domingo, 1 de fevereiro de 2009

O EXEMPLO VEM DO STF

O justo e o legal
Há completo desprezo pela legalidade no Brasil
Por Rodrigo Haidar

Por mais nobres que sejam os objetivos, não se pode atropelar a lei para atingi-los. Muitas decisões judiciais — principalmente as do Supremo Tribunal Federal — são bastante contestadas exatamente por analisar as causas sob o ponto de vista de que os fins não justificam os meios. Para o vice-presidente do Supremo, ministro Cezar Peluso, isso é muito preocupante.

Peluso completou 40 anos de magistratura — cinco deles no STF — no ano passado. É desse posto de observação privilegiado que traça um diagnóstico da carreira à qual dedicou a vida. “Se a magistratura não se voltar um pouco para dentro de si mesma, a longo prazo pode ter sua imagem irremediavelmente comprometida”, analisa.

Para o ministro, os juízes, principalmente da nova geração, vêm perdendo algumas das mais importantes qualidades que fizeram a magistratura ganhar respeito no país. Recato e prudência são predicados que, segundo ele, estão deixando de pertencer à carreira.

A raiz do problema, afirma, é a forma de recrutamento. “O universo de candidatos à magistratura restringe-se a jovens recém-formados, que não têm experiência profissional, não têm experiência de vida ou equilíbrio e maturidade suficientes para ser juiz. E nosso processo de recrutamento não permite apurar a vocação.”

Em entrevista à Consultor Jurídico, o ministro falou também da falta da cultura da legalidade no país — que se torna mais grave quando parte de operadores do Direito acredita que, para pegar bandidos, vale atropelar o ordenamento jurídico —, das tensões criadas entre os poderes com as decisões do Supremo, de escutas telefônicas, mas, sobretudo, de Justiça. O ministro considera que, em 2008, o Estado brasileiro subiu alguns degraus graças ao STF.

Cezar Peluso recebeu a revista Consultor Jurídico em seu gabinete, no Supremo, na segunda-feira (26/1). A entrevista foi marcada para fazer o perfil do ministro para o Anuário da Justiça 2009, que será lançado em março.

Leia a entrevista

ConJur — Como o senhor vê o Poder Judiciário hoje?


Cezar Peluso — Com certa preocupação. Sobretudo com as novas gerações de magistrados, que vêm perdendo algumas das qualidades que tornaram a magistratura uma instituição respeitada no país. Tem-se deixado de lado as chamadas virtudes tradicionais do magistrado.

ConJur — Quais virtudes?


Peluso — Certa reserva no comportamento, a circunspecção, a gravidade, a prudência. É fundamental ter um pouco de recato na vida privada. Esses predicados da magistratura estão sendo subvalorizados. Sob o pretexto de democratização, modernização ou abertura do Judiciário, juízes passaram a expor-se demais e a falar muito fora dos autos. Hoje, dão opinião sobre tudo, manifestam-se até sobre processos em andamento na mão de outros colegas, fazem críticas públicas e não acadêmicas a decisões de outros magistrados, a decisões de tribunais. Isso não é saudável porque cria na magistratura um clima e uma presunção de liberdade absoluta, de que o magistrado pode fazer qualquer coisa. Se alguém reage contra esse tipo de comportamento, é taxado de retrogrado, antidemocrático, autoritário.

ConJur — Mas o fato de os juízes se abrirem não é uma evolução?


Peluso — É, mas hoje há certo exagero. A democratização da magistratura não é como a democratização de outras instituições, que dependem de relacionamento muito próximo com o público. Os políticos, por exemplo, vivem do contato com o público. Os juízes devem ser mais recatados nesse ponto. Minha experiência como magistrado, principalmente nas cidades do interior pelas quais passei, sempre me mostrou que o juiz que cultivava as virtudes mais tradicionais era mais respeitado.

ConJur — Ou seja, o problema não é o juiz falar, é sobre o que falar?


Peluso — Sobre o que falar, como falar e quando falar. E não é só o falar. É o comportar-se. Só para dar um exemplo, hoje há juízes processados por dar tiros a esmo em lugares públicos. Há processos disciplinares contra juízes por uso indevido de arma de fogo em vários tribunais. Isso mostra que há um afrouxamento dos limites que a magistratura tem de se impor e que são altamente importantes para a imagem pública do juiz e do Judiciário. Se a magistratura não se voltar um pouco para dentro de si mesma, a longo prazo pode ter sua imagem irremediavelmente comprometida. Os magistrados estão muito mais preocupados com coisas externas, que não são típicas de suas funções. Isso abala a confiança da população no Judiciário.



ConJur — Mas a confiança não está abalada já, principalmente pela lentidão processual?


Peluso — Recentemente, algumas pesquisas mostraram que o grau de confiança da população no Judiciário baixou. Para mim, esse é um sintoma claro de que algo não está bem dentro da magistratura. A causa de a confiança ter caído não é só o atraso na marcha dos processos porque esse problema sempre foi crônico e não é exclusivo do Brasil. Em todos os lugares do mundo, há lentidão processual, até nos Estados Unidos. Para mostrar isso, eu costumo citar o caso do O.J. Simpson [ex-jogador de futebol americano e ator acusado de matar a mulher e absolvido da acusação]. Só o processo para a realização do júri criminal durou mais de um ano. Se tivesse acontecido aqui no Brasil, iriam dizer que o tempo que levou é absurdo. Então, o problema da lentidão é antigo e mundial. Se fosse essa a causa da perda de prestígio da magistratura, decerto não haveria essa queda recente no grau de confiança do povo.

ConJur — Há outras causas para a perda de prestígio?


Peluso — Há uma perda de rigor no processo de recrutamento de juízes. Essa é a raiz do problema. Qual é o fato objetivo? Há centenas de vagas abertas para a magistratura que não conseguem ser preenchidas. Faz-se um concurso para preencher cem cargos e são aprovados, no máximo, 30 candidatos. Diante da necessidade de preencher esses cargos e do fato de que advogados com mais experiência não trocam a advocacia pela carreira de juiz, a qualidade da seleção cai. Antigamente, o grosso da magistratura era formado de advogados com experiência. Quando entrei na carreira, havia vários juízes e desembargadores que haviam sido advogados famosos no interior.

ConJur — E por que isso não acontece hoje?


Peluso — Por uma série de fatores. Um dos mais importantes é o fator econômico. Ninguém larga uma advocacia que vai economicamente bem pela magistratura, para ganhar menos, exceto em caso de forte vocação. O universo de candidatos à magistratura está diminuindo. Está-se restringindo a jovens recém-formados, que não têm experiência profissional, não têm experiência de vida ou equilíbrio e maturidade suficientes para ser juiz. Nosso processo de recrutamento não permite apurar o caráter, a personalidade, a vocação, como a pessoa se comportará no exercício do cargo. Então, o jovem faz concurso, já é nomeado juiz e depois vai para a escola de magistrados. Na escola, não se observa muito bem. O resultado disso se revela depois: o número de processos disciplinares contra juízes com poucos anos na magistratura é muito grande. As pessoas se revelam como tais pouco tempo depois de vitaliciadas e aí os tribunais têm muita dificuldade para as excluir da magistratura.

ConJur — Há uma inversão de valores nos concursos. Mais de 90% dos candidatos são reprovados no teste de conhecimento e todos são aprovados no estágio probatório.

Peluso — Tudo isso é preocupante, mas não podemos dizer que a magistratura brasileira está em estado caótico. Não é isso. Só que é necessário estudar os limites do comportamento do juiz. Analisar o que podemos admitir como evolução dos tempos e o que é desvio de função e de comportamentos.

ConJur — Isso tem a ver com a falta de cultura da legalidade que o senhor citou em um julgamento?


Peluso — A cultura da legalidade é o sobretudo que falta neste país, de baixo para cima e de cima para baixo. Não somos educados na cultura da legalidade. As pessoas não querem saber se determinado ato é legal ou não. Podemos ver isso todos os dias, por exemplo, no trânsito, mas também em quase todos os setores. Os diálogos exemplificativos são mais ou menos assim: “Isso aqui precisa ser feito”. “Sim, mas há uma lei que diz que não se pode fazer assim”. “Não tem importância. Faz e depois a gente vê”. É o completo desprezo pela legalidade. E não importa o objetivo. Hoje, há muita gente que acha válido passar por cima da lei para pegar supostos criminosos. Não pode. Causou-me perplexidade uma pesquisa feita há alguns anos, na qual os jovens responderam que para progredir na vida valeria tudo, até desrespeitar a lei e tomar atitudes antiéticas. Isso é um desastre. E é nesse caldo de cultura que estamos vivendo, recrutando os juízes.

ConJur — Os fins não justificam os meios...


Peluso — Não. As decisões do Supremo são muito questionadas por isso. Determinadas CPIs têm objetivos extraordinários, então muitos acham que vale tudo para que eles sejam alcançados. Todo mundo está de acordo com os objetivos. Ninguém é favor da corrupção ou de interceptações telefônicas para baixo e para cima. Sou contra tudo isso. Agora, para combater isso é preciso respeitar o ordenamento jurídico. Há outros valores jurídicos envolvidos na questão. Para atingir um objetivo necessário e legítimo, eu não posso admitir que se comprometa um mundo de garantias fundamentais dos cidadãos. Os fenômenos, sobretudo os fenômenos políticos, quando são objeto de decisão do Judiciário, são julgados a partir desse ponto de vista, de que não se pode fazer qualquer coisa a qualquer titulo só porque o escopo final é valido, aceito e todo mundo quer.

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Comentário.

Ora, o próprio STF é que tem desprezo pela lei, quando edita reiteradamente Súmulas Vinculantes sobre matérias afetas ao Poder Legislativo, quando determina abertura de CPI só para satisfazer a oposição golpista, quando concede Habeas Corpus violentando o Princípio do Juiz Natural, quando abre vistas para a Itália se pronunciar sobre pedido de relaxamento de prisão, violentando um ato soberano do Brasil.A propósito, foi o próprio Peluso quem abriu vista pra a Itália se pronunciar sobre o pedido de liberdade feito pelo refugiado Cesare Battisti.

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