terça-feira, 1 de junho de 2010

Herança maldita 6


31/05/2010

Leandro Fortes

Foi monumental a “herança maldita” deixada pelo governo Fernando Henrique Cardoso. A mais expressiva, o racionamento de energia de 2001 e seus efeitos perniciosos sobre o setor produtivo brasileiro. Mas tudo parecia parte de um passado distante. Parecia. Como um imenso e amorfo fantasma, um contingente estimado em 45 mil cidadãos assombra o Ministério do Planejamento. São ex-funcionários públicos federais que aderiram a programas de demissão voluntária entre 1996 e 2000. E que agora se dizem vítimas de um “estelionato” trabalhista. A principal reivindicação do grupo? Ser readmitido nos antigos postos.

Desde 2008, representantes dos 45 mil tentam fazer aprovar um projeto de lei que garanta a reintegração ao serviço público. Os desligados comprometem-se, inclusive, a devolver aos cofres públicos os valores pagos como indenização. Ninguém sabe ao certo quanto custaria a operação, mas o movimento se vale da Justiça e da política para ganhar a parada.

Na manhã da quarta-feira 19, cerca de 50 representantes dos quatro movimentos de pedevistas (que aderiram aos PDVs) formaram em Brasília uma plateia barulhenta na Comissão de Trabalho da Câmara dos Deputados. Após iniciada a sessão, tiveram poucos minutos de esperança antes de o deputado Luiz Carlos Busato (PTB-RS), vice-líder do governo na Câmara, pedir vistas e o adiamento da votação do projeto de Lei nº 4.293, que prevê a readmissão dos arrependidos, principalmente os desempregados ou que tenham alguma ocupação com ordenados de até, no máximo, cinco salários mínimos.


O argumento básico dos pedevistas é o de que o governo FHC criou um clima de terror com a proposta de reforma do Estado, implementada a partir de 1996, sob o comando do extinto Ministério da Administração e da Reforma do Estado (Mare), então ocupado pelo economista Luiz Carlos Bresser-Pereira. Foram três PDVs, em 1996, 1999 e 2000, dirigidos aos servidores estatutários (da administração direta) e ao menos uma dezena de outros para os chamados celetistas, ligados a empresas estatais e autarquias, como a Petrobras e o Banco do Brasil.

Listados em cartilhas e, em seguida, publicados no Diário Oficial da União, os incentivos oferecidos iam além do pagamento de indenizações acrescidas de valores extras, a depender da data de adesão ao PDV. Entre eles, a promessa de um programa de treinamento para reinserção no mercado de trabalho, sob coordenação do Ministério do Planejamento e da Escola Nacional de Administração Pública (Enap), em Brasília. Expediente semelhante seria oferecido em convênio com o Serviço Brasileiro de Apoio a Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). As iniciativas jamais saíram do papel.

O fator mais relevante dessa discussão, fincada na raiz das reivindicações dos pedevistas, é a questão das linhas de financiamento de até 30 mil reais, no Banco do Brasil, oferecidas como principal incentivo a quem se dispusesse a deixar o emprego. A promessa, nunca cumprida, teria, segundo os ex-funcionários, provocado uma série de problemas, financeiros e sociais, a quem aderiu aos programas. “A maioria desses trabalhadores confiou nessa promessa e abriu negócios próprios, que sucumbiram em virtude do descumprimento das promessas de qualificação e concessão de empréstimos”, afirma o deputado Leonardo Picciani (PMDB-RJ), autor do projeto de lei de readmissão dos pedevistas.

Além da questão técnica, as consequências sociais subsequentes geraram um sem-número de dramas humanos País afora, dizem os ex-funcionários. Ao afetar 45 mil servidores, o programa do governo tucano atingiu, a contar os familiares, ao menos 180 mil pessoas. “Fomos enganados, o PDV fazia parte do projeto neoliberal de FHC e para cumpri-lo nos ofereceram um monte de promessas que nunca se concretizaram”, reclama Álvaro Cândido Cunha Filho, 52 anos, ligado ao movimento PDV Brasil, de Brasília, ele mesmo um exemplo da má-sorte.


Ex-funcionário do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Cunha Filho aderiu ao programa em 1996. Afirma ter recebido, por 20 anos de serviço, 23,4 mil reais e a promessa de linha de crédito garantida para enveredar na iniciativa privada. Dois anos depois, sem crédito e sem emprego, gastou a indenização e, como muitos outros pedevistas sufocado em dívidas e com problemas familiares, mergulhou no alcoolismo. “Como eu, muitos passaram a ter problemas de saúde, perderam o juízo ou caíram na mendicância.”

À frente de um grupo de pedevistas de plantão permanente no Congresso, Cunha Filho lembra que, embora tenha sido vendida a imagem de um plano de adesão voluntária, os PDVs durante os governos de Fernando Henrique Cardoso eram, muitas vezes, impostos aos servidores sob forma de ameaça de demissão ou transferências arbitrárias para localidades distantes. “Hoje seria um caso clássico de assédio moral, porque havia uma pressão enorme. Foi sem dúvida o maior estelionato trabalhista da história do Brasil.”

Um dos que dizem ter sido coagido a assinar o PDV é José Marcelo Lopes, ex-funcionário da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), onde ficou por 15 anos. Entre 1993 e 1997, Lopes foi cedido para trabalhar no comitê de imprensa do Palácio do Planalto, e ali se tornou figura folclórica. Cantor nas horas vagas, chegou a se apresentar em programas de tevê de auditório e de entrevista graças à ajuda do ex-presidente Itamar Franco, que gostava de ouvi-lo. Mas nos primeiros anos de FHC, a vida de Lopes desafinou e ele foi mandado de volta para a Conab.

“No dia que cheguei lá, um diretor mandou me avisar que não tinha nada para eu fazer. Então, ele disse mais ou menos o seguinte: ou você entra no PDV, ou a gente vai entrar com um processo de demissão”. O servidor-cantor optou por virar pedevista, botou a mão em 30 mil reais e embarcou, em 1998, para Lisboa, com o propósito de virar artista em Portugal, onde foi tentar a vida como artista. De volta ao Brasil, três anos depois, sem um tostão no bolso, passou a viver de shows e apresentações esporádicas que usa para bancar a gravação de CDs – oito, até agora. “Tudo que quero é voltar para o meu posto de origem, de onde nunca deveria ter saído.”

O projeto de lei do deputado Picciani não conta com nenhuma simpatia do Ministério do Planejamento. Na quarta 19, foi a quarta tentativa frustrada de votação do texto na Comissão de Trabalho, apesar do parecer favorável do deputado Sebastião Bala Rocha (PDT-AP), relator da proposta. Nas vezes anteriores, o governo retirou o projeto de pauta, para ganhar tempo. Agora, como não pôde, por razões regimentais, insistir no expediente, usou um parlamentar da base governista, o deputado Busato, para pedir vistas e adiamento da votação, marcada novamente para 13 de junho, em plena Copa do Mundo.


Jorge Godoy, presidente do Movimento Nacional Unificado (que de unificado não tem nada) pela Readmissão dos Pedevistas (Murp), tem como trunfo o reconhecimento oficial de que, de fato, o governo descumpriu o acordo dos PDVs. Trata-se de um documento de outubro de 2006 assinado por Vânia Prisca Cleto, coordenadora-geral de Elaboração, Sistematização e Aplicação de Normas do Ministério do Planejamento. No texto, a coordenadora reconhece os furos do programa, mas alega não haver legislação que autorize o retorno dos pedevistas.

O secretário-executivo do Ministério do Planejamento, João Bernardo Bringel, apontado como interlocutor do Executivo no tema, não atendeu aos pedidos de entrevista, assim como o ex-ministro Bresser-Pereira.


Em março deste ano, o Tribunal Regional Federal de Santa Catarina concedeu uma liminar que ordenava o retorno ao serviço público dos ex-funcionários não contemplados com os benefícios oferecidos nos PDVs. Mas em 15 de maio, a União conseguiu derrubar a decisão. O despacho revela, porém, o risco jurídico criado pelo descumprimento dos termos dos acordos oferecidos aos servidores.


No Congresso, parlamentares do PT parecem pouco dispostos a, em ano eleitoral, apoiar um projeto que represente a incorporação de pessoal sem novo concurso público. “Eles foram voluntários, apesar de, à época, terem sido desaconselhados pelos sindicatos”, afirma o deputado paraense Paulo Rocha, integrante da Comissão de Trabalho da Câmara.

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