Por Conceição Lemes
A jornalista Heloisa Villela, correspondente em Washington da TV Record e enviada especial a Honduras, ficou no país de 24 de setembro a 2 de outubro. Ela foi até Manágua, na Nicarágua, onde pegou um carro para Tegucigalpa.
“Para mim, foi fácil entrar em Honduras, porque tenho passaporte americano. Mas o fotógrafo da AFP [Agência France-Presse], que estava conosco, foi barrado”, afirma. “Por conta das relações rompidas com o Brasil, a embaixada de Honduras em Manágua, não está dando vistos. Ele acabou voando para El Salvador onde, por algum motivo, é fácil tirar o visto. Reencontrou conosco dois dias mais tarde, em Tegucigalpa.”
Durante nove dias , Heloisa esteve presente nos acontecimentos mais marcantes de Honduras: decretação do estado de sítio, enterro da universitária Wendy Elizabeth, volta ao ar da rádio Globo na internet, prisão dos 56 camponeses no Instituto Nacional Agrário e o encontro de parlamentares brasileiros com presidente do governo golpista, Roberto Micheletti, na última quinta-feira, 1º de outubro.
Nesta entrevista ao Viomundo, faz um balanço dos fatos da sua chegada à sua partida. Até agora Heloisa está chocada com a postura dos parlamentares brasileiros.
Viomundo – Você foi preparada para encontrar o quê?
Heloisa Villela -- Fui esperando barreiras do exército no caminho e um clima mais tenso na cidade. Não foi bem isso que eu vi. O clima na cidade não era tão assustador como pensei que seria. A mudança veio na segunda-feira passada [28 de setembro], quando saiu o decreto que instituiu o estado de sítio, proibiu reuniões, suprimiu as liberdades democráticas. O AI-5 deles. Aí sim, as manifestações foram proibidas e reprimidas. Mas o próprio decreto parece ter sido uma bênção porque rachou os golpistas.
Viomundo – Você presenciou a prisão na quarta-feira, 30 de setembro, dos 56 camponeses que estavam no Instituto Nacional Agrário. O que aconteceu com eles?
Heloisa Villela – Na quinta-feira, às 8 da noite, um líder camponês me avisou que eles iriam começar uma greve de fome na sexta ou no sábado. E começou mesmo no sábado. Depois, me avisou também que alguns estavam sendo transferidos para uma prisão de segurança máxima, onde ficam vários narcotraficantes.Como fiquei atrás dos deputados brasileiros até 11 da noite, quando terminou o encontro com o golpista Roberto Micheletti, e na sexta voltei para os Estados Unidos, infelizmente não pude averiguar o que aconteceu. Mas estou tentando contato com o advogado do grupo de direitos humanos encarregado de defendê-los.
Viomundo – Qual o temor dos camponeses em relação à transferência de presídio?
Heloisa Villela – O medo é que alguns "desapareçam" lá dentro, como de vez em quando acontece. E as autoridades culpam os narcos.
Viomundo – Em reportagem do G1 no sábado, os camponeses são chamados de fazendeiros. Por favor, explique aos leitores do Viomundo quem são os "fazendeiros" apoiadores do presidente deposto, Miguel Zelaya?
Heloisa Villela – Puxa vida, isso me chamou muito a atenção. A palavra fazendeiro dá a entender que são ricos, donos de muita terra ou algo assim. Se você visse como é essa gente... Como estavam vivendo dentro daquele Instituto... É gente muito simples, que tem um pequeno lote de terra para plantar feijão e milho, que se organiza em cooperativas, etc. Um deles acabou ficando meu amigo, Don Lourenzo, um senhor que vive em Bonito Oriental, tem 11 filhos e uma área de 113 manzanas (196 acres). Ele me contou que trabalha com o movimento social desde 84. Foi vigilante da fronteira – o exército esperava que ele barrasse as trocas comerciais com salvadorenhos. Mas ele fazia de conta que estava do lado das autoridades e deixava passar tudo pela fronteira. Um tio dele fugiu da área quando foi considerado traidor, pelo governo, porque dava água e comida aos refugiados salvadorenhos que conseguiam cruzar a fronteira. Pois bem, volta e meia ele aparecia no hotel, de manhã, acho que para poder fazer uma boa refeição. Ele disse que se o Zelaya não voltar, ele provavelmente vai boicotar as eleições. Muito gente fina o Don Lourenzo. Tenho certeza que ele ainda tinha muita história boa para contar.
Viomundo – Pelo que você nos contou na outra entrevista, os camponeses presos no Instituto Nacional estavam lá para defender os títulos de terra. Qual o medo deles?
Heloisa Villela – Eles me disseram que o medo era de que o governo golpista tomasse posse das terras do estado e repartisse entre os amigos. Além do que, muitos que estão trabalhando e cultivando os mesmos lotes há tempos, não têm o título de propriedade. Ou têm, mas temiam perdê-lo. Como em qualquer lugar do mundo, é fundamental a relação do homem com a posse da terra.
Viomundo – Fala-se em centros de tortura lá. Existem mesmo?
Heloisa Villela – Depois de três dias procurando, com a ajuda de Don Lorenzo, encontrei Ramon Navarro, líder da liga campesina, que aparentemente fez a denúncia. Ele me disse que ouve algum ruído na comunicação. Ele não falou em centros de tortura mas em alguns casos. E me explicou que, no momento, está muito difícil fazer com que os torturados conversem com a imprensa porque as famílias estão sob ameaça de morte. Ramon Navarro prometeu voltar a falar comigo e me apresentar alguns homens que foram torturados, assim que as famílias deles forem para lugares mais seguros.
Viomundo – Já se tem ideia do número de pessoas mortas pelo governo Micheletti?
Heloisa Villela -- Após a volta de Zelaya ao país, são três. Mas desde o começo do golpe, há 100 dias, fala-se em mais de 100. Não tenho provas disso. Fui ao enterro da universitária de 24 anos, Wendy Elizabeth, a última vítima do movimento golpista. Aparentemente, a exposição às bombas de gás detonou uma bronquite da qual ela não conseguiu se recuperar. Vi também os túmulos dos outros dois mortos nos últimos 15 dias.
Viomundo – O povo tem medo dos gorilettis?
Heloisa Villela – Os que estão na linha de frente das manifestações e os que estavam acampados no Instituto Agrário, sim. O povo em geral, não. Eles reclamavam muito do estado de sítio, da situação em que o país se encontra, da falta de respeito à democracia.
Viomundo – O fechamento da rádio Globo e canal 36 foi um golpe às liberdades democráticas. O povo estava mesmo ligado nelas?
Heloisa Villela – Muito. Imagine um país sob golpe de estado, toda a imprensa comprometida com os golpistas – afinal, os empresários fizeram parte do golpe – e uma rádio e uma tevê contando tudo o que está acontecendo, denunciando os abusos, avisando onde vai ser a próxima manifestação, dando os informes a respeito do que está se passando nos demais distritos do país... O povo não gostou nem um pouquinho...
Viomundo – Na manifestação de quarta-feira passada que pedia a reabertura da rádio Globo, a polícia lançou bombas de gás lacrimogênio e andou distribuindo cacetadas. Eles tinham noção da presença da imprensa estrangeira?
Heloisa Villela – Totalmente. Não houve truculência, pancadaria, pelo menos nesta manifestação. Houve um exagero, uma necessidade, de demonstrar força, para ver se no dia seguinte a manifestação seria menor. Os policiais lançaram umas 7 ou 8 bombas de gás. O porta-voz da polícia estava do meu lado, junto com o batalhão; ele me deu conselhos de como fazer para não ficar com o olho ardendo demais. Não existe um ódio dos policiais em relação aos manifestantes. É quase um teatro, um jogo. Cada um fazendo o seu papel. Não chega a ser, na minha opinião, nada parecido com as pancadarias que vimos durante os golpes militares na América Latina, entende?
Viomundo – E a igreja católica não tem feito nada para evitar as arbitrariedades, torturas?
Heloisa Villela – Existem sempre aqueles padres mais dedicados aos pobres, pastoral da terra, etc. Mas, pelo que eu soube, a igreja católica de Honduras, ao menos a cúpula, estava empenhadíssima em garantir o direito dos ricos ao visto americano. Essa é a grande preocupação dos empresários: poder passar o fim de semana em Miami...
Viomundo – Que impressão você levou do povo hondurenho?
Heloisa Villela – Achei o povo muito simpático, simples e com um quê de ingenuidade. Não sei explicar direito, mas eles me pareceram um pouco despreparados ou sem malícia suficiente para lidar com a situação política que estão enfrentando. Por outro lado, eles são tinhosos, tenazes e dizem que o povo do interior é ainda mais aguerrido. Gostaria muito de ter tido tempo para viajar e conhecer o resto do país.
Viomundo – Na quinta-feira, os deputados federais Roberto Jungman (PPS-PE), Claudio Cajado (DEM-BA), Bruno Araújo (PSDB-PE), Maurício Rands (PT-PE), Ivan Valente (PSOL-SP)e Janete Pietá (PT-SP)estiveram em Tegucigalpa. Conversaram com parlamentares locais, com o presidente deposto e Manuel Zelaya. No final, os quatro primeiros se reuniram durante quase duas horas com Roberto Micheletti. Esse encontro fazia parte da agenda?
Heloisa Villela – Não. Por isso mesmo os deputados Ivan Valente e Janete Pietá se recusaram a participar. Os dois ficaram irritadíssimos, pois o encontro não estava previsto e que não era o combinado. Testemunhei os seis parlamentares no elevador discutindo, mas o Ivan e a Janete não conseguiram convencer os outros. E acabou acontecendo aquele encontro.
Viomundo – Eles viram que você estava no elevador?
Heloisa Villela – O Raul Jungman, do PPS, percebeu que o cinegrafista da Record, Joaquim Leite Neto, estava gravando, e só dizia assim: "Ivanzinho, por favor". E o Ivan balançava a cabeça.
Viomundo – Na matéria que foi ao ar no JR, a imagem que me marcou foi a do Micheletti e dos parlamentares rindo. Foi esse mesmo o clima do encontro? Os quatro apertaram a mão manchada de sangue do Micheletti?
Heloisa Villela – O tom amistoso e a troca de gracinhas foram irritantes. Não houve cobrança e sim bate-papo. Perguntei ao Micheletti se a presença deputados brasileiros significava um reconhecimento do governo. Ele disse que os parlamentares não tem esse papel, mas completou: "Espero que eles me ajudem". Eles não só apertaram a mão do Micheletti como pousaram para foto, todos juntos.
Viomundo – Como eles defenderam a visita ao Micheletti?
Heloisa Villela – Que graças à visita ao Micheletti, eles conseguiram a garantia de que a integridade da embaixada brasileira jamais será violada. Isso não é correto. Essa garantia já havia sido dada, por Micheletti, há dias. Eles também disseram que, na conversa, pediram que as linhas de telefone da embaixada fossem restabelecidas e que o golpista prometeu fazer o favor. Nossa... que favor!
Viomundo – É verdade que o encontro foi regado a vinho e comidinhas?
Heloisa Villela – Infelizmente, é. Na hora acabou o encontro, eu disse ao Mauricio Rands, que tinha sido informada há poucos minutos da provável transferência dos camponeses para um presídio de segurança máxima, onde some muita gente. E perguntei como ele se sentia ao apertar a mão do representante do governo que estava fazendo isso. Ele não respondeu. Não se referiu a direitos humanos, direitos civis, nada. Ficou apenas repetindo o discurso ensaiado de véspera. E pior. Disse que a OEA vai negociar também com os golpistas. Quando comentei que a OEA tem mandato para isso, ele saiu sem dizer mais nada. Uma decepção...
Viomundo – Na sua permanência em Honduras, qual o acontecimento que mais te chocou?
Heloisa Villela – Nada me chocou mais do que esse encontro dos deputados brasileiros com o Micheletti. Nem o cerco policial e militar à embaixada brasileira. Na verdade, uma barricada humana, que fica ali dia e noite. A grande maioria deles, meninos de 18 a 20 anos que vem do interior para garantir um sustento trabalhando na polícia e nas forças armadas. Aposto que muitos estão com o Zelaya. O Tenente Molina, porta-voz da polícia, disse abertamente que está com o presidente Zelaya. Mas ver nossos representantes fazendo aquele papelão, para jogar para a platéia no Brasil ou tentar com isso criticar o governo brasileiro, que não negocia com golpistas, realmente me deixou superchocada. Confesso, tremia de raiva na hora que fiz a primeira pergunta ao Rands.
Viomundo – Você esteve frente a frente com o Micheletti. Que impressão ficou?
Heloisa Villela – A impressão que tive foi a que já tinha antes de ir para Honduras. Ele pode ser alto, baixo, gordo, magro, jovem, idoso. Não importa. É um político que sempre desejou a presidência e nunca chegou lá pelo voto. Agora que usurpou o poder, não quer largar o osso. Se conta piada ou é carrancudo, não faz a menor diferença. Ele, agora, é apenas isso: o chefe da gangue que deu o golpe de estado em Honduras.
Fonte:Luiz Carlos Azenha, Vi o Mundo
Pois é, o amigo Maurício Rands pisou na bola. Mais uma vez.
Nenhum comentário:
Postar um comentário