quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Que guerra é esta?


O derrotado Serra avisa que “a luta continua” e dá o tom às primeiras reações da mídia e à campanha de ódio movida pela internet.





No seu discurso de eleita, Dilma Rousseff disse que será presidente de todos os brasileiros e ofereceu um cavalheiresco aperto de mão aos adversários. Ao reconhecer a derrota, outros foram o tom e a linha de José Serra. Afirmou que sua campanha foi e será travada em defesa da democracia e ao dizer que “a luta continua” reforçou a ideia da sua permanência em cena, como se almejasse repetir a experiência “agora” malograda. Talvez alguns dos seus correligionários tenham sofrido algum abalo entre o fígado e a alma ao ouvirem o seu “até logo”.

Pronunciamentos bem diferentes. A democracia nunca foi ameaçada e antes que aos candidatos, coube à nação fortalecê-la. Quanto à luta a ser mantida, a frase de Serra parece significar que, se uma batalha foi perdida, a guerra não terminou. Que luta é esta, ou que guerra?

A julgar pela campanha tucana, trata-se de um vale-tudo, um catch as you catch can recheado de golpes baixos e sem a mais pálida sombra de respeito pelos princípios democráticos, apoiado maciçamente pela mídia nativa tão escassamente inclinada à prática do jornalismo, e, portanto, sempre pronta a omitir, inventar, mentir, caluniar, em proveito de ideais tucano-udenistas que rescendem a bolor. E incentivado e aplaudido na internet por uma ofensiva de ódio destampado, além de estupidamente bairrista.

Ao longo dos últimos meses perguntei aos meus estupefatos botões se, porventura, os diversos órgãos da chamada “grande” imprensa, sem descurar de televisão e rádio, não teriam sido adquiridos pelo tucanato em uma operação sem precedentes na história do jornalismo mundial. Os botões riram, como convém em ocasiões similares, mas preferiram adotar uma postura racional e, baseados na verdade factual, lembraram que Serra, na qualidade de governador de São Paulo, cuidou de abastecer de várias formas os cofres dos barões midiáticos.

Se for guerra e forem estes os inimigos de Dilma, nada se dará à sombra da Convenção de Genebra. Tampouco do senso de humor. E Fernando Henrique Cardoso adverte com expressão profética: o Brasil corre o risco de ser cubanizado. Cassandra ficaria envergonhada. Nostradamus invocaria a aposentadoria.

Seria o caso de gargalhar. Temos de lidar, porém, com os jornalistas nativos. Não somente veneram FHC, mas também estão sempre fervorosamente dispostos a lhe consagrar o verbo. Um dos assuntos mais frequentados pelos perdigueiros da informação na coletiva à imprensa concedida por Dilma na quarta 3 foi a dúvida quanto ao futuro das relações do Brasil com as ditaduras que infestam o mundo. Como agirá a diplomacia verde-amarela com interlocutores do mal, como Fidel? E com o regime dos aiatolás? E com a China? E as ditaduras disfarçadas, como a de Chávez? Patéticas preocupações de quem ou é muito hipócrita ou muito ignorante.

A incultura e o QI baixo têm de ganhar seu papel nesta equação, infelizmente. Dúvida igual teria vez no Reino Unido, na Alemanha, mesmo na Rússia, e por aí afora? O Brasil tem peso específico para manter relações com qualquer país da forma que for mais conveniente aos seus próprios interesses. E não precisa de guardiões da sua incolumidade ideológica.

O problema tucano, e dos seus menestréis, é a atitude aristocrática de quem se apresenta como único intérprete da moral com eme grande. Como mensageiro da verdade e da luz. O PSDB nasce, aliás, de uma dissidência dentro do PMDB de Ulysses Guimarães, cavalheiro de antiga cepa e liberal à moda antiga. À rapaziada parecia moderado demais para esquerdistas tão sinceros, era o que alguns deles davam a entender. Por trás, fermentava a vaidade, e se de vaidade se trata a de FHC é insuperável.

Deu no que deu. O tucanato deslizou mansamente à direita. Chegou a reproduzir o pensamento udenista sem sequer atua-lizá-lo, como se o planeta fosse o mesmo de seis décadas atrás. Mesmos vezos, cacoetes, idiossincrasias. Preconceitos. Arrogância de sabe-tudo, com todas as suas consequências. Está provado: aquele que começa à esquerda e acaba à direita pertence a uma espécie extremamente daninha.

Vale repetir e sublinhar: Cuba não é mais aquela. A CIA já não atua na América Latina e, especificamente no Brasil, com a tranquilidade de quem vai tomar sopa na casa da vovó. O embaixador Lincoln Gordon levou sua coleção de cachimbos para o além. O Muro de Berlim ruiu. Aquele que chamávamos de Primeiro Mundo foi para a segunda divisão. E o império americano não se beneficia com a falta de rivalidade, prova pelo contrário que não apresenta a menor semelhança com Roma Antiga.

O tucanato e seus instrumentos midiáticos portaram-se durante a campanha como se vivêssemos à véspera do comício da Central do Brasil versus a Marcha da Família, com Deus e pela Liberdade. Seria salutar para todos se o pós-eleição servisse para depor as armas, a fim de abrir o melhor caminho para o País.

Deste ponto de vista, os primeiros sinais não são animadores. Por exemplo, a manchete da primeira página de O Globo é altamente representativa de um espírito de beligerância, entre todas as da segunda-feira 1o de novembro. Propõe a ameaça de Lula a se alastrar igual à sombra maligna sobre o governo da sua candidata. Os exemplos são inúmeros. O Roda Viva do mesmo dia 1o, colocado no fundo da cova José Dirceu, verteu basicamente sobre as mazelas petistas, a partir da evocação do chamado mensalão. Os leões em vão afiaram os dentes. Eles também levam um notável atraso. Sem tempo de bola, diria um técnico de futebol. Dirceu sabe de cor perguntas e respostas e, para ficar na terminologia do balípodo, tirou de letra.

A registrar, contudo, o propósito a levantar o tema. Assim como se registre a atoada geral dos editoriais, da maioria das colunas e dos artigos a insistirem à exaustão na singular concepção de que o cidadão letrado e consciente votou somente em Serra. E nisso se insere a deplorável visão de que os fundões estão com Dilma, com clara referência ao Nordeste. Uma análise fria permite avaliar que nos fundões o DEM ainda goza de algumas bases fortes, e que as elites locais estão divididas. Sem contar as derrotas sofridas pelo PSDB em Minas e Rio, e o quase empate no Rio Grande do Sul, em Goiás e no Espírito Santo.

Conspícuo artigo no Estadão de segunda soletra que a vitória de Dilma racha o País. Entre quem? Entre quem sabe das coisas e quem vive no limbo. Ou entre ricos e pobres? A eleição conta outra história. A divisão ocorre entre entendimentos diversos, entre concepções divergentes, o que é claro indício de progresso. Fosse a divisão aquela exposta pelos informados, ela indicaria um problema muito mais grave. Certo é que tanto ódio, tanta ira, tanta irresponsabilidade, não trabalham a favor de ninguém.

O Brasil está no rumo certo, na perspectiva de se tornar o que merece ser. Qualquer tentativa de precipitar o confronto é temeridade. Exatamente porque o mundo mudou e o País com ele. Prepotências cometidas no passado em proveito do privilégio hoje não seriam possíveis sob pena de incendiar os ânimos. Anacronicamente, permito-me dizer.

Há, nesta moldura, boas razões para desejar o nascimento de uma nova oposição, sintonizada com o nosso tempo e interessada no destino do nosso país e da nação em bloco, aberta ao debate sem ridículas manias de grandeza intelectual e moral. Este gênero de oposição é indispensável ao correto exercício da democracia e não se confunde com o PSDB de FHC e José Serra e outros menos cotados, surfistas do oportunismo e de apostas equivocadas. Os tucanos, diga-se, estão a viver um conflito intestino na disputa dos escombros de uma ruína.

Serra não citou Aécio Neves no discurso da derrota. Aécio, aquele que a Veja apresentou na capa como super-homem capaz ainda de empurrar o candidato tucano pelo atalho da vitória. Na opinião de CartaCapital, aí está uma liderança habilitada a compor aquela oposição necessária ao fortalecimento da democracia e ao progresso político, econômico e social. E o primeiro passo neste sentido seria o de acabar na área oposicionista com a primazia de São Paulo, locomotiva do atraso político.

A política “café com leite”, que funcionou décadas a fio, já mereceu seu funeral. Mas São Paulo, ou, pelo menos, milhões de paulistas retrocedem no tempo a épocas até bastante anteriores ao golpe de 64. Eles sonham é com a dita Revolução de 32.

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