quarta-feira, 7 de abril de 2010

Compaixão e política


Emiliano José

Das conversas frequentes que tenho com Waldir Pires, ex-governador da Bahia, ex-ministro de Lula, incomparável figura humana e política, lembro-me de uma que me impressionou. Ainda no exílio uruguaio, conheceu um grupo de homens banidos por uma Espanha assolada pela guerra civil e dominada por Franco. Estavam no Uruguai havia muitos anos. Waldir disse-me que nunca vira tanto amargor. Conviviam entre si, e sentiam saudades profundas do solo pátrio, e nada no mundo lhes trazia alegria.

Waldir ainda estava no início do exílio, em 1964. Quando já na França, em 1970, estabelecido como professor universitário em Dijon e Paris, resolve voltar ao Brasil, correndo todos os riscos, aqueles espanhóis voltavam à sua mente de modo recorrente. Não queria ter o mesmo destino deles. Não queria viver com um pequeno grupo de exilados, girando em torno de reminiscências do passado e vivendo com amargor e ressentimentos. E muito menos queria que seus cinco filhos perdessem a noção da terra em que nasceram, deixassem de ser brasileiros. Todos os riscos valiam a pena para voltar ao seu País, e voltou.

Essa lembrança me foi suscitada pela leitura do livro de Hannah Arendt, Homens em tempos sombrios, particularmente o discurso dela ao receber o Prêmio Lessing, em Hamburgo, no ano de 1959. Hannah Arendt é uma entusiasta da política, da ação política, se me permitem uma interpretação aligeirada do tanto que ela produziu. E refletiu muito sobre os períodos sombrios, sobre o autoritarismo e sobre os erros cometidos pelos que se afastam da política, das coisas do mundo para cultivar uma vida em grupo, cultivar a vida entre iguais, evitando os diferentes.

Ela fala dos muitos períodos de tempos sombrios em que o âmbito público se obscureceu e o mundo se tornou tão dúbio que as pessoas deixaram de pedir qualquer coisa à política “além de que mostre a devida consideração pelos seus interesses vitais e liberdade pessoal”. Os que viveram tais tempos, muitos deles, se inclinaram a desprezar o mundo e o âmbito público, e tentaram “chegar a entendimentos mútuos com seus companheiros humanos, sem consideração pelo mundo que se encontra entre eles”.

Digamos que uma espécie de “vida em comunidade”, alheia à política, uma busca de entendimento apenas com os iguais, numa interpretação livre que faço do pensamento dela. E os exilados espanhóis no Uruguai me vêm à mente, outra vez.

A reflexão de Hannah Arendt nesse texto me surpreendeu pela crítica que ela desenvolve à compaixão, muito presente nas revoluções do século XVIII, tão forte em Robespierre.

A compaixão se desenvolve, na visão dela, entre os grupos párias, entre os perseguidos e reprimidos, os explorados e humilhados, e entre estes, poderíamos acrescentar os exilados. Nesse tipo de “sociedade”, onde emerge a compaixão, ocorre, na visão de Hannah Arendt, uma perda radical do mundo. Perda da política, da ação política. Ao intenso calor das relações humanas dentro desses grupos corresponde um afastamento do mundo.

Volto aos exilados uruguaios e a Waldir. Os exilados espanhóis desenvolviam a compaixão apenas entre si. E isso, ao afastá-los do mundo, da ação política, não lhes trouxe de volta a alegria de viver. Waldir quando voltou do exílio francês, não quis perder o mundo, não quis perder o seu País, não quis afastar seus filhos da terra em que nasceram e, ao voltar, preparava-se novamente para voltar à política, como voltou.

Não quis o destino da compaixão entre os desterrados, mas o dinamismo da luta no mundo, justiça para todos em sua terra, e não apenas uma boa vida na comunidade de exilados. E por isso, por acreditar na ação política, na necessidade da ação humana para transformar o mundo, Waldir sempre manteve, como mantém, a alegria de viver. E mantém a esperança de que a política, à Hannah Arendt, tem uma missão civilizatória. Só ela, a política, pode dar esperanças à humanidade.

Volto novamente à Hannah Arendt e sua visão sobre a compaixão. Ela faz um paralelo entre o pensamento moderno e o pensamento da antiguidade sobre a compaixão. A antiguidade não tinha pela compaixão o apreço dos modernos. Igualava a compaixão e o medo, e ambos os sentimentos, por serem passivos, impossibilitam a ação. Nossa autora considera que os sentimentos que acompanham a união de iguais, ou de párias, em tempos sombrios, sentimentos próprios de uma abstrata natureza humana, manifestam-se apenas na obscuridade e, portanto, “não podem ser identificados no mundo”. E mais: “em condições de visibilidade, dissolvem-se no nada como fantasmas”.

E não é que ela despreze inteiramente a compaixão, pois sabe que em tempos sombrios tal sentimento pode tornar suportáveis, como ela diz, o insulto e a injúria, ou, como digo, a perseguição e o exílio. Mas em termos estritamente políticos, esse sentimento ou aquilo que ela também chama a humanidade dos insultados e injuriados, “é absolutamente irrelevante”. E não consegue substituir a vitalidade da ação política, que é uma forma de sempre estar no mundo, de interferir no mundo.

É natural que em tempos sombrios homens e mulheres perseguidos queiram se aproximar e buscar no calor da intimidade “o substituto para aquela luz e iluminação que só podem ser oferecidas pelo âmbito público”. Hannah Arendt sempre insistirá na ação política como essencial à vida humana.

Tenho convicção de que Waldir, diante da vida, preferiu sempre o caminho da política em seu sentido mais amplo e generoso. E esse sentido é o de estar sempre sintonizado com as aspirações da humanidade em favor da democracia, da liberdade e da igualdade, luta que é constante, e que nunca se fará senão estando no mundo, e não à margem dele. Os exilados espanhóis que Waldir conheceu certamente permaneceram abraçados e solidários entre si, mas nunca conseguiram recuperar a alegria de viver porque não foram capazes de se recolocar no mundo, enfrentar novamente o desafio da política.

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