Gosto de viver nessa cidade. De acordar, insône, às quatro da amanhã e ter a certeza de que dá para ir em algum lugar. Assistir o filme ou a peça de teatro que quiser sem ter que pegar uma ponte aérea. Rodar o mundo pelos diferentes gostos de seus restaurantes. Encontrar na diversidade de origens, cores e formas pessoas tão interessantes quanto posso imaginar. De saber que a informação e o conhecimento fluem rápido, de fora ou de dentro, para a cidade.
por Leonardo Sakamoto, no Blog do Sakamoto
Posso rodar o país e o mundo mas invariavelmente volto para aí, meu porto seguro, onde me identifico, onde as coisas fazem sentido. Onde meus amigos, emoldurados pela cidade, me lembram através do reflexo que vejo neles quem eu sou, de onde vim, para onde vou. Nasci aí, mas o mais importante é que adotei a cidade depois que aprendi a andar com as próprias pernas. Ser paulistano não tem a ver com o local onde você teve o cordão umbilical cortado, mas onde você amarrou seu burro.
Amo São Paulo e, por isso mesmo, sinto um aperto no peito. Como posso gostar de um lugar onde o povo não aprendeu a ser cidadão, onde os eleitos se furtam a cuidar da pólis, que pensa que só porque é maior e mais rico é melhor do que o resto do país, que insiste em se afirmar como reserva moral e guia econômico dos outros estados, que acredita piamente ter sido incumbido de uma missão divina de guiar o Brasil para o seu futuro, que tem colo lema que ostenta a sua bandeira “Non Ducor Duco” (Não sou conduzido, conduzo)? Uma cidade que joga para longe os pobres, traz para perto os endinheirados, bate na sua população de rua, espanca homossexuais e ainda reclama da selvageria que ocorre além de Queluz?
O “paulistanismo”, o nacionalismo paulista, funciona como uma espécie de seita radical para os seus adeptos. Mesmo as pessoas mais calmas viram feras, libertando uma fúria bandeirante que parecia, historicamente, reprimida dentro do peito. O pessoal que vira de nome de avenida, escola, praça, escultura, Palácio de Governo. Nossos heróis são Domingos Jorge Velho, Antônio Raposo Tavares, Fernão Dias Paes Leme, Manuel Preto, Bartolomeu Bueno. Repito o que aqui já disse, o fato de São Paulo ter escolhido os bandeirantes como heróis diz muito sobre o espírito do estado.
As pessoas não entendem como um neto de imigrantes, com cara de japonês, paulistano com sotaque carregado e que foi estudante da USP pode escrever coisas assim. Bem, se você gosta de algo e vê problemas nela, tem duas opções: a) ignora tudo e cria um mundo de fantasia na cabeça; b) critica e atua para construir alternativas. Mas, cuidado ao escolher “b”, pois quem chama para o enfrentamento de idéias e propõe mudança no status quo é taxado como baderneiro em São Paulo.
Logo após a fundação da vila de São Paulo de Piratininga, José de Anchieta, com a ajuda de índios catequizados, ergueu um muro de taipa e estacas para ajudar a mantê-la “segura de todo o embate”, como descreveu o próprio jesuíta. Os indesejados eram índios carijós e tupis, entre outros, que não haviam se convertido à fé cristã e, por diversas vezes, tentaram tomar o arraial, como na fracassada invasão de 10 de julho de 1562. Ao longo dos anos, a vila se expandiu para além da cerca de barro, que caiu de velha. Vieram os bandeirantes já supracitados, que caçaram, mataram e escravizaram milhares de índios sertão adentro. Da África foram trazidos negros, que tiveram de suportar árduos trabalhos nas fazendas do interior ou o açoite de comerciantes e artesãos na capital. No início do século 19, a cidade tornou-se reduto de estudantes de direito, que fizeram poemas sobre a morte e discursos pela liberdade. Depois cheirou a café torrado e a fumaça de chaminé, odores misturados ao suor de imigrantes, camponeses e operários.
Mas, apesar da frenética transformação do pequeno burgo quinhentista em uma das maiores e mais populosas metrópoles do mundo, centro financeiro e comercial da América do Sul, o muro ainda existe, agora invisível. Só quem não quer enxergar vê na capital paulista uma terra em que todos têm direitos e oportunidades iguais.
Eu disse no último 9 de julho e reafirmo que a esperança de São Paulo é que uma nova geração, liberal em costumes, progressista politicamente, consciente com relação ao meio ambiente e aos direitos sociais e civis, menos arrogante e com uma atuação realmente federalista, consiga emergir com força em meio à decadência quatrocentona, travestida de modernidade ao longo do século 20, que ainda reina.
Se houve melhora na maneira como a administração municipal trata os mais humildes, isso se deve à sua própria mobilização, pressão e luta e não a bondades de supostos iluminados ou da esmola das classes mais abastadas. Até porque nossos “grandes líderes” naufragam em tempos de chuva e são reduzidos a pó em tempos de seca.
Baseado nisso, eu que não sou pessimista, mas realista, neste 25 de janeiro me encho de forças não sei de onde e peço para acreditarmos em São Paulo, uma vez que a semente da mudança que vai conduzi-la para um lugar melhor, mais justo, está dentro dela mesma. Tenho a certeza de que se a política higienista do município que arrota grandeza não acabar com aqueles que há mais de quatro séculos são “indesejados”, eles vão assumir essa mudança, tomando a rédea de suas vidas, e mudando as nossas para melhor. Pois enquanto a maior parte dos seus habitantes estiver do lado de fora do muro invisível que cerca a cidade, comemorar essa data significa um ato de memória e de luta e não um momento de festa.
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