segunda-feira, 8 de novembro de 2010

A primeira presidente



Por Cynara Menezes.


Esta matéria foi publicada na Edição 620 de CartaCapital, na semana do dia 3 de novembro, logo após o resultado das eleições.

A primeira mulher a se eleger prefeita no Brasil, a viúva Alzira Soriano, enfrentou todo tipo de maledicências na campanha: desde ser amante do governador até prostituta. Moça de família, dizia-se naqueles tempos, não se metia em política. Isso aconteceu em Lajes, no Rio Grande do Norte, em 1928. Mais de 80 anos depois, o País­ elegeu, no domingo 31, a divorciada Dilma Rousseff sua primeira mulher presidente com alegria, mas também com o espanto de constatar como pouca coisa mudou, daqueles tempos para cá, para uma parcela da sociedade. A mídia inclusive.

Uma parcela, felizmente, nem tão grande nem tão forte a ponto de influenciar o resultado de uma eleição. Na apuração final, Dilma alcançou cerca de 56% dos votos válidos. Teve menos votos do que seu “descobridor”, Lula, em 2002 e em 2006, que ganhou com 60,8% e 61,3%, mas a transferência de votos do presidente para sua escolhida superou todas as expectativas. No Sudeste, apesar da derrota em São Paulo, conseguiu ampla vantagem em Minas Gerais, terra do tucano Aécio Neves, apresentado na reta final da campanha pela revista Veja, iludida ou hipócrita, como o super-herói capaz de reverter o cenário a favor de José Serra, e no Rio de Janeiro. No total nacional, a petista obteve cerca de 12 milhões de votos a mais que o adversário.

Para chegar à Presidência, Dilma Rousseff, como a pioneira Alzira, teve de superar boatos sobre sua vida pessoal, seu passado no combate à ditadura, sua atuação profissional e mesmo sobre sua saúde, embora os médicos tenham afirmado que a ex-ministra havia superado o câncer linfático que descobriu possuir em abril do ano passado. A presidente eleita surpreendeu-se com o baixo nível da campanha do adversário. Aparentemente, confiara no vaticínio do padrinho Lula, em setembro de 2009, de que, pela primeira vez, não surgiriam “trogloditas” na campanha presidencial.

Ninguém em sã consciência poderia supor que Serra iria se submeter ao papel que desempenhou durante esta campanha presidencial, talvez a derradeira de sua vida pública. O tucano praticamente passou o segundo turno a beijar santas e a erguê-las como se fossem taças da Copa do Mundo, secundado pontualmente pela mulher, Mônica. Entrará para a história dos maus momentos da política brasileira a empulhação da “agressão” sofrida durante caminhada, no Rio de Janeiro, em que Serra teria sido ferido por um objeto ou dois – o único visível, porém, foi uma bolinha de papel. Sem falar em uma série de propostas populistas, entre elas o 13º salário para o Bolsa Família, programa que os tucanos ora dizem ter sido criado por eles, ora definem como “auxílio vagabundo”.

“Foi uma campanha dura”, definiu, até de forma amena, a presidente eleita. Ela realmente acreditou que, como previam as pesquisas, ganharia no primeiro turno. E não ocultou dos mais próximos a decepção com o que saiu das urnas, ocasionado diretamente pelos rumos tomados pela eleição poucas semanas antes de 3 de outubro. O resultado mais provável até meados de setembro acabou modificado por dois fatores: o inexplicável escândalo de nepotismo e tráfico de influência protagonizado por Erenice Guerra, braço-direito de Dilma Rousseff nos tempos de governo, e uma intensa ação difamatória patrocinada por setores conservadores da Igreja Católica que a acusa­ram de ser favorável ao aborto, apenas por desejar discriminalizá-lo, como ocorre nos países mais democratizados e civilizados.

A própria mulher de Serra foi capaz de declarar que Dilma “gosta de matar criancinhas” – apesar de, mais tarde, ter sido confrontada com afirmações de ex-alunas que disseram ter a ex-primeira-­dama paulista feito um aborto.

No início da campanha, a ex-ministra da Casa Civil admitiu a auxiliares estar preparada para difamações. Mas esperava que fossem apenas em relação à sua atuação como militante do grupo clandestino Colina, que participou de ações armadas durante a ditadura. Dilma, que chegou a ficar presa durante três anos, sempre garantiu nunca ter sido da linha de frente. Ou seja, que não pegou em armas. Por isso tinha tranquilidade em relação à abordagem de sua história. Jamais esperou que as calúnias envolvessem os temas do aborto e da religião, e inclusive a acusação de homossexualismo. Até por ter sido casada duas vezes e ter filha e neto.

As últimas palavras de Dilma antes da votação, no domingo 31, no Twitter, a rede social que se mostrou poderosa a ponto de tanto servir para disseminar os boatos quanto para contê-los, mostraram sua mágoa: “Fiquei triste, sim, em alguns momentos, com calúnias e agressões. Mas só vou lembrar das coisas boas, que foram muitas”. A candidata repetia as queixas levadas ao ar na noite anterior, em seu discurso de despedida do debate final, promovido pela Rede Globo, em que lembrou o “conjunto de calúnias propagado pela internet, panfletos e até telefonemas”. Mostrado ao fundo neste momento, apoiado sobre a bancada, Serra não pareceu constrangido.

Não foram apenas os boatos. No horário eleitoral de seu adversário, ameaçava-se: “Dilma não vai dar conta”. Na mídia, a candidata de Lula era alvo de uma campanha feroz, tratada como “marionete”, “robô” e “fantoche”. Uma “invenção” de Lula. Dizia-se que fora ungida pelo presidente apenas por exclusão, já que ele não podia mais contar com Antonio Palocci e José Dirceu, “favoritos”, sempre de acordo com a imprensa, à sua sucessão. Nem parecia a mesma ministra competente, apontada pelos jornais, em 2006, como a “responsável pelo gerenciamento do governo Lula”.

Transformaram-na numa candidata de ocasião, escolhida pelo presidente porque era boa “para ganhar e para perder”: ganhando, mérito de Lula; perdendo, problema dela. Na verdade, é possível que o presidente tenha enxergado “material presidenciável” em Dilma à primeira vista. Lula contou ter se impressionado com a então secretária de Energia do governo de Olívio Dutra, no Rio Grande do Sul, ainda em 2002. Dilma chegara para uma reunião da equipe que elaborou o plano de governo munida com seu laptop, de onde sacava informações a todo momento. Acabou convocada para o governo de transição do presidente eleito e foi a primeira ministra escolhida por Lula, para a pasta de Minas e Energia.

As chances de Palocci se tornar candidato a presidente haviam ido ao chão com a suspeita de ter violado o sigilo do caseiro Francenildo Costa, em 2006. Dirceu, chefe da Casa Civil, caíra em desgraça um ano antes, por conta do escândalo do chamado mensalão, mas de toda forma seu potencial como presidenciável era maior por seu prestígio no PT do que com o presidente. Lula chegou a cogitar os nomes de Patrus Ananias, ministro do Desenvolvimento Social, e de Fernando Had­dad, da Educação. “O presidente avaliou, no entanto, que eles não tiveram uma atuação destacada a ponto de serem escolhidos”, conta um assessor do governo.
No início do segundo mandato, Lula começou a acalentar a ideia de lançar uma mulher presidente, e imediatamente pensou na chefe da Casa Civil.

O presidente começou a jogar o assunto de “mulher candidata” nas conversas reservadas com auxiliares. Dilma foi provavelmente a última a saber. “Ela ficou desconfiada, mas Lula só lhe comunicou oficialmente depois de consultar todo mundo”, conta o ex-prefeito de Belo Horizonte, Fernando Pimentel. Então titular do Turismo, Marta Suplicy ouviu de Lula a ideia de fazer uma presidente e até imaginou que essa possibilidade incluísse a ela e a Marina Silva, do Meio Ambiente, outras duas mulheres de destaque no governo. Não foi assim. Desde o princípio era Dilma quem o presidente tinha em mente.

No início de 2007, como titular da Casa Civil havia dois anos, Dilma se destacava como gestora e começava a pipocar na mídia a possibilidade de que fosse ela a candidata de Lula. Uma azarona que despontaria com apenas 3% das intenções de voto na primeira pesquisa em que seu nome foi incluído, em dezembro daquele ano. Quando foi diagnosticada com câncer linfático, no ano passado, tinha 16% segundo o Datafolha, contra 38% de José Serra. Não foram poucos os articulistas que apostaram que a ministra da Casa Civil seria substituída por outro nome. Dilma superou a doença. E, na realidade, Lula não tinha um plano B.

Contra todas as expectativas de que o patamar máximo de transferência de votos de Lula não ultrapassaria os 20%, em maio a candidata do presidente começava a crescer. Em agosto, aparecia como franca favorita e as pesquisas indicavam que poderia vencer no primeiro turno, com 51% dos votos. As denúncias a envolver Erenice Guerra estancaram seu crescimento entre os eleitores de classe e nível de escolaridade mais altos. A onda cristã que surgiu na reta final do primeiro turno fez a candidata perder votos entre os religiosos. Muitos deles migraram para Marina Silva, do PV.

Embora a boataria a tenha contrariado, os integrantes da campanha petista são unânimes em afirmar que o pior momento foram as denúncias contra Erenice. “Ela se sentiu apunhalada pelas costas quando viu aparecerem na imprensa aqueles parentes todos”, conta um integrante do staff dilmista. Mais do que chefe e subordinada, Dilma e Erenice eram amigas. A presidente eleita a conheceu durante o governo de transição, em 2002, quando Erenice atuou como advogada no mesmo grupo de Energia de Dilma, que a achou competente e a levou como consultora jurídica para o ministério e, mais tarde, para a Casa Civil como secretária-executiva.

Erenice frequentava a residência de Dilma e ajudou bastante durante o perío­do da doença da então ministra. A futura presidente estava só com a mãe, idosa, e a secretária-executiva fez as vezes de governanta da casa. Já Lula, pessoalmente, nunca confiou muito em Erenice. E cobrou a candidata pelos erros de quem escolheu para ocupar sua vaga na Casa Civil. As críticas do presidente foram principalmente por Erenice ter divulgado uma nota por conta própria, sem consultar ninguém, em que atribuía as denúncias a uma “impressionante e indisfarçável campanha” em favor de “quem o povo brasileiro tem rejeitado”, ou seja, a Serra, chamado de “candidato aético e já derrotado”. Acabou sendo forçada a se demitir.

Pode-se dizer que a campanha de Dilma começou com o pé esquerdo e terminou com o pé direito… enfaixado. A visita ao túmulo de Tancredo Neves, logo após anúncio de sua candidatura, em abril, aconselhada por um assessor, foi considerado um equívoco por Lula, que preferia ver Dilma iniciando a campanha no Rio Grande do Sul, ao lado da família. Outro erro teria sido a escolha de uma foto da atriz Normal Benguell em passeata nos anos 60 para ilustrar o site da presidenciável na internet, o que muitos atribuem a uma “mania de publicitário” do marqueteiro João Santana: a escolha de fotos meramente ilustrativas sem se preocupar com a origem.


Em setembro, Dilma torceu o pé direito durante uma caminhada na esteira, rompeu os ligamentos e passou a tomar corticoides desde então. Engordou 7 quilos, em parte porque não podia fazer exercícios, em parte por causa do efeito colateral dos medicamentos. A dor continua e é possível que Dilma precise recorrer à cirurgia. A presidente eleita também tomou anti-inflamatórios para a garganta, que reclamou da falta de traquejo nos palanques da neófita, que enfrentava os berros de uma eleição pela primeira vez. Não houve, porém, qualquer recidiva do câncer.

Com o fim do tratamento, quando o cabelo voltou a crescer, houve uma reviravolta na vida da pouco vaidosa ex-ministra. Ela conheceu o cabeleireiro Celso Kamura, que deu um trato no seu visual. Dilma adorou Kamura e não vive mais sem ele para ajeitar as madeixas. O mesmo não se pode dizer das roupas de Alexandre Herchcovitch, que chegou a ser anunciado como o estilista oficial de Dilma. A candidata gostou dele, mas não das roupas que lhe apresentou. Tanto que Herchcovitch fez questão de dizer que nada do que ela vestiu era dele – o que inclui (ou exclui) o polêmico terninho cinza do debate final na Globo.

Mesmo com uma media training considerada a melhor do mercado, a ex-global Olga Curado, Dilma não foi tão bem nos debates, e seu nervosismo era explicitado nas horas anteriores ao encontro televisivo. “Ela tem TPD, tensão pré-debate”, brinca um dos assessores da candidata. As oscilações de humor de Dilma eram alvo de gozação entre a equipe, comparadas ao tempo. “Hoje está fazendo sol” – quando ela chegava bem-humorada. “Ih, parece que surgiram algumas nuvens” – quando mudava o humor. Nos dias “chuvosos”, Dilma mostrava ter um temperamento parecido com o do tucano Mário Covas, e podia responder a um bom dia com: “Bom dia por quê?”

Sua índole é enérgica, possui temperamento forte. Pode ser que tenha sido a tentativa do marketing da campanha de domá-lo demais que a fez ir mal nos debates. No encontro da Band, o primeiro do segundo turno, mostrou-se mais “assertiva”, e foi quando se saiu melhor. A campanha de Dilma também parece ter dado ouvidos em excesso às críticas da imprensa. Um exemplo lapidar foi a retirada dos púlpitos utilizados para as entrevistas coletivas da candidata. Eram dois, apelidados pela equipe de “Alfredo” e “Alberto”. Depois de serem acusados de distanciar Dilma dos jornalistas, Alfredo e Alberto foram aposentados. Ao verem a bagunça que se tornaram as entrevistas sem o púlpito, os repórteres quiseram Alfredo e Alberto de volta, mas eles fizeram forfait.

Meio baqueada pelos boatos e com dores no pé, a injeção de ânimo foi o ato com os artistas no Teatro Casa Grande,­ no Rio, quando recebeu o apoio de Chico Buarque, Oscar Niemeyer e Beth­ Carvalho, entre outros. “As músicas que ouvi e os livros que eu li estão aqui, com todos esses cantores e artistas”, declarou ante a plateia que lotou o teatro. Contou depois a assessores ter saído de lá emocionada e com “a alma leve”. A homenagem dos artistas, sem Lula de escolta, forneceu o gás necessário para a candidata não esmorecer. A partir daí seus dias ficaram “menos nublados”.

Se dizem que atrás de um grande homem existe uma grande mulher, e se a recíproca acaso é verdadeira, Dilma não teve um, mas quatro homens a seu lado. Além de Lula, a trinca José Eduardo Dutra, Antonio Palocci e José Eduardo Cardozo, que receberam o apelido carinhoso de “Três Porquinhos” da candidata e foram companheiros inseparáveis. Dutra, presidente do PT, ficava na linha de frente, respondendo publicamente aos ataques. Cardozo era uma espécie de relações públicas com a imprensa e assessor jurídico. Palocci, dizem todos, foi o grande articulador da candidatura Dilma, com papel similar ao que teve Dirceu na eleição de Lula em 2002.

A nova presidente não fez alusão a nomes de seu ministério, mas os Três Porquinhos estão bem cotados. Apesar de, talvez, para sempre maculado pelo caso Francenildo, Palocci continua na bolsa de apostas para ocupar a Casa Civil. Dutra estrategicamente se inscreveu suplente de Antonio Carlos Valadares, eleito senador pelo PSB de Sergipe. O que se comenta é que Valadares pode ganhar um cargo no governo na cota do PSB e aí Dutra viraria senador e líder do governo no Senado. Há quem fale ainda que Cardozo pode se tornar ministro da Justiça, mas, das três especulações, esta é a menos provável até agora.

De toda forma, o ministério da primeira presidente mulher deve ser conhecido ao longo dos próximos meses. A expectativa é que ela consiga compor um governo o mais plural possível: com homens, mulheres, negros, brancos, ateus, cristãos, paulistas, nordestinos. Um ministério sem preconceito de raça, de gênero, de credo, de classe social, de origem. Em seu primeiro pronunciamento após o resultado oficial, Dilma Rousseff prometeu ser a presidente de “todos os brasileiros”.

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