quinta-feira, 12 de julho de 2012

Sobre pessoas e partidos



A guerra na qual se transformou o processo de escolha do candidato a prefeito do PT no Recife revela a dificuldade em se consolidar partidos em nossa cultura. Em nossa história, os partidos políticos foram sempre pouco orgânicos. Apesar de, em certos momentos, algumas siglas ostentarem alguma identidade ideológica, a regra tem sido a prevalência de interesses pessoais ou de pequenos grupos. Isso não é exclusividade do momento de escolha de candidatos. O eleitor também não se prende a discursos mais estruturastes, escolhendo pontualmente, sem valorar muito a sigla à qual está ligado o candidato. Vota no candidato, não no partido. Casos como o da eleição de Jarbas para a Prefeitura do Recife, em 1985, quando saiu do seu partido só para ser candidato, evidenciam essa cultura.

O PT nasceu com uma certa identidade, apesar de ter em seu interior uma plêiade de posições políticas de esquerda. Era um partido de esquerda não alinhado às experiências de socialismo real. Os partidos comunistas estavam doutrinariamente presos à União Soviética (PCB) ou à Albânia (PCdoB). Para o PT foram, dentre outros, (i) críticos do socialismo real, especialmente os abrigados nas universidades, (ii) sindicalistas neosocialistas, ainda sem uma definição ideológica muito clara, (iii) católicos de esquerda, em torno de teologias fortemente marcadas por críticas sociais, (iv) organizações leninistas, como o PCBR e o PRC, e v) trotoskistas, como a Convergência Socialista, a Democracia Socialista e a LIBELU (O trabalho).

A convivência foi sempre difícil, mas a democracia interna permitia que ela existisse com o mínimo de civilidade. Para viabilizar um diálogo, a divisão foi institucionalizada. O PT inaugurou no país a prática do reconhecimento oficial de tendências, que disputavam a estratégia partidária, os diretórios e vagas nas chapas majoritárias. A maior delas era a chamada "articulação", cujo nome vem do manifesto "articulação dos 113", documento assinado por 113 figuras importantes na construção do PT e que decidiam, ali, disputar organizadamente os seus rumos. Mas outras tinham também certa expressão.

Nós, membros de tendências minoritárias, tínhamos já a sensação de que, por sua estratégia eleitoral mais imediata, a Articulação passava rolo compressor sobre as nossas cabeças.

Iniciei a militância junto ao PT em 1986, em Natal. Filiei-me, apenas, em 1989. No início, ainda não filiado, gravitava em torno do PCBR, apesar de ter contato com poucos membros desse partido. Meu contato era por meio de companheiros do movimento estudantil. Era uma convivência tumultuada, pois eu tinha um pé atrás em relação a um conjunto de coisas que, para mim, eram autoritárias, especialmente nas leituras do leninismo. Eu lia muitos textos da revista Teoria&Política, que era mantida por membros do PRC. Gostava dos textos de Adelmo Genro Filho, de Tarso Genro, de Aldo Fornazieri, dentre outros. Eram textos com certa profundidade, quando comparados com a prática política do campo onde eu estava. Em 1988, entrei na UFRN, o que me proporcionou uma aproximação com o PRC. Na época, nacionalmente havia uma tendência no movimento estudantil, a "Caminhando", que era o biombo do PRC naquele movimento, algo típico das organizações leninistas (para entendê-las, recomendo a leitura do próprio Lênin, no livro "que fazer?", de 1902, ou seja, de quando a revolução russa era uma possibilidade distante e a organização era uma necessidade). A Caminhando era a maior tendência petista no movimento estudantil.

Em Natal, a "Caminhando" tinha, por razões locais, outro nome: "Clarear". Era um grupo bom, formado por militantes preocupados, ao mesmo tempo, com a prática política e com a sua fundamentação teórica. Em 1988, fui eleito Secretário-Geral do Centro Acadêmico de Direito. Em 1989, fui eleito Secretário-Geral do Diretório Central dos Estudantes. A essa altura, eu já fazia parte da Coordenação da Clarear na UFRN, ao lado de Eduardo, o presidente do DCE, e Francisco Ramos, Segundo Vice Presidente. Reuníamos um conjunto de artigos sobre política, de autores de esquerda, e fazíamos o que chamávamos de "Cadernos de Clarear", uma espécie de revista com artigos roubados. Era um roteiro para estudos e debates. Nossas reuniões, para debater tais textos, eram, muitas vezes, em ensolarados domingos, sob as mangueiras da Faculdade de Medicina da UFRN. Todos na praia e nós, a menos de um quilômetro dela, discutindo o futuro do país.

No PT de Natal, o equilíbrio entre tendências era inusitado, quando comparado ao que acontecia no resto do país. Estranhamente, não havia a Articulação organizada. Talvez, por isso, não crescíamos rapidamente nas eleições. Faltava aos idealistas comunistas daquela quadra o pragmatismo que a articulação ia impondo ao PT.

Participei, para minha sorte, do rico debate sobre a dissolução do PRC e a criação de uma tendência mais ampla, chamada de "Nova Esquerda". Eu estava sendo "recrutado" pelo PRC. Recebia textos de um amigo, designado para isso, e ia para a casa dele discutir. Eram textos do Comitê Central, que abria um debate sobre a inadequação daquela forma partidária para a época na qual vivíamos. Eu adorava os textos que criticavam o marxismo-leninismo, o que transformava a reunião de "recrutamento" em um momento de conflito, já que o meu amigo era reticente em relação a essa crítica e tendia a cerrar fileiras com o único membro do comitê central que defendia com todas as garras o marxismo-leninismo, que, se não me engano, respondia pelo pseudônimo de "Zé Luiz". Ao final, daquele grupo saíram duas tendências, a "Nova Esquerda", que depois dividiu-se mais, e a "Tendência Marxista", que abrigou os mais ortodoxos.

Eu tinha fortes preocupações com democracia. Lia Bobbio, Walter Benjamin, Castoriadis, dentre outros, sendo difícil absorver um discurso leninista que me parecia fora do tempo. Vi amigos, que, no início, tendiam a marchar com os ortodoxos, reconhecerem a necessidade de abrir horizontes e decidirem seguir com a Nova Esquerda.

Os encontros municipais do PT eram ótimos. Geraldão, pela Convergência Socialista (hoje, PSTU) , dispensando o microfone e, do alto dos seus mais de cem quilos, literalmente gritando seus discursos, para desespero das crianças, que choravam no auditório da Faculdade de Farmácia. Era tão estranho o PT em Natal que nos juntávamos com todas as outras tendências para derrotar a Convergência, que tinha quase metade do auditório. Eu falava, por necessidade de reforçar as posições da tendência, pois a minha timidez lutava para me impor o silêncio. Fui, por dois anos, após a saída do DCE, assessor do único vereador que o PT tinha em Natal, o hoje Deputado Estadual Fernando Mineiro.

Parecia-me o PT um espaço no qual você aprendia que radicalizar a divergência política não era motivo para o afastamento pessoal. Não havia, na época, projeto pessoal, mas de grupos. Os que militavam em tendências mais à esquerda exalavam, via de regra, idealismo.

Óbvio que não eram todos santos. Eleições nos movimentos sindicais e estudantis prenunciavam muitas das práticas absurdas que alguns membros do partido protagonizaram no poder público. O uso da máquina das entidades era relativamente comum. Mas, ainda assim, pareciam diferentes do que alguns fazem hoje, pois era resultado de uma leitura equivocada da política, no caldo do autoritarismo que há em alguns discursos de esquerda, que entende que os fins justificam os meios. Os fins, no entanto, eram públicos. Dói, muitas vezes, sentir que muitos que acreditavam em um mundo melhor decidiram, diante das evidentes dificuldades de construir esse novo mundo a curto ou médio prazo, fazer as suas vidas pessoais melhorarem, a custo de práticas que antes tanto criticávamos na direita.

De certa forma, há ganhos para a democracia quando tudo isso acontece. O PT construiu um discurso excessivamente moralizador - a estilo da folclórica Heloísa Helena. Parecia que ser corrupto correspondia a ser de direita. O denuncismo foi, por um bom tempo, sua arma mais forte na política. Hoje, sofre com os ataques de outros partidos que adotaram essa sua tática. Hoje fica mais evidente que corrupção não tem ideologia, tem conveniência. Os corruptos estão bem distribuídos entre os partidos. Assim, precisamos ter a conduta ética em relação aos recursos públicos e a postura firme no combate à corrupção como pré-requisitos do debate político, exigível de esquerda e direita. Mas, o que divide tais grandes grupos de posições políticas são outras coisas: papel do Estado na economia, responsabilidade do Estado por problemas sociais, política internacional, dentre outras.

O PT foi, assim, o caminho no qual enxerguei a viabilidade de um partido de esquerda e democrático. Mudou muito, desde que o conheci. Mas, ainda, continua tendo uma marca em meio ao confuso espectro partidário. O pragmatismo arranhou, em muito, sua imagem. Lamentei a saída de figuras que admirava profundamente na vida partidária. Destaco as saídas de Erundina, Gabeira, Cristovam Buarque e Marina Silva. A cada um, vi o PT ficar menor moralmente. Nenhum deles teve uma alternativa partidária à altura do que sonhavam quando construíam PT. Ao contrário, foram para partidos tão complicados quanto ao PT. Partidos com donos e com histórico de pragmatismo tão criticável quanto o que o PT estava adotando. PDT, PSB e PV não vão ficar para a história como exemplos de coerência ideológica. Deixaram os que ficaram no PT mais dependentes dos excessivamente pragmáticos.

Aqui em Pernambuco, acompanho Maurício Rands há muito tempo. Votei nele nas suas três eleições para deputado federal. Com sua saída, mais uma vez o PT diminui. Lamento profundamente a sua decisão. No entanto, apesar de não ter vida partidária, já que não participo de núcleos e não vou a encontros, mantenho-me filiado. Acho que, apesar de estar o PT em destroços, não visualizo nenhum partido que o substitua. O PSOL foi criado por ex-petistas, mas, ainda, é uma caricatura de partido, tentando encontrar um PT das origens, que nunca mais existirá, e gastando quase todas as suas energias para criticar o PT que está aí. Votarei na chapa petista para a Prefeitura. Mas tão sem ânimo quanto na eleição de João da Costa. Naquele ano, não pedi votos, não defendi o candidato. Estava desanimado pela forma como o nome dele havia sido imposto.

Continuo filiado, mas aposto mais em uma espécie de "ecumenismo de esquerda". Um diálogo com ex-petistas e pessoas sem vínculo partidário, mas que têm posições claras em defesa da democracia, em defesa de uma regulação eficaz da economia pelo Estado e da assunção pelo Estado dos grandes problemas sociais que o país ainda enfrenta. Também temos uma agenda política importante em defesa de direitos humanos em um país no qual a cultura dominante é autoritária. Defesa de direitos das mulheres, direitos de homosexuais, direitos indígenas, igualdade racial, dentre outras causas que têm tantos inimigos.


Gustavo Ferreira Santos é professor de Direito da UFPE e UNICAP.

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