sábado, 3 de outubro de 2009

América Latina: em algum lugar do futuro?


Márcia Denser*

Agora Noam Chomsky, lucidamente, volta a cantar a bola, semear dúvidas, lançar suspeitas – tirar o chão sob nossos pés. Em entrevista a La Jornada, México, reproduzida pelo site Carta Maior, ele observa que “a América Latina é hoje o lugar mais estimulante do mundo”. E diz por que, contudo, precisamente por isso, “não se surpreenderia com um giro à direita nas próximas eleições no continente”. Ouvindo soar um alarme distante, dissonante nota muda, sinceramente espero que ele esteja errado.

Chomsky avalia que na América Latina “pela primeira vez em 500 anos estão ocorrendo movimentos rumo a uma verdadeira independência do mundo imperial. Países que, historicamente, estiveram separados estão começando a se integrar, e essa integração é um pré-requisito para a independência. No passado, os EUA derrubaram um governo após outro, agora já não podem fazê-lo. O Brasil é um exemplo interessante. No princípio dos anos 60, os programas do presidente João Goulart não eram tão diferentes dos de Lula. Na época, o governo de Kennedy organizou um golpe militar e o Estado de segurança nacional se propagou por toda a região como uma praga. Hoje em dia, Lula é o cara bom, que procuram tratar bem, reagindo aos governos mais militantes da região (Venezuela, Bolívia). Mas nos EUA não se publicam os comentários favoráveis de Lula a Chávez ou a Evo Morales, eles são silenciados porque não correspondem ao modelo”. (Aqui ele esqueceu de dizer que no Brasil a mídia golpista sataniza e distorce tais declarações, degradando não só o presidente como o país, no vale-tudo da elite para proteger seus – dela – “ interesses capitais”, digamos literalmente).

A chave para a independência política da AL está nesse movimento em direção à unificação regional. Segundo NC, “formam-se instituições que, se ainda não funcionam plenamente, começam a existir, como é o caso do Mercosul e da Unasul. A América Central ainda está traumatizada pelo terror da era Reagan e os EUA continuam tolerando o golpe militar em Honduras, ainda que seja significativo o fato de que já não possam apoiá-lo abertamente”.

Ele prossegue: “Outra mudança, ainda que acidentada, é a superação da patologia na América Latina, provavelmente a região mais desigual do mundo, pois, apesar de muito rica, sempre foi governada por uma pequena elite europeizada que não assume nenhuma responsabilidade para com a população de seus países. Isso pode ser comprovado através da análise do fluxo internacional de bens e capitais: na América Latina, a fuga de capitais é quase igual à dívida.

O contraste com a Ásia oriental é grande. Essa região, muito mais pobre, teve um desenvolvimento econômico mais substantivo, uma vez que os ricos são submetidos a mecanismos de controle. Não há fuga de capitais; na Coréia do Sul, por exemplo, ela é castigada com a pena de morte (que tal o modelo coreano de resolver o problema?). O desenvolvimento econômico lá é relativamente igualitário”. (A crise de 1997 parece ter vacinado para sempre os “tigres asiáticos” dos efeitos nefastos da financeirização globalizada).

Os EUA controlavam a América Latina de duas formas: pelo uso da violência e pelo estrangulamento econômico. Ambas foram debilitadas. Os controles econômicos são agora mais fracos por várias razões: muitos países se liberaram do Fundo Monetário Internacional (FMI) através da colaboração mútua; foram diversificadas as ações entre os países do Sul, processo no qual a relação do Brasil com a China e África do Sul (e Índia) desempenhou um papel importante. Esses países passaram a resolver seus problemas internos sem a intervenção dos Estados Unidos.

Chomsky lembra que o elemento central do neoliberalismo é a liberalização dos mercados financeiros, que torna vulneráveis países com investimentos estrangeiros. “Se um país não pode controlar sua moeda e a fuga de capitais, está sob o controle dos investidores externos (logo, não têm soberania política). Eles podem destruir uma economia se não gostarem de algo que esse país faz. Essa é outra forma de controlar povos e forças sociais, como os movimentos operários. São reações naturais de um empresariado muito concentrado, com grande consciência de classe. Claro que há resistência, mas fragmentada e pouco organizada, e por isso continuam promovendo políticas às quais a maioria da população se opõe. Às vezes isso chega a extremos".

Nos EUA, o setor financeiro está o mesmo que antes; as seguradoras de saúde ganharam com a reforma da saúde, as empresas de energia ganharam com a reforma do setor, os sindicatos perderam com a reforma trabalhista e, certamente, a população dos EUA e do mundo perde porque a destruição da economia é grave por si mesma. Se o meio ambiente é destruído, os que mais sofrerão serão os pobres, só os ricos sobreviverão aos efeitos do aquecimento global.

Sobre a questão em Honduras, ele considera: “Esse golpe foi incomum porque os Estados Unidos não o apoiaram abertamente. O país se juntou à OEA e a outras potências na crítica, mas fez isso de uma maneira fraca – não retiraram seu embaixador, como outras nações. Também se recusaram a chamar de golpe, o que envolveria cortar ajuda, e nada fizeram para restaurar a democracia. Os militares de Honduras são muito ligados aos EUA. Aliás, os americanos usam uma base no país. A história de que Zelaya queria mudar a Constituição é um pretexto: Zelaya estava aumentando o salário mínimo, introduzindo programas que beneficiariam os pobres e a pequena elite rica do país não gostou nada daquilo. Acho que a atitude do Brasil tem sido admirável. Ao acolher Zelaya, o país se colocou numa posição a favor da democracia e é claro que o que o Brasil faz é extremamente importante, pois é o principal país da América Latina.

Os golpistas estão enfrentando uma pressão internacional, da OEA e de maneira mais fraca dos EUA, e agora estão caminhando para um confronto direto com o Brasil. Acredito que irão recuar. A questão crucial vai aparecer em novembro. Porque os golpistas estão querendo manter a situação até as eleições para tentar convencer o mundo de que a eleição [convocada por eles] seria legítima e isso encerraria a questão. Mas claro que ela não será legítima, não com um governo que foi ao poder por um golpe militar. E a questão crucial vem depois: os EUA irão aceitar o resultado de uma eleição feita por um governo golpista?” (de entrevista dada pelo telefone a Giovana Sanchez em 01/10).

E NC conclui: “Por isso a América Latina é hoje um dos lugares mais interessantes do mundo, onde há uma verdadeira resistência a tudo isso. Até onde chegará? Não se sabe. Não me surpreenderia com um giro à direita nas próximas eleições na América Latina. Mesmo assim, terá conseguido um avanço que assenta bases para o futuro. Não existem muitos lugares no mundo dos quais se possa dizer o mesmo”.

Eis a questão que NÃO estamos nos formulando (que morremos de medo de nos formular):

Na hipótese do retorno a um governo de direita realinhado aos EUA, até que ponto aceitaríamos este retrocesso – especificamente este, não outro –, este novo adiamento para um futuro distante da ansiada independência política, prestes a se consumar pela primeira vez em 500 anos?

Hein?

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