sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Mais qualidade para a nossa democracia




Fabiano Santos*


Todo cuidado é pouco quando o assunto é corrupção. É indiscutível que os princípios da legalidade e da transparência, como balizadores do comportamento dos agentes políticos, se confundem com a própria noção de estado democrático. É indiscutível da mesma forma que a corrupção política, aquela que envolve representantes eleitos seja no Executivo, seja no Legislativo, em geral, se associa, embora difícil precisar em qual medida, a distorções importantes em nossa vida econômica. Superfaturamento e licitações dirigidas, em princípio, aumentam os custos de atividades governamentais e desviam recursos da economia para o puro e simples enriquecimento de autoridades mal intencionadas.


Não se pode negar, contudo, que a bandeira da ética na política, do moralismo e da faxina têm servido a propósitos politicamente antidemocráticos, para dizer o mínimo. Os iniciados em história brasileira recente conhecem muito bem o escopo de movimentos pela depuração dos costumes políticos, movimentos, em última instância, de legitimação social de intervenções golpistas. Na Europa contemporânea, os novos partidos de direita crescem nas urnas e insuflam sua retórica aproveitando-se de um sentimento difuso de repulsa do cidadão comum àquilo que é denominado de “sistema”, o “sistema” e seus “acumpliciados”, a saber, os partidos políticos tradicionais e seus representantes.


Parece incrível, mas nunca ocorreu aos analistas do dia a dia de nossa política a hipótese de que a revelação de casos e mais casos de corrupção envolvendo autoridades políticas seja efeito do bom funcionamento das instituições do estado e não o seu contrário. Levantar a hipótese e discuti-la seriamente não são tarefas lúdicas ou mero exercício de especulação. O argumento contrário, segundo o qual vivemos quadro de decadência institucional, por conta de repetidos episódios de roubalheira, dissemina sentimento de desconforto com a política democrática, baseada no voto e nas eleições. Dissemina o desânimo e a apatia. Justifica, ademais, a permanência do tema da reforma de nosso presidencialismo de coalizão na agenda de pontos relevantes a serem tratados pelo Congresso. Mas se a primeira hipótese for a que melhor retrata a evolução da realidade histórica, então, nada mais distante das prioridades da vida social brasileira do que reformar nossas instituições representativas.
O tema do presidencialismo de coalizão aparece como crucial nesse contexto. O termo, utilizado pela primeira vez em clássico artigo de Sérgio Abranches, designa a junção do sistema de separação de poderes com a formação de coalizões para a montagem de ministérios, além de apoio no Legislativo às políticas oriundas do Executivo, prática comum nos países nos quais o multipartidarismo é a regra.



Ou seja, em última instância, resulta da junção do sistema presidencial com a representação proporcional. Nada, além disso. Nada, em suas condições fundamentais, permite a ilação de que possuiria poderes mágicos, como se fosse capaz de contaminar com o germe da corrupção qualquer pessoa que dele faça parte. Em outras palavras, identificar neste sistema a origem causal de um suposto processo de decadência institucional ou da baixa performance democrática é incorrer em enorme falácia da indução. O raciocínio falacioso, no caso, seria do seguinte tipo: 1) casos de corrupção proliferam (premissa 1); 2) praticamos o presidencialismo de coalizão (premissa 2); 3) o presidencialismo de coalizão é causa da proliferação da corrupção (conclusão).


Não é preciso muita reflexão para se notar o quão tosca é a tese. Muitos argumentariam que o problema não é com o conceito de presidencialismo de coalizão, mas com sua prática no Brasil, associada à montagem de acordos políticos baseados na troca de favores. Trocas que nada mais seriam do que barganhas com benefícios auferidos unicamente pelos participantes, ademais de suas clientelas, pouco cabendo ao público mais amplo, a sociedade civil e seus representantes mais dignos. Deixemos de lado o paroquialismo, muitas vezes presente no argumento, como se troca de favores não existisse acima da linha do equador. Olhemos unicamente para o Brasil.


A montagem de grandes coalizões de apoio ao governo no Legislativo e formação dos ministérios têm sido o cenário mais frequente. Supostamente, isto tem levado à criação ou sobrevivência de legendas especializadas na ocupação de cargos no Executivo, sem maiores vínculos com interesses e preferências enraizadas na vida social, muito menos assentadas em uma agenda bem definida de políticas públicas. Deixemos mais uma vez de lado o risco de paroquialismo que tal visão encerra, como se partidos clientelistas não existissem nos sistemas políticos europeus (sejam os nórdicos ou mediterrâneos). O exemplo paradigmático deste perfil de legenda seria o PMDB. Diz-se que a realização mais profunda da democracia no Brasil, uma democracia que transcenda o momento eleitoral e de negociações legislativas, esbarraria na constante presença no governo deste partido, controlado, em larga medida, por políticos clientelistas, tradicionais, representantes de velhas oligarquias estaduais.


Ora, o PMDB é chamado para participar de coalizões, sobretudo, para compor maiorias no Legislativo. Nada existe no presidencialismo de coalizão que obrigue o governo a formar maiorias congressuais. Em muitos países europeus, a prática recorrente é a de governos minoritários, o gabinete sendo apenas tolerado, isto é, não derrubado, pela maioria oposicionista no parlamento. Grande parte da história recente norte-americana é a de governos divididos, nos quais o partido que controla a presidência não é o mesmo que controla a maioria nas duas Casas do Congresso. Qual é a condição para que governos minoritários funcionem? Uma condição está sempre presente: a força institucional do Legislativo. É no interior de órgãos deste Poder, especialmente em suas comissões permanentes, que ocorrem as grandes negociações em torno de políticas propostas pelo Executivo. Nelas, nas comissões, as propostas são discutidas com um mínimo de publicidade, com a participação de grupos de interesse e opiniões aquilatadas da sociedade organizada. Para o plenário chegam projetos amadurecidos pela discussão e pelo acordo democrático, tão perfeito quanto permite a imperfeição do processo deliberativo humano. Mas nunca pelos corredores opacos da burocracia do Executivo e os privilegiados que a eles tem acesso.


É curioso perceber semelhanças entre algumas escolhas feitas pela presidenta Dilma Rousseff e determinados traços da história política norueguesa recente. Gro Harlem Brundtland, do PT norueguês, uma das principais expoentes da esquerda europeia do século XX, foi a primeira mulher a ocupar o cargo de primeira-ministra na Noruega, nos anos 80 do século passado. Fez isso escolhendo grande contingente de mulheres para o gabinete. O modelo regulatório escolhido para a exploração de petróleo em águas profundas serviu de inspiração para Dilma Rousseff, quando ainda era ministra chefe da Casa Civil de Lula. Para além das várias diferenças que marcam a sociedade, a geografia e a evolução histórica de Brasil e Noruega, existe uma mais específica que, talvez, não fosse tão inevitável: a primeira mulher a governar o país nórdico escolheu não montar um governo majoritário, pois não quis distorcer a vocação esquerdista e trabalhista de seu governo e da agenda a ser proposta para o país.


É provável que o processo político brasileiro recente esteja na iminência de experimentar inflexão semelhante. Uma mulher, determinada, líder de uma coalizão de centro-esquerda, procura conferir mais nitidez à condução de seu governo dispensando a colaboração de partidos de centro, ideologicamente pouco definidos, contudo, no Executivo. Para que isso ocorra, no entanto, duas condições são necessárias: 1) curar a obsessão de boa parte da elite política brasileira em reformar o presidencialismo de coalizão; 2) fortalecer regimentalmente as comissões permanentes do Congresso. O desfio histórico está posto. Ou a política brasileira aprofunda seu mergulho democrático, prestigiando suas instituições representativas, em associação, é claro, com os elementos participativos e deliberativos presentes em seu cenário, ou se aposta, em nome da moralidade e do combate à corrupção, numa reforma de efeitos incertos, decididamente ao reverso daquilo que cidadania precisaria para seu fortalecimento.


*Fabiano Santos é professor/Pesquisador do IESP/UERJ, pesquisador do CNPq e presidente da ABCP

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