terça-feira, 6 de outubro de 2009

As ilusões da esquerda


Por Emir Sader - Carta Maior - do Rio de Janeiro



Bertold Brecht chamou sempre a atenção sobre a necessidade de tomar o inimigo pelo seu lado mais forte, não subestimá-lo, sob o risco de iludir-nos e preparar-nos para derrotas e não para vitórias. A esquerda - especialmente em tempos ruins para os ideais de esquerda - corre muitos riscos de cair em ilusões fáceis, o melhor caminho para a derrota.

Mecanismos de auto satisfação podem servir de forma imediata para elevar a auto estima de uma esquerda muito golpeada por sucessivas derrotas e retrocessos, mas não substitui uma análise rigorosa das situações concretas, não para nos determos nas denúncias, mas para propormos alternativas de superação das crises pela esquerda.

Uma grande ilusão que grassou amplamente na esquerda nos últimos meses foi a de que a crise capitalista atual levaria ao fim do neoliberalismo -que, para alguns, já terminou – e, até mesmo, do capitalismo. Que, paralelamente, a hegemonia norteamericana do mundo também estaria esgotada, superada, derrotada. Como se, por um passe de mágica, sem que forças antineoliberais e anticapitalistas tivessem construído projetos alternativos e capacidade de mobilização, de tomada de consciência, de organização e de ação, o neoliberalismo e o capitalismo fossem derrotados por suas próprias contradições internas.

Algumas visões, pela transferência mecânica da crise de 1929, chegaram a afirmar que entrávamos em uma era de guerras – sem dizer que outra potência ou grupo de potências as protagonizariam, como no caso anterior, porque as contradições atuais entre as grandes potências e mesmo com algumas emergentes como a China, se resolvem por outras vias que não a guerra, restando estas como guerras imperialistas localizadas, como as do Iraque, do Afeganistão, da Colômbia.

Nada mais equivocado e nada prepara mais o caminho para novos reveses da esquerda do que esse tipo de análise. Nem o neoliberalismo, nem o capitalismo, terminarão, se não são substituídos. Se se esgota o neoliberalismo, por exemplo, e não existe alternativa e força de esquerda para substituí-lo, poderá ser sucedido por outro modelo, organizado e dirigido pelas mesmas forças dominantes de hoje.

As visões que anunciam o fim desses modelos hegemônicos e formas de organização da sociedade e do Estado, sem apontar quem os derrubaria e por que seriam substituídos, estão supondo uma sucessão mecânica de modelos e de formas de sociedade, independentemente da intervenção dos homens. Seria um retrocesso a visões organicistas da história, segundo as quais haveria uma sucessão predeterminada de modos de produção e um finalismo, que conduziria a história numa determinada direção, sem intervenção dos homens, dos Estados, das forças organizadas, defendendo interesses determinados.

Quando aos catastrofismos anunciados se sucede não a superação dos modelos hegemônicos, mas a superação relativa da crise, esses arautos da catástrofe ficam despreparados para dizer qualquer coisa, a não ser anunciar que “o pior está por vir”. Depois de ter tomado a interpretação de Lênin sobre o imperialismo como “a fase superior” do capitalismo, como sua fase última – e não como sua fase superior -, o movimento comunista internacional, para compensar o isolamento e a fraqueza da URSS nos anos 1930 e 40, com o auge do fascismo, passou a falar de “segunda etapa da fase final do capitalismo”, e assim sucessivamente.

Os catastrofismos sempre fracassaram, se revelaram inócuos depois do impacto que suas previsões supostamente fundadas na realidade, provocaram. O mais tradicional deles, o malthusianismo, se revelou falso, porque se produz alimentos mais do que suficientes – praticamente o dobro – do que a humanidade requer, só que pessimamente distribuídos. O problema dos catastrofismos – biológicos, econômicos, ecológicos – é que não levam em conta as contra tendências, tomam uma tendência real e a projetam mecânica e linearmente para o futuro. Os chineses já possuem a maior indústria automobilística do mundo, contaminam o meio ambiente, mas isto não leva a uma catástrofe ecológica mundial.

Gramsci comentava as previsões de Trotsky sobre o caráter socialista da revolução em escala mundial, dizendo que se é certo que um dia cada menina se tornaria uma mulher, nem por isso ela deveria ser violentada quando era menina, para apressar esse processo. Os processos históricos são resultado das condições objetivas e da ação – consciente ou não – dos homens sobre essas condições. O mundo não caminha para o socialismo, independentemente dos projetos e das forças que se organizem em função desse projeto, da mesma forma que a humanidade não está condenada a viver sob o capitalismo. A história é um processo aberto, que depende da ação consciente e organizada dos homens e mulheres, como o momento atual o confirma.

Emir Sader é jornalista.

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