Luiz Marques
I
Na sessão do Supremo Tribunal Federal (STF), em que tropelias ocorreram para
estipular punições ao ex-chefe da Casa Civil, José Dirceu (10 anos e dez meses
de prisão em regime fechado, multa de R$ 676 mil), e do ex-presidente nacional
do PT, José Genoino (6 anos e onze meses de prisão em regime aberto, multa de R$
468 mil), firmou-se na instituição a concepção de democracia como sinônimo de
opinião.
Ao argumentar sobre os crimes supostamente cometidos, o ministro Joaquim
Barbosa usou de um raciocínio silogístico, tipo “se, então”, arguindo que a
democracia é a possibilidade de sensibilidades diferentes se expressarem. Os
praticantes do “mensalão”, entendido como compra do voto de partidos e
parlamentares para avalizarem os projetos do governo federal no Congresso,
atentaram contra a democracia por calar as diferenças. Os Estados Unidos e a
Europa, que elogiam o Brasil por ter alavancado a ascensão social de 40 milhões
de pessoas em um curto período, pasmos, concluirão que o Executivo brasileiro
pagou para que o Legislativo adotasse um espírito público!
Editoriais endossaram o arrazoado do relator no papel caricatural de um
redivivo Wyatt Earp. A trama urdida para os congressistas apoiarem as políticas
do presidente Lula “colocava em risco o regime de liberdades”, que, não
obstante, Dirceu e Genoino ajudaram a consolidar. “Golpe na impunidade”, “Penas
de petistas somam 26 anos”, “STF pune dois símbolos do PT” foram as manchetes
produzidas para enxovalhar a sigla que o jogral, ensaiado com a cúpula do Poder
Judiciário, pretendeu extinguir nas eleições de 2012. As urnas frustraram a
estratégia da sociedade civil de cima. Contrariando as expectativas, o petismo
foi o campeão na corrida pela preferência popular.
Assistimos agora ao terceiro turno do pleito, conclui-se das invectivas do
STF. Como Marco Antônio no discurso fúnebre que proferiu sobre o assassinato de
Júlio César (“até tu, Brutus?!”), na peça de Shakespeare, é de perguntar-se que
virtude republicana oculta levou “homens honrados” a pronunciarem sentenças
condenatórias tão duras, com soberba apenas comparável ao repentino e inusitado
desprezo pelas provas.
II
O STF não teve independência ao julgar. Agiu sob óbvia influência externa.
Entrou para a história como prestidigitador e não como guardião de direitos. Não
respeitou sequer a jurisprudência do Tribunal. Às pressas, importou um conceito
da Alemanha, o chamado “domínio do fato”, que serviu de pretexto para
condenações à revelia de provas. Porém, foram desautorizados pelo autor da
noção. Vexatoriamente, diga-se.
Com a palavra, Claus Roxin: “A posição hierárquica não fundamenta, sob
nenhuma circunstância, o domínio do fato”… “O mero ‘ter que saber’ não basta”,
esclareceu o jurista alemão, desfazendo a pantomima amplificada a título de
fundamentação técnica para legitimar a sanha justiceira que pisoteou a
Constituição, como se a representasse (Saul Leblon, “O silêncio que ofende a
consciência nacional”, Carta Maior).
A obra em que Roxin trata da questão foi traduzida para o
espanhol: Autoria y Dominio del Hecho en Derecho Penal, 2000. Em que
passagem o relator leu que um arranjo de indícios poderia substituir as provas,
e seus pares em nome do que avalizaram a novidade? Não ocorreu a ninguém
consultar a fonte bibliográfica? Onde o discernimento, a criticidade, a
responsabilidade com o ordenamento jurídico? Como forjou-se a audiência para um
construto jurídico que fraudou o seu significado original, adequando-se a uma
predisposição político-ideológica fora do Estado de Direito Democrático? Foram
graves os procedimentos de toga, a nação assistiu a tudo ainda sem juntar as
pontas.
Um problema de hermenêutica, isto é, de interpretação, decerto, pois não se
pode supor uma desonestidade intelectual em membros da alta magistratura, de
semblantes sérios. Por convenção, preside-os uma ética. Se afirmam que Dirceu e
Genoino merecem ir para a cadeia, devem ter razões. Se, para tanto, é preciso
elidir as Leis e arquitetar uma teoria fantasiosa para alcançar a Justiça, devem
ter razões. Se desejam da memória do povo apagar a Era Lula e as conquistas
protagonizadas pelo PT, devem ter razões. Afinal, são “homens honrados”,
reforçaria o famoso orador romano aos cidadãos.
III
Qualquer coisa que pudesse conter a ordem de criminalização do PT e suas
lideranças históricas foi afastada do caminho. “Às favas, nesse momento, todos
os escrúpulos”. Impossível não recordar a intervenção de Jarbas Passarinho ao
proferir seu parecer favorável na reunião que aprovou o Ato Institucional N° 5,
em 1968.
A falta de escrúpulos abarcou o direito de defesa (Marco Weissheimer,
“Violação da ampla defesa pode anular Ação Penal 470”, Sul 21). As
consequências para os envolvidos poderão ser reparadas com o tempo, talvez na
Corte Interamericana de Direitos Humanos, em São José da Costa Rica, mas
deixaram cicatrizes feias. As mais horripilantes, aos olhos das futuras
gerações, com certeza, estão na pele dos acusadores e não na dos acusados. Não é
necessário gastar muitos neurônios para saber quem educou os educadores. Basta
abrir a Veja, do Policarpo e do Cachoeira, e as publicações
congêneres.
A conceituação de democracia adotada pelo STJ, como oportunidade para a
expressão de divergências de pontos de vista, também reverberou o lugar comum
dos meios de comunicação, para quem a prática democrática resume-se ao jogo de
opiniões, sem relação com as demandas sócio-econômicas de cidadania ou com o
processo civilizatório. A democratização da democracia fica assim alijada da
agenda pública. Não espanta o silêncio sobre o financiamento privado de
campanha, que está na raiz do Caixa 2. A “democracia de opinião” não contempla
mudanças no status quo. Seu modelo de interação política é estático e vertical,
só reconhece um sujeito: os medias.
No entanto, “a democracia como movimento reinventa-se”, escreveu Claude
Lefort (L’Invention Democratique, 1981). Reconhece como sujeitos
históricos os movimentos sociais que lutam pela liberdade e pela igualdade.
Possui uma dinâmica cumulativa de valores, que se rebela contra qualquer
restrição de direitos na esfera pública. As únicas opiniões que admite como
legítimas são aquelas inclusivas, por promoverem avanços da civilização e
evitarem recaídas na barbárie. Opiniões que reivindicam a superioridade de
gênero ou de etnia ou de nacionalidade, para ilustrar, são manifestações
assentadas na exclusão humana. Devem ser coibidas, ao invés de estimuladas e
publicizadas.
IV
A judicialização das posições políticas da direita explica a sintonia entre o
STF e os grupos midiáticos, bem como a cadência do julgamento e as sentenças na
Ação Penal 470. Que esquerdistas aproveitem para “exigir o fim de todas as
quadrilhas políticas”, surfando na onda de arbitrariedades jurídicas, só um
insensato oportunismo pode explicar.
Luiz Marques é professor de Ciência Política da UFRGS
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