O mundo preocupa-se com a sua paz, enquanto o País aposenta a Razão e move-se a ódio de classe
por Mino Carta
O "revoltado on-line" Marcelo Reis e Hélio Bicudo, autor do processo de ipeachment
Volto
depois de duas semanas de férias na Itália, as primeiras tiradas neste
ano inquieto. Lá fora vivem-se também dias tensos por motivos que
ameaçam a paz do mundo. Por aqui reencontro o mesmo deplorável debate em
torno da trama golpista pelo impeachment de Dilma Rousseff, assunto tão exaustivo quanto, a seu modo, insuportavelmente enfadonho.
O planeta teme as consequências da
enésima crise no Oriente Médio, com epicentro na Síria, enquanto o EI
avança, mata e destrói monumentos ilustres, com o envolvimento militar,
para enfrentá-lo, de vários países, a começar por EUA e Rússia. Obama e
Putin divergem em relação ao objetivo da operação bélica. O russo quer
salvar Assad, o americano pretende riscá-lo do mapa, e a divergência
assume tons ásperos e ameaça azedar mais e mais.
O quadro, de todo modo, é mais amplo. A
terceira Intifada parece dar seus primeiros passos nas ações terroristas
palestinas contra Israel, que prepara represálias, enquanto o Hamas
avisa: é guerra. E neste tabuleiro sombrio cabe ainda a crise na Turquia
de Erdogan, participante do ataque ao EI e deflagrador da guerra
interna contra a resistência curda. O Ocidente paga pelo acúmulo de
erros cometidos no Oriente Médio, a começar, para não buscarmos razões
mais antigas, pelo fim do Império Otomano, quando Grã-Bretanha e França
deram para redesenhar a seu talante o mapa da região.
Entende-se que o mundo se preocupe com o futuro, mas nós aqui estamos a discutir o impeachment
como se fosse possível rasgar a Constituição em nome, apenas e tão
somente, do que nos proporciona, diária e inexoravelmente, a mídia
nativa, ou seja, o verdadeiro partido de oposição a representar, ao
mesmo tempo, os interesses da casa-grande e o atual estágio da sociedade
brasileira.
A gravidade do momento brasileiro compõe
um fenômeno único, peculiar e desolador, sem parentesco com as atuais
inquietações do mundo, a não ser na desigualdade social, matéria em que
somos campeões. Vale saber, porém, que inúmeras nações, embora apartadas
pelos editos neoliberais, vivem bem melhor do que a nossa, mesmo porque
aqueles milhões de cidadãos tirados da miséria absoluta no tempo de
Lula estão a regressar à condição anterior.
Por onde tenha andado durante as
férias, sempre fui alcançado pela pergunta: que aconteceu com o País
ainda recentemente cotado para o progresso rápido? Que involução foi
essa? Difícil explicar, mesmo porque casa-grande e senzala são conceitos
inconcebíveis para europeus, assim como o interlocutor me teria como
mentiroso se lhe contasse dos mais de 60 mil assassinatos anualmente
entre o Oiapoque e o Chuí.
Complicadíssimo também esclarecer que o
Brasil é um país que literalmente perdeu o senso. Além da ridícula
ostentação da minoria rica, hipocrisia, arrogância, prepotência,
intolerância, ódio de classe grassam impetuosos no nosso desmesurado
rincão. E ignorância, primarismo, parvoíce. Se algum dia nos habilitamos
à cultura da Razão, esta soçobrou como um barco furado. Está ausente
nas frases feitas emboloradas de tanto uso, na ladainha dos editoriais,
colunas, artigos, nas diatribes dos tribunos de uma pretensa
aristocracia, nas demandas de alegados juristas que ignoram a lei, ou a
desrespeitam, nas invectivas dos políticos açodados, entre eles um
príncipe dos sociólogos que ninguém leu.
A quem me pedia explicações enquanto eu me informava no La Repubblica, gostaria de ter mostrado as edições do mesmo dia do Estadão, da Folha, de O Globo,
sem acrescentar verbo, em perfeito silêncio. Seria o bastante para o
bom entendimento do Brasil de hoje. Excelente exemplo dos comportamentos
da mídia nativa o recente seminário sobre jornalismo promovido pela
revista Piauí. Convidado especial do evento, Daniel Dantas, o
banqueiro do Opportunity. Condenado em Nova York, Londres e Cayman, não
pode sair do Brasil sem correr o risco de ser preso, como, mais cedo ou
mais tarde, se dará, por exemplo, com Marco Polo Del Nero e os senhores
da Globo. Ao cabo de sua palestra em São Paulo, Dantas foi aplaudido de
pé.
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