brasileiro, como veremos em comentários posteriores.
Wladimir Pomar é escritor e analista político.
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