Emiliano José
Talvez, para compreender o Haiti, seja necessário recorrer ao pensamento que sonda as profundezas do passado. Dele, desse pensamento trata Hannah Arendt, em Homens em tempos sombrios, ao falar de Walter Benjamin, que desenvolveu uma originalíssima abordagem quanto à relação entre o passado e o presente. É belo o final do texto de Hannah Arendt sobre Benjamin, o heterodoxo marxista da Escola de Frankfurt.
O pensador que sonda as profundezas do passado age como um pescador de pérolas que desce ao fundo do mar, não para escavá-lo e trazê-lo à luz, “mas para extrair o rico e o estranho, as pérolas e o coral das profundezas, e trazê-los à superfície”. Esse pescador, esse pensador, então, encontra novas formas e contornos cristalizados que se mantiveram imunes aos elementos, algo “rico e estranho”, que é sempre bom e necessário recuperar.
Que pérola devemos recuperar diante da tragédia haitiana? Uma tragédia que vi com os próprios olhos, dia 3 de fevereiro, compondo uma delegação parlamentar que incluiu, além de mim, os deputados federais Raul Jungman, Colbert Martins, Cláudio Cajado e Janete Pietá. Andei pelos escombros impressionantes de Porto Príncipe. Os escombros me levavam a pensar sobre o terror que tomou conta da população durante os 45 segundos de terremoto e depois, no cenário de sangue e morte e dor que tomou conta da cidade.
Ouvimos muita gente. Os militares brasileiros que integram a Missão das Nações Unidas de Estabilização do Haiti – Minustah –, o presidente da República, René Preval, o presidente da Câmara dos Deputados, Levaillant Louis-Jeune, o representante especial do Secretário-Geral da ONU no Haiti, chefe da Minustah, Edmond Mullet, além de visitarmos as instalações da ONG Viva Rio e a embaixada brasileira.
Uma agenda intensa, e naturalmente precária. Não é possível apropriar-se da complexidade da situação de um país assolado por um terremoto, com mais de 200 mil mortos, 1 milhão de desabrigados, miséria e fome espalhados por todos os cantos, destroços impressionantes. Dos 15 edifícios que abrigavam os ministérios, 13 foram ao chão, literalmente. Também ao chão foram o suntuoso Palácio do Governo, o palácio do Legislativo, o palácio do Judiciário, a Catedral católica. Nada que simbolizava o poder ficou de pé.
Não sei se cabe a confissão: mas terminei o dia triste, macambúzio, sem muita disposição para conversar. Aquele cenário provocou em mim reflexões, indagações. Por que o Haiti chegara àquela situação? Não, não me perguntava apenas pelo terremoto e suas trágicas conseqüências imediatas. Estas eram visíveis, e reclamavam, reclamam a solidariedade efetiva da humanidade, de todos os países que puderem e quiserem ajudar.
A pergunta ia além: por que o Haiti exibiu, desde há muito, tanta miséria, tanta exclusão, tanta fome?
Não, não se argumente que a América Latina exibe miséria em todos os países. Não há comparações possíveis.
Um oficial brasileiro nos dizia que em alguns locais de Porto Príncipe, como Citte Soleil, uma gigantesca favela de mais de 400 mil habitantes, as pessoas estavam comendo melhor no pós-terremoto, com a ajuda que chegara, do que o faziam antes. Não se tem ideia da miséria haitiana.
Pensava no terremoto e suas conseqüências tão brutais. A natureza é o que é. É necessário respeitá-la. Ela, na sua ação, provoca resultados diferentes. Ignácio Ramonet tem razão: um terremoto em Honshu, no Japão, há coisa de 6 meses, na mesma escala (7,1), provocou um morto e um ferido. No Haiti, como sabido, mais de 200 mil mortos. Ramonet fala isso num texto denominado Aprender de Haiti.
O presidente René Preval abordou o completo despreparo de Porto Príncipe para os fenômenos naturais. Lembrou, por exemplo, que os quatro furacões que assolaram a região em 2008 provocaram 66 mortes no Haiti, nenhuma em Cuba. O Haiti não estava preparado. Cuba, sim.
Assim, embora a nenhum país seja dado desconhecer a imperiosidade da ajuda ao Haiti face ao terremoto, cabe reconhecer também que o problema vai muito além disso. Impõe-se, tenho insistido nisso, uma espécie de Plano Marshall para aquele país, que leve em conta a impressionante situação em que se encontra desde há muito.
O Haiti não é uma questão militar. Mesmo que hoje não se justifique, nem se peça a saída das forças militares da ONU, mesmo que o presidente René Preval defenda, ainda, a permanência delas, particularmente das forças brasileiras, pela qual ele tem muito apreço, penso que a médio prazo a retirada deva acontecer. A ONU certamente refletirá sobre isso.
Não sendo uma questão militar, por que os EUA se apressaram em deslocar um gigantesco contingente para o pequeno país? Com que direito? Com que objetivos? No caso das forças da ONU, estão lá com um mandato legal, têm objetivos claros. E os EUA? O que querem lá? Será que se trata apenas do medo de que os haitianos migrem para os EUA? Ou serão as manias do Império, que não admite qualquer conturbação em águas e terras que considere de seu domínio? O uso do cachimbo faz a boca torta. Mesmo afundados no Iraque e no Afeganistão, faz incursões pela América Latina.
O destino do Haiti só pode ser compreendido à luz da história. Só é possível apreender o porquê de tanta exclusão se vamos atrás do passado, se vamos às profundezas do fundo do mar buscar a pérola cristalizada, se recuamos na história. É lá no fundo do mar que encontraremos as razões da tragédia haitiana.
Diria que o país paga ainda o preço de uma extraordinária revolução. O povo haitiano nunca foi perdoado por ter feito uma revolução vitoriosa fora de época.
Não se fala muito de Toussaint L’Ouverture, o extraordinário escravo negro que liderou a revolução haitiana e que levou o País à independência, acabando com a escravidão no Haiti. Esse Spartacus negro comandou uma guerra que durou 13 anos, começando em 1791, invocando os ideais da Revolução Francesa, mas indo além deles, pois propondo e conseguindo o fim da escravidão. Nem os 43 mil veteranos de guerra mandados por Napoleão para acabar com a insurreição derrotou a revolução, proclamada vitoriosa em 1 de janeiro de 1804.
Este mau exemplo, como o denominou o presidente dos EUA, Thomas Jeferson, não foi bem recebido pelos países do centro capitalista, que persistiam praticando a escravidão.
O Haiti nunca foi perdoado. Havia que pagar um preço alto por tanta ousadia. O pastor pentecostal Pat Robertson, que é homem de televisão nos EUA, que já foi candidato à presidência da República, não fez rodeios e expressou na CBN, baseado em sua ideologia carregada de preconceitos, mas reveladora do pensamento dominante, como o Haiti é visto.
-Algo aconteceu há muito tempo no Haiti e as pessoas talvez não queiram falar sobre isso. Estavam sob domínio francês, na altura de Napoleão III, juntaram-se e fizeram um pacto com o diabo. Disseram: “Vamos servi-lo se nos libertar do Príncipe”. É uma história verdadeira. E o diabo disse: “OK, está combinado”. E os franceses foram expulsos. Os haitianos revoltaram-se e conseguiram libertar-se. Mas, desde então, foram amaldiçoados com coisas atrás de coisas”.
Canhestramente, talvez, Pat Robertson, expressou o que os países poderosos do mundo têm pensado ao longo da história. Falou sobre o castigo que deve pesar sobre os haitianos e sua revolução, a pérola escondida no fundo do mar. Intervenções sobre intervenções, ditaduras, fome, miséria, exclusão – trágico destino de um país condenado por sua revolução gloriosa.
Penso, espero, quem sabe, que o terremoto, obrigando o país a buscar o que tenha de forças intelectuais e políticas, possa provocar uma reviravolta que recoloque a nação num novo leito, e um leito que a faça erguer-se por conta própria, soberanamente. No dia 12 de fevereiro, um mês depois do terremoto, o presidente René Preval pediu ao povo que enxugasse as lágrimas e reconstruísse o país. “O Haiti não pode perecer”. Em nome do povo haitiano, em nome daquela gloriosa revolução, não deve perecer.
Fonte:CartaCapital
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