terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Mantega:Agora estamos em outro patamar


Perguntado sobre a política fiscal, considerada por muitos economistas como um dos aspectos vulneráveis da política econômica do governo Lula, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, traz pronta a resposta: “É um atentado à racionalidade dizer que as nossas contas não são sólidas”.

Por Claudia Safatle e Arnaldo Galvão, do jornal Valor Econômico


Munido de tabelas, gráficos e autoconfiança, o ministro mostrou o que considera seu maior trunfo: em um ano atípico como 2009, de forte crise, o Brasil terá as melhores contas públicas entre os países do G-20 (China, Índia, Rússia, EUA e União Europeia, entre outros). “Foi uma proeza”, disse. A rigor, os dados que a assessoria do ministro preparou indicam que o melhor resultado é o da Arábia Saudita, que terá superávit nominal de 4,2% do PIB. Mas, por razões óbvias, a Arábia Saudita é um ponto fora da curva e, portanto, não conta.

O déficit nominal consolidado do setor público brasileiro, segundo projeções do Fundo Monetário Internacional (FMI), encerrará o exercício em 3,2% do Produto Interno Bruto (PIB). Para 2010, o fundo projeta que ele cairá 1,3% do PIB, mostrou o ministro. O governo cumprirá superávit primário, este ano, de 2,5% do PIB e, para o ano que vem, a meta voltará a ser de 3,3% do PIB, garantiu.

“E só teremos este déficit nominal porque nossa taxa de juros é muito maior que a dos outros países. O custo dos juros no México, por exemplo, é de 2% do PIB. Nós gastamos 5% do PIB. Se gastássemos o que o México gasta com o pagamento de juros, estaríamos com superávit nominal em pleno ano de crise!”, lamentou.

Mantega disse que as despesas com salários do funcionalismo público tiveram aumento substancial. “De fato, o gasto com pessoal subiu, mas ele tem um ciclo político como em qualquer outro governo. Se o próximo governo quiser dar uma segurada no início, faz o ciclo normal, porque os salários estão muito bons”, sugeriu.

A seguir, a íntegra da entrevista:

Valor: O que sustenta a retomada do crescimento?

Guido Mantega: Tivemos um ciclo econômico de 2003 a 2008, cuja média de crescimento do PIB foi de 4,2%. Isso é bem superior à média anterior, de 1,7%, de 1998 a 2002. Agora estamos em outro patamar. Nós vamos começar um novo ciclo consolidando um avanço. Há uma mudança qualitativa.

Valor: Mas, é um crescimento sustentado principalmente pelo consumo?

Mantega: Em primeiro lugar, sim, vem o consumo. Neste momento, ele é fundamental, porque não temos mercado no mundo. Só podemos iniciar um novo ciclo de crescimento, porque temos um mercado interno forte, que se deve ao crescimento da massa salarial que, neste ano, cresceu bastante. A previsão é de um aumento de 4% em 2009 e de 6% em 2010.

Isso engrossa o consumo, além da classe média que está se expandindo. Também temos mais crédito, transferências de renda e o aumento do salário mínimo. O mercado consumidor no país está crescendo a 5% ou 5,5%, o que é muito forte. Portanto, o primeiro vetor desse ciclo é o mercado interno em expansão, com um crescimento que gera emprego.

Valor: E os investimentos?

Mantega: O aumento do investimento é o segundo vetor. A formação bruta de capital fixo vai subir muito. Antes da crise de 2008, o investimento estava crescendo mais que o consumo das famílias, o que é muito bom. Depois, ele se retraiu por causa da crise, o que é normal. Agora, já se recuperou. No terceiro trimestre, o crescimento foi de 6,5% sobre o período anterior. No meu cálculo, o investimento vai crescer 15% em 2010, chegando a 18% do PIB. Até 2014, deve chegar a 23% do PIB. Há uma mudança na composição da poupança.

Valor: Como?

Mantega: Vamos ter esse período de vacas magras no mercado internacional. Vamos aumentar as importações e usar poupança externa. Teremos um déficit em transações correntes, que será coberto por poupança externa. Quando o mercado internacional voltar a crescer, voltaremos a produzir um superávit comercial maior.

Valor: A balança comercial em 2010 já será deficitária?

Mantega: Devemos ter saldo positivo no ano que vem, mas menor que o de 2009.

Valor: Fala-se em 3% do PIB de déficit em conta corrente em 2010. Há risco de a trajetória do déficit ser explosiva?

Mantega: Não, 3% é muito. E não há risco, porque vai haver uma retomada do comércio internacional lá para 2012, com a recuperação da economia mundial. Aí, teremos condições de fazer um saldo comercial melhor.

Valor: Além do consumo e dos investimentos, o sr. citaria outros fatores?

Mantega: Temos um grande programa de investimentos, expansão do mercado de capitais e oferta crescente de crédito. Quando digo que estamos em outro patamar, é porque o volume de negócios é muito maior e há grandes projetos de investimento. Há quantos anos não temos algo como o projeto do trem de alta velocidade? Hoje são vários projetos dessa magnitude em curso.

Valor: Somando os investimentos para o pré-sal, Copa do Mundo, Jogos Olímpicos, quanto o sr. imagina?

Mantega: A Copa do Mundo de 2014 pode demandar uns R$ 20 bilhões de investimentos. O trem de alta velocidade, ligando Rio e São Paulo, terá R$ 40 bilhões. Nos Jogos Olímpicos, o governo vai gastar R$ 16 bilhões, mas o total, contando o setor privado, pode chegar a R$ 30 bilhões.

O Minha Casa, Minha Vida terá R$ 60 bilhões no total. No pré-sal, somente a Petrobras tem investimentos de US$ 200 bilhões (cerca de R$ 350 bilhões) entre 2009 e 2013. É um grande programa de investimentos. Tirando a China, temos o maior programa de investimentos do mundo. Ele está puxando a economia, e o PIB do terceiro trimestre teve aumento de 6,5% na formação bruta de capital fixo.

Valor: A expansão do crédito ainda será sustentada por bancos públicos?

Mantega: Não. Agora será também pelo setor privado, que vai entrar com tudo. Está sobrando caixa nos grandes bancos privados. A competição é uma realidade, e ocorreu pela pressão dos bancos públicos. Acabamos de criar uma espécie de debêntures para os bancos privados captarem e emprestarem no longo prazo. No próximo ano, a expansão do crédito será de uns 25%.

Valor: E o mercado de capitais?

Mantega: Nosso mercado de capitais é um dos mais exuberantes do mundo, mas com racionalidade. É exuberância racional. Temos empresas sólidas, porque elas têm mercado, rentabilidade e vêm investindo. A nossa bolsa tem se valorizado, mas as nossas “blue chips” são invejáveis. A Petrobras é a petrolífera com maior rentabilidade sobre o patrimônio do mundo. A Vale tem uma das maiores rentabilidades entre as mineradoras. E temos grandes e sólidos bancos. Temos consistência. Essa é a diferença.

Valor: Este mercado não ainda é muito pequeno para o tamanho do financiamento que o setor privado precisa? E o IOF não prejudica seu desenvolvimento?

Mantega: É pequeno, mas cresce de forma assustadora. Nossa regulação é uma das melhores do mundo. Quase não temos operação de balcão. Aqui, o Banco Central mandou que as operações de derivativos sejam registradas. Vamos retomar os IPOs (emissões primárias de ações). O mercado de capitais é um dos pilares do desenvolvimento. Se não tivéssemos criado o IOF sobre a entrada de capital especulativo, a bolsa poderia ter sofrido uma bolha. O fluxo de capital estava muito forte e não era só investimento direto. Queremos que continue entrando dinheiro, mas sem exageros e bolhas.

Valor: O sr. avalia que o IOF foi bem-sucedido nos seus objetivos ou o governo está olhando para outras medidas?

Mantega: O IOF combinado com a tendência de valorização do dólar no mercado internacional, e com o déficit em conta corrente que vamos ter, vai levar a taxa de câmbio para um patamar satisfatório. Outras medidas serão tomadas. Não tenho patamar de câmbio ideal. Quando citei a cotação de R$ 2,60 para o dólar, comentava que, se isso fosse assim, seríamos imbatíveis. Não acho que vá a R$ 2,60, nem precisamos disso. Estancamos a sobrevalorização do real e a tendência é o câmbio melhorar.

Valor: Então a preocupação com valorização do real está resolvida?

Mantega: Estou relativamente tranquilo com a questão cambial, porque estancamos a sobrevalorização. Estabilizamos o câmbio há 50 dias, quando a cotação do dólar estava a R$ 1,70. Hoje, está em R$ 1,77. Com o IOF evitamos uma bolha no mercado de ações e no câmbio. Sem ele, o dólar fatalmente chegaria a R$ 1,50. Temos alguma volatilidade recente, por causa de problemas em Dubai e na Grécia, mas é algo que pode acontecer. O mundo ainda não sarou. Além disso, os Estados Unidos farão, inevitavelmente, alguma valorização da moeda, subindo aquela taxa de juros de 0,25% ao ano.

Valor: Há quem diga que o aumento dos juros nos EUA só deverá ocorrer no fim de 2010…

Mantega: Não acredito. O governo americano deu excesso de liquidez ao mercado, mas ela não foi para a produção. Está empoçada. Talvez eles possam operar com uma taxa de juros de 1%. Trabalhar com 0,25% desmoraliza o mercado. Essa taxa supernegativa é ruim. Com 1% eles darão estímulo monetário à economia, e isso valoriza o dólar, ajudando todo o mundo a se equilibrar.

Um terceiro fator é que temos um aumento no déficit em transações correntes. A economia mundial não se recuperou e nós estamos crescendo mais rapidamente que o resto do mundo. Nesse quadro, as importações crescerão mais que as exportações, o que levará a esse aumento do déficit em transações correntes. Teremos um movimento de desvalorização do real, o que vai ajudar a melhorar a situação dos exportadores.

Valor: Fala-se que o Brasil está na moda. Moda é algo passageiro, que muda conforme a estação. O Brasil é apenas moda?

Mantega: Não. Somos um modelo clássico de grande atratividade. O Brasil é uma das poucas economias que terá crescimento acelerado, com as contas fiscais mais equilibradas que as dos outros países. Temos o governo estimulando os investimentos. O BNDES terá mais R$ 80 bilhões para 2010. Quero ver a estátua que vão fazer lá. O Brasil não é moda passageira, porque tem economia sólida, tem mercado interno em expansão, tem grande programa de investimentos, tem legislação transparente, estabilidade jurídica muito maior que China e Índia e não temos grandes barreiras ao capital.

Valor: Há economistas preocupados com a situação fiscal, com o forte aumento do gasto permanente e com o déficit em conta corrente do balanço de pagamentos. O sr. vê motivos para preocupação?

Mantega: Até os mais empedernidos ortodoxos dizem que não há problema em ter déficit em conta corrente. Ele é bom se for canalizado para o investimento.

Valor: E o grande o temor com a questão fiscal?

Mantega: É muito estranho as pessoas pegarem um ano atípico, de crise, e projetarem este ano como se fosse para sempre. É claro que algumas despesas subiram. Como estamos num ciclo virtuoso, a arrecadação também será sempre maior. Há algum país fazendo 2,5% do PIB de superávit primário em 2009? Nós vamos realizar isso. Se não fizermos, o presidente sofre processos. Somos obrigados a cumprir essa meta. A arrecadação já voltou ao padrão normal que tinha sido projetado. Em novembro, tirando todos os extras, a arrecadação será bem maior que a de novembro de 2008.

Valor: Em 2010 volta a meta de superávit primário de 3,3% do PIB?

Mantega: Volta. O FMI prevê que o Brasil terá déficit nominal de 3,2% do PIB em 2009. Em 2010, ele vai cair para 1,3% do PIB. É, portanto, o menor déficit primário entre os países do G-20, excluindo a Arábia Saudita (cujo superávit corresponde a 4,2% do PIB).

Valor: Superávit de 4% do PIB é coisa do passado?

Mantega: Não é coisa do passado, porque os 3,3% de superávit para 2010 significam quase a mesma coisa que os 4% do PIB do passado. Quando começamos com a meta de 4,25%, o IBGE introduziu um novo método de cálculo do PIB e fez com que aquele superávit virasse 3,8%. Além disso, temos o fundo soberano, que não gastamos e que deve corresponder a 0,7% do PIB.

Valor: O sr., então, não vê fundamento nas críticas à política fiscal, à maneira como o governo Lula aumentou o gasto corrente?

Mantega: As despesas da administração pública subiram 0,5% no terceiro trimestre, enquanto o PIB aumentou 1,3%. Os gastos, portanto, cresceram muito menos que o produto. No segundo trimestre, os gastos caíram em relação ao primeiro trimestre. Nossa arrecadação caiu, porque fizemos várias desonerações e todos os liberais são favoráveis a isso.

Valor: Reduzir os tributos sobre a folha de pagamento não teria sido mais benéfico para todos?

Mantega: Não seria uma boa política. Concordo que precisamos desonerar a folha de pagamento das empresas e já falei isso. O problema é que custa caro. Num ano de crise como este, a desoneração precisa ter foco. A redução dos tributos sobre a folha teria de ser gradual. Baixar três ou quatro pontos percentuais, em 2009, não faria diferença para muitos setores e não elevaria o consumo, que era a prioridade. Esse foi o erro que o governo americano cometeu.

Valor: Por que?

Mantega: Eles deram dinheiro para o setor financeiro e não estimularam o consumo. Nos EUA, os incentivos à compra de carros só duraram dois meses e foram de apenas US$ 2 bilhões. Eles erraram.

Valor: O projeto de desoneração da folha, portanto, está engavetado?

Mantega: Eu diria que temos de desonerar a folha e teria feito isso se não tivesse perdido a CPMF. No fim de 2008, estava me preparando para desonerar a folha no âmbito da reforma tributária, mas veio a crise e tivemos de mudar a estratégia. Tivemos de olhar mais para os setores que dão mais estímulos ao mercado e ao consumo.

Valor: Como o sr. vai entregar a economia para o próximo governo?

Mantega: Entrego com os melhores fundamentos macroeconômicos do G-20. É pouca coisa? Teremos o menor déficit nominal. E so temos ele, porque nossa taxa de juros é muito maior que a dos outros países. O custo financeiro do México nem se compara. Eles gastam 2% do PIB com juros. Nós gastamos 5%. Se gastássemos o que o México gasta, estaríamos com superávit nominal em pleno ano de crise. No ano que vem, a economia cresce 5% e a arrecadação volta ao normal. O Brasil é um dos países que menos perdeu arrecadação.

Valor: E o desafio de aumentar a proporção dos investimentos em relação ao PIB?

Mantega: Isso ocorreu nos três anos antes da crise. De janeiro a setembro, o investimento total está em 16,6% do PIB. O investimento público não vai crescer muito. O do governo federal vai chegar a 1,2% do PIB. Com a Petrobras, isso fica perto dos 3%. Não vai aumentar muito e não precisa. Temos o mercado de capitais que, no passado, era medíocre. O setor privado está mais robusto e as empresas chegaram à maioridade.

Algumas são multinacionais. Nossos bancos são fortes. Há liquidez dos ativos brasileiros. Por isso estamos em outro patamar. A população está cada vez mais incluída no mercado. Com tudo isso, ainda temos contas públicas sólidas. Os dois maiores gastos são os da Previdência e os de pessoal. Na Previdência, a despesa baixou de 1,8% do PIB para 1,3%. O emprego formal está crescendo.

Valor: O sr. avalia que no futuro terá que haver mudança na Previdência, como a elevação da idade mínima para requerer aposentadoria?

Mantega: Vai ter de fazer, mas não teremos problemas nos próximos dez anos. O déficit da Previdência diminuiu.

Valor: O sr. não acha que os aumentos salariais no setor público foram muito grandes?

Mantega: De fato, o gasto com pessoal subiu, mas ele tem um ciclo político como em qualquer outro governo. Em 2002, a folha de pessoal representava 5% do PIB. Agora, com todos os aumentos que foram dados, está em 5% do PIB. Se o próximo governo quiser dar uma segurada no início, faz o ciclo normal, porque os salários estão muito bons.

Não houve descontrole no gasto e passamos por um ano de crise fazendo superávit primário. É uma proeza. Já imaginou, em plena crise, o Brasil ter contas em estado melhor que a de todos os países do G-20, como China, Índia, Rússia, Estados Unidos e União Europeia? Ainda tem gente que fala que o desempenho fiscal não está bom. É um atentado à racionalidade dizer que as nossas contas não são sólidas.

Valor: O sr. considera a política fiscal bem-sucedida?

Mantega: Quando cheguei ao Ministério da Fazenda, em 2006, diziam que seria gastador. Fiz a melhor série de superávits primários. Em 2008, fizemos o melhor resultado fiscal da história e não gastamos o fundo soberano na crise. Temos todas as credenciais. É uma boa política fiscal, porque conseguimos combinar as coisas. Fazemos o que temos de fazer e diminuímos a dívida pública. E tudo isso com juros desfavoráveis.

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