sexta-feira, 9 de abril de 2010

Os reis da xepa


Eduardo Graça, de Nova York, e Gianni Carta, de Paris

A decadência mundial dos meios de comunicação acelera um processo ruim à democracia: a concentração da propriedade nas mãos de poucos magnatas

No mundo dos negócios, um claro sinal da decadência de um setor é a rapidez com que a propriedade e o centro do poder mudam de mãos. Repare no que aconteceu à indústria automobilística: as gigantes norte-americanas definharam ou foram vendidas, enquanto o eixo do lucro migrou para as companhias da Ásia. E veja o que tem ocorrido na mídia. Nos Estados Unidos e na Europa assiste-se a uma acelerada concentração do controle e uma mudança geográfica no perfil dos maiores acionistas. Despontam russos, árabes, australianos e latino-americanos, alguns deles com inequívoca vocação para cidadãos Kane, o inescrupuloso proprietário de jornais, maravilhosamente retratado por Orson Welles no clássico filme que leva o nome do personagem.

Chega a ser um paradoxo. Em várias partes do planeta, inclusive no Brasil, há um frenesi dos donos de meio de comunicação com o que consideram ser um movimento orquestrado para inibir suas liberdades. Em geral, os senhores apontam seus indicadores em direção a governos ou associações civis interessadas em estabelecer discussões mínimas sobre os direitos dos cidadãos diante do poder desigual da mídia. Ironicamente, a maior ameaça às famílias tradicionais e à própria natureza do empreendimento – sem falar nos riscos reais à democracia – vem justamente da ascensão de um novo tipo de empresário do setor, incapaz de separar seus interesses particulares do caráter público da imprensa (parênteses: não se trata aqui do caso brasileiro, onde nunca houve essa separação).

O exemplo mais recente a ameaçar os velhos princípios da imprensa foi a compra, em março último, do inglês The Independent, um dos mais consistentes jornais do mundo, pelo bilionário russo Alexander Lebedev. Ex-agente da KGB, Lebedev também controla o vespertino londrino The Evening Standard.

Na França, outro Alexander, também bilionário e russo, mas com sobrenome Pugachev e apenas 25 anos, adquiriu o France--Soir. Na Itália, instalou-se uma briga de cachorro grande. O australiano naturalizado norte-americano Rupert Murdoch, dono da onipresente News Corporation e o mais bem acabado Cidadão Kane da atualidade, briga no mercado televisivo com o premier Silvio Berlusconi. Desde a chegada da Sky na Itália, em 2003 (via satélite), a relação entre o barão da mídia de 79 anos e o Cavaliere, de 73, oscilou. A partir de 2008, contudo, quando a receita da Sky superou a do grupo Mediaset de Berlusconi (três canais terrestres privados de tevê), a coisa encrespou. “O problema é comercial e ao mesmo tempo político”, avalia a jornalista Veronica Collatti, da rádio franco-italiana Envie d’Italie. “Berlusconi acusa Murdoch de instigar os seus jornais contra ele para desviar a atenção do cerne da questão: o sucesso da Sky na Itália.”

Se ainda se entende por que Murdoch formou a Sky Italia, com a fusão dos canais Telepiu e Stream, o que o leva a comprar jornais com dívidas faraônicas é uma incógnita. A mídia europeia não foi poupada pela crise econômica e, antes dela, pelo advento da internet e de jornais gratuitos. “Se você se sentar em um vagão de metrô no centro de Londres é mais provável ver as pessoas lendo mensagens nos seus celulares ou assistindo DVDs nos seus laptops”, observa Matt Barker, jornalista londrino que escreve para, entre outras, a mensal Esquire. Barker acrescenta: “É possível que dentro de um ano a maioria dos senhores em ternos escuros na primeira classe de um TGV de Londres para Paris não mais lerão seus jornais no formato papel”.

Magnatas estrangeiros interessados em jornais falidos podem, às vezes, inverter, ou ao menos desacelerar, esse processo. Veja o caso do France-Soir. Até dois meses, o periódico com tiragem de 1 milhão, nos anos 50 vendia meras 22 mil cópias. Mas em 17 de março último, sete novas rotativas voltaram a rodar para imprimir 500 mil exemplares. Cerca de 20 milhões de euros foram gastos em marketing. Em anúncios para a tevê, uma mulher, vestida como nos anos 50, caminha enquanto lê o tabloide; um senhor elegante, ao seu lado, estica o pescoço e faz o mesmo; um menino com uma pilha de cópias do France-Soir debaixo do braço alça um exemplar com a boca aberta para, claro, aguçar a curiosidade dos transeuntes com as últimas notícias.

O russo Pugachev contratou mais 50 jornalistas, entre eles o famoso ex-apresentador do canal TF1 Patrick Poivre d’Arvor. A redação conta agora com 90 repórteres. O jornal, fundado em 1944 por dois ex-integrantes da Resistência francesa, ganhou novo design, tornou-se mais colorido, arejado, as letras estão maiores. O novo dono não mede gastos com fotos: as quer de excelente qualidade, custe o que custar.

Édouard Bailby, jornalista veterano que escreve para o Le Monde Diplomatique, é cético em relação a esses magnatas. “Não tenho nada contra um russo que compra um diário francês”, explica. “O problema é este: comprar jornal virou um negócio mercantil. É como virar dono de um supermercado. E isso afeta a credibilidade da imprensa.”

Sobre o endividamento do France-Soir e outros detalhes sabe-se pouco, ao -menos se o interessado procurá-los nos diários franceses. Mais eficazes (e divertidos porque têm maior senso de humor), os veículos do lado superior do Canal da Mancha fornecem minúcias sobre as recentes vendas de jornais para Lebedev. No ano passado, o Independent e o semanário Independent on Sunday perderam (antes de serem computados impostos) 31 milhões de euros. Mas o Independent não é exceção: no mesmo período Times e The Sunday Times, ambos de Murdoch, sofreram perdas anuais de 87,7 milhões de libras. Continue lendo.

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