Luiz Marques *
Em uma importante análise recém publicada, cujos dados foram incorporados à presente reflexão, o cientista político André Singer (Raízes sociais e ideológicas do lulismo, Revista Novos Estudos, nov/2010) debruça-se sobre a evolução do fenômeno que denominou de “lulismo”. O lulismo consistiria no amparo proveniente dos setores empobrecidos da população ao projeto político representado por Luiz Inácio Lula da Silva. Segundo Singer, o próprio PT pende fortemente nessa direção depois de perder o respaldo das classes médias. Ações distributivas do Estado, aliadas à manutenção da estabilidade do país, teriam levado o eleitorado com proventos limitados a dois salários mínimos a migrar para o campo de apoio do ex-retirante nordestino.
A prova dos nove seria a vitória sobre Alckmin, em 2006, com a votação massiva das faixas de baixíssima renda familiar, o “subproletariado”: por definição, os que se inserem no mercado de trabalho sem uma remuneração que assegure a reprodução de suas energias. Se dependesse dos eleitores com rendimento acima de dez salários o petista haveria soçobrado. Note-se que em 1989 a hegemonia exercida pelo PT deu-se “às avessas”, isto é, entre os favorecidos em lugar dos desfavorecidos. A “gente humilde”, reverenciada nos versos poéticos de Vinícius de Moraes e Chico Buarque, tendeu para o histriônico “caçador de marajás”. Coisa que suscitou em Lula uma avaliação normativa que acenava a vontade de ser feliz: “Temos de ir para a periferia, onde estão milhões de pessoas que se deixam conduzir pela promessa fácil de casa e comida”.
Na verdade, adverte Singer, a dita “promessa fácil” era o desaguadouro dos preconceitos instalados na base da pirâmide social. Esta, nos anos 80, opunha-se aos movimentos sociais que ameaçassem desestabilizar a ordem estabelecida e aceitava a intervenção das tropas militares para dissolver as greves (41,6% contra 8,6% dos que recebiam acima de vinte salários mínimos). Os subproletários não se portavam como sujeitos políticos autônomos, inclinando-se a forjar uma identidade pela ótica dos de cima. Em 1994 e em 1998 a tendência repetiu-se, com Fernando Henrique Cardoso mobilizando os trabalhadores sem registro formal ou experiência sindical. Os eleitores lulistas tinham então níveis superiores de escolarização e concentravam-se em bolsões urbanizados e industrializados, no Sul e no Sudeste. Em 2002, quando o prócer da esperança chegou à presidência, a votação também não exprimiu uma polarização do tipo pobres versus ricos.
Mudança de paradigma
O ano da virada é 2006. Frustrada com as denúncias de corrupção do “mensalão”, iniciadas em maio e arrastadas até fins de 2005, as classes médias debandaram para a ponta oposta do espectro ideológico enquanto a sustentação do presidente deslocava-se para as camadas antes refratárias à esquerda. O deslocamento começou com o Bolsa Família em 2003, e avançou com a superação da conjuntura recessiva e o sentimento de que o poder de consumo de produtos tradicionais (alimentos, materiais de construção civil) e novos (celulares, DVDs, passagens aéreas) descortinava melhores condições de vida aos de baixo. Isso evitou o naufrágio político de Lula, apesar da deserção das classes médias e das manchetes sensacionalistas.
Explica-se. Próximo ao pleito, o BF atendia 11,4 milhões de famílias e seu orçamento saltara de R$ 570 milhões para R$ 7,5 bilhões. Com o que Lula obteve 60% dos votos no Nordeste no primeiro turno e 33% no Sul. A diferença correspondeu ao investimento no BF, três vezes maior no Nordeste, aniquilando o conservadorismo dos grotões. Entre os votantes pela primeira vez em Lula ponteavam as mulheres de baixa renda, justo o alvo do programa. Outras variáveis incidiram no processo evidentemente.
A cesta básica que subiu 8,5% e 10,4% em Porto Alegre e São Paulo, locais em que perdeu, e em Recife e Fortaleza minguou para 4% e -3%, capitais de estados em que venceu com 82% e 75% da apuração. A valorização do salário mínimo que dinamizou a economia das cidades de menor IDH e estimulou as vendas do varejo. A expansão do financiamento popular, o crédito consignado, os empréstimos à agricultura familiar, o microcrédito, a eletrificação rural, as cisternas no semi-árido, a bancarização de quem jamais usou cartão nos caixas, etc.
Singer lembra ainda o Benefício de Prestação Continuada que repassa um salário aos idosos ou portadores de necessidades especiais com renda per capita na família até ¼ do salário mínimo. Com o Estatuto do Idoso, aliás, a idade para o recebimento baixou de 67 para 65 anos. O BPC contemplava 2,4 milhões de cidadãos no ano emblemático, com indicativo de que 62% dos que integravam algum plano governamental votariam em Lula.
Em suma, as políticas sociais implementadas no primeiro mandato contribuíram no combate à pobreza, reduziram as taxas de desemprego de 10,2% em 2002 para 8,3% em 2005, baixaram a inflação de 12,5% para 5,6% e cimentaram a posição carismática do operário que reelegeu-se para o ápice da representação política, com uma mudança de paradigma no suporte sócio-regional. O PT prosseguiu influente nos centros urbanos e industriais, com uma bancada de deputados federais concentrada em municípios desenvolvidos. Lula (e Dilma Rousseff, em 2010) tem hoje enorme audiência no Norte e Nordeste, mas o PT arregimenta parlamentares para o Congresso Nacional no Sul e Sudeste majoritariamente.
A liderança de Lula
Alguns analistas interpretam de modo negativo o significado da liderança de Lula. Acusam-no de despolitizar o tema da pobreza e da desigualdade, por não desconstruir o modelo explorador vigente nas relações entre o capital e o trabalho. A marca do lulismo seria a desideologização do antagonismo subjacente ao sistema de dominação capitalista. A permanência de pilares da política macroeconômica oriundas do governo antecessor (metas de inflação, câmbio flutuante, superávit primário nas contas públicas e independência do Banco Central) revigora a tese da direitização condensada no lulismo. O que as ácidas condenações não captam é que a adesão dos setores de baixíssima renda decorreu em boa proporção do clima de harmonia e estabilidade. No imaginário do subproletariado viradas bruscas arriscariam os direitos conquistados a duras penas.
A prudência de Lula, anunciada na Carta aos Brasileiros (em que comprometia-se a manter os contratos) e ilustrada na adoção da Lei de Responsabilidade Fiscal (que inibe investimentos dos entes federados), pavimentou a transição de 35 milhões de corações e mentes para a “classe C” fazendo da necessidade conjuntural uma virtude histórica. Para tanto, foram minadas as principais concessões de FHC ao Consenso de Washington: os juros altos, a liberdade de movimento dos capitais e a contenção dos gastos públicos. Se o percurso de Lula para esconjurar as reminiscências do neoliberalismo foi sinuoso e estampou contradições caricatas ao cotejar-se a gestão de Meireles no BC e Mantega no Ministério da Fazenda, em compensação, abriu uma promissora agenda de inclusão social. Mérito fabuloso, considerando que 50% da força de trabalho está na informalidade e sobrevive com aportes precários. Sem mencionar que, nesse período, o Estado tornou-se um ícone contra toda manifestação de desigualdade social, étnica ou de gênero encarnando os ideais de uma autêntica República.
O que realimenta as críticas é o fato de que a linguagem classista das origens do PT, aos moldes do slogan “trabalhador não vota em patrão”, anteriormente dirigida às camadas intermediárias a exemplo dos operários industriais, dos servidores públicos e dos estudantes universitários perdeu a capacidade de interpelação na sociedade. Os partidos situados à extrema esquerda que insistem em bater na tecla do classismo não conseguem crescer na preferência das maiorias e têm dificuldades de se colocar no cenário político. A absorção e a vocalização de um discurso com ênfase republicana e igualitária, somado ao apelo à democracia participativa, é o que garante ao PT uma interlocução renovada com a cidadania e uma presença forte em distintas órbitas representativas da federação. Para muitos, tal configura um abandono estratégico do socialismo e um insulto à utopia, quando significa tão somente um ajuste tático em face das mutações da realidade política social e econômica em um contexto de afirmação dos procedimentos institucionais.
Um passo atrás, dois à frente
A idéia de modernização do capitalismo, que encantou o senso comum e a grande mídia ao tempo que os carros nacionais eram comparados às carroças de tração animal, não acha mais eco nas multidões que estão vivenciando uma inédita mobilidade social. O antidesenvolvimentismo que teve como expoente FHC fracassou. Nada havia de moderno em crescer como rabo de cavalo, privatizar o patrimônio público com dinheiro do BNDES e inserir-se de maneira subalterna e entreguista na globalização a um custo socialmente perverso. A inépcia da direita em adotar um discurso em consonância com o estágio porque passa a nação ficou clara nessa disputa eleitoral na performance errática e obscurantista de José Serra que, atônito, procurou alçar temáticas de foro íntimo ao centro do debate político. Terminou na vergonhosa pantomima da bolinha de papel.
O que ora baliza a atuação dos atores políticos, contornando a radicalidade do enfrentamento classe contra classe, são as propostas de universalização de direitos, as quais serão robustecidas já em 2011 graças aos substanciais recursos advindos da aprovação do novo marco regulatório do Pré-Sal. Com a transferência dos fundos públicos excedentes “para os lázaros” e “as filhas dos lázaros”, para evocar a metáfora de uma crônica de Paulo Mendes Campos, e a socialização do poder político através de mecanismos decisórios abertos à participação da sociedade civil, a democracia brasileira adquire enfim uma dimensão social e ativa. Trata-se de um movimento capaz de transformar as políticas de governo em curso em políticas de Estado enraizadas na consciência do povo. Aquilo que aparentava ser um recuo conceitual são passos firmes e seguros adiante, iluminados pela lanterna acesa da justiça distributiva.
Aprofundar esse empenho civilizatório implica na reinvenção do Brasil e da própria América Latina, com a criação e a generalização de valores não-mercantis para o exercício da cidadania e a democratização dos canais de relacionamento entre os governados e os governantes. Pesquisas divulgadas após a emancipadora vitória de Dilma informam que 81% da população acha que o país está no rumo certo, no Nordeste a sensação beira os 90% (Vox Populi, dez/2010). Nesse ambiente otimista, é de prever-se a consolidação da lealdade política dos contingentes de baixíssima renda que carregam sobre os ombros o projeto sintetizado por Lula e, com a cabeça, sufragaram a primeira mulher à presidência. As classes médias tornarão a apoiar o PT ao convencerem-se de que a qualificação dos serviços públicos acarreta resultados positivos para todos e de que a luta pela igualdade não pretende suprimir a liberdade. Encerro remetendo ao princípio: a leitura do estudo feito por Singer.
* Professor de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Em uma importante análise recém publicada, cujos dados foram incorporados à presente reflexão, o cientista político André Singer (Raízes sociais e ideológicas do lulismo, Revista Novos Estudos, nov/2010) debruça-se sobre a evolução do fenômeno que denominou de “lulismo”. O lulismo consistiria no amparo proveniente dos setores empobrecidos da população ao projeto político representado por Luiz Inácio Lula da Silva. Segundo Singer, o próprio PT pende fortemente nessa direção depois de perder o respaldo das classes médias. Ações distributivas do Estado, aliadas à manutenção da estabilidade do país, teriam levado o eleitorado com proventos limitados a dois salários mínimos a migrar para o campo de apoio do ex-retirante nordestino.
A prova dos nove seria a vitória sobre Alckmin, em 2006, com a votação massiva das faixas de baixíssima renda familiar, o “subproletariado”: por definição, os que se inserem no mercado de trabalho sem uma remuneração que assegure a reprodução de suas energias. Se dependesse dos eleitores com rendimento acima de dez salários o petista haveria soçobrado. Note-se que em 1989 a hegemonia exercida pelo PT deu-se “às avessas”, isto é, entre os favorecidos em lugar dos desfavorecidos. A “gente humilde”, reverenciada nos versos poéticos de Vinícius de Moraes e Chico Buarque, tendeu para o histriônico “caçador de marajás”. Coisa que suscitou em Lula uma avaliação normativa que acenava a vontade de ser feliz: “Temos de ir para a periferia, onde estão milhões de pessoas que se deixam conduzir pela promessa fácil de casa e comida”.
Na verdade, adverte Singer, a dita “promessa fácil” era o desaguadouro dos preconceitos instalados na base da pirâmide social. Esta, nos anos 80, opunha-se aos movimentos sociais que ameaçassem desestabilizar a ordem estabelecida e aceitava a intervenção das tropas militares para dissolver as greves (41,6% contra 8,6% dos que recebiam acima de vinte salários mínimos). Os subproletários não se portavam como sujeitos políticos autônomos, inclinando-se a forjar uma identidade pela ótica dos de cima. Em 1994 e em 1998 a tendência repetiu-se, com Fernando Henrique Cardoso mobilizando os trabalhadores sem registro formal ou experiência sindical. Os eleitores lulistas tinham então níveis superiores de escolarização e concentravam-se em bolsões urbanizados e industrializados, no Sul e no Sudeste. Em 2002, quando o prócer da esperança chegou à presidência, a votação também não exprimiu uma polarização do tipo pobres versus ricos.
Mudança de paradigma
O ano da virada é 2006. Frustrada com as denúncias de corrupção do “mensalão”, iniciadas em maio e arrastadas até fins de 2005, as classes médias debandaram para a ponta oposta do espectro ideológico enquanto a sustentação do presidente deslocava-se para as camadas antes refratárias à esquerda. O deslocamento começou com o Bolsa Família em 2003, e avançou com a superação da conjuntura recessiva e o sentimento de que o poder de consumo de produtos tradicionais (alimentos, materiais de construção civil) e novos (celulares, DVDs, passagens aéreas) descortinava melhores condições de vida aos de baixo. Isso evitou o naufrágio político de Lula, apesar da deserção das classes médias e das manchetes sensacionalistas.
Explica-se. Próximo ao pleito, o BF atendia 11,4 milhões de famílias e seu orçamento saltara de R$ 570 milhões para R$ 7,5 bilhões. Com o que Lula obteve 60% dos votos no Nordeste no primeiro turno e 33% no Sul. A diferença correspondeu ao investimento no BF, três vezes maior no Nordeste, aniquilando o conservadorismo dos grotões. Entre os votantes pela primeira vez em Lula ponteavam as mulheres de baixa renda, justo o alvo do programa. Outras variáveis incidiram no processo evidentemente.
A cesta básica que subiu 8,5% e 10,4% em Porto Alegre e São Paulo, locais em que perdeu, e em Recife e Fortaleza minguou para 4% e -3%, capitais de estados em que venceu com 82% e 75% da apuração. A valorização do salário mínimo que dinamizou a economia das cidades de menor IDH e estimulou as vendas do varejo. A expansão do financiamento popular, o crédito consignado, os empréstimos à agricultura familiar, o microcrédito, a eletrificação rural, as cisternas no semi-árido, a bancarização de quem jamais usou cartão nos caixas, etc.
Singer lembra ainda o Benefício de Prestação Continuada que repassa um salário aos idosos ou portadores de necessidades especiais com renda per capita na família até ¼ do salário mínimo. Com o Estatuto do Idoso, aliás, a idade para o recebimento baixou de 67 para 65 anos. O BPC contemplava 2,4 milhões de cidadãos no ano emblemático, com indicativo de que 62% dos que integravam algum plano governamental votariam em Lula.
Em suma, as políticas sociais implementadas no primeiro mandato contribuíram no combate à pobreza, reduziram as taxas de desemprego de 10,2% em 2002 para 8,3% em 2005, baixaram a inflação de 12,5% para 5,6% e cimentaram a posição carismática do operário que reelegeu-se para o ápice da representação política, com uma mudança de paradigma no suporte sócio-regional. O PT prosseguiu influente nos centros urbanos e industriais, com uma bancada de deputados federais concentrada em municípios desenvolvidos. Lula (e Dilma Rousseff, em 2010) tem hoje enorme audiência no Norte e Nordeste, mas o PT arregimenta parlamentares para o Congresso Nacional no Sul e Sudeste majoritariamente.
A liderança de Lula
Alguns analistas interpretam de modo negativo o significado da liderança de Lula. Acusam-no de despolitizar o tema da pobreza e da desigualdade, por não desconstruir o modelo explorador vigente nas relações entre o capital e o trabalho. A marca do lulismo seria a desideologização do antagonismo subjacente ao sistema de dominação capitalista. A permanência de pilares da política macroeconômica oriundas do governo antecessor (metas de inflação, câmbio flutuante, superávit primário nas contas públicas e independência do Banco Central) revigora a tese da direitização condensada no lulismo. O que as ácidas condenações não captam é que a adesão dos setores de baixíssima renda decorreu em boa proporção do clima de harmonia e estabilidade. No imaginário do subproletariado viradas bruscas arriscariam os direitos conquistados a duras penas.
A prudência de Lula, anunciada na Carta aos Brasileiros (em que comprometia-se a manter os contratos) e ilustrada na adoção da Lei de Responsabilidade Fiscal (que inibe investimentos dos entes federados), pavimentou a transição de 35 milhões de corações e mentes para a “classe C” fazendo da necessidade conjuntural uma virtude histórica. Para tanto, foram minadas as principais concessões de FHC ao Consenso de Washington: os juros altos, a liberdade de movimento dos capitais e a contenção dos gastos públicos. Se o percurso de Lula para esconjurar as reminiscências do neoliberalismo foi sinuoso e estampou contradições caricatas ao cotejar-se a gestão de Meireles no BC e Mantega no Ministério da Fazenda, em compensação, abriu uma promissora agenda de inclusão social. Mérito fabuloso, considerando que 50% da força de trabalho está na informalidade e sobrevive com aportes precários. Sem mencionar que, nesse período, o Estado tornou-se um ícone contra toda manifestação de desigualdade social, étnica ou de gênero encarnando os ideais de uma autêntica República.
O que realimenta as críticas é o fato de que a linguagem classista das origens do PT, aos moldes do slogan “trabalhador não vota em patrão”, anteriormente dirigida às camadas intermediárias a exemplo dos operários industriais, dos servidores públicos e dos estudantes universitários perdeu a capacidade de interpelação na sociedade. Os partidos situados à extrema esquerda que insistem em bater na tecla do classismo não conseguem crescer na preferência das maiorias e têm dificuldades de se colocar no cenário político. A absorção e a vocalização de um discurso com ênfase republicana e igualitária, somado ao apelo à democracia participativa, é o que garante ao PT uma interlocução renovada com a cidadania e uma presença forte em distintas órbitas representativas da federação. Para muitos, tal configura um abandono estratégico do socialismo e um insulto à utopia, quando significa tão somente um ajuste tático em face das mutações da realidade política social e econômica em um contexto de afirmação dos procedimentos institucionais.
Um passo atrás, dois à frente
A idéia de modernização do capitalismo, que encantou o senso comum e a grande mídia ao tempo que os carros nacionais eram comparados às carroças de tração animal, não acha mais eco nas multidões que estão vivenciando uma inédita mobilidade social. O antidesenvolvimentismo que teve como expoente FHC fracassou. Nada havia de moderno em crescer como rabo de cavalo, privatizar o patrimônio público com dinheiro do BNDES e inserir-se de maneira subalterna e entreguista na globalização a um custo socialmente perverso. A inépcia da direita em adotar um discurso em consonância com o estágio porque passa a nação ficou clara nessa disputa eleitoral na performance errática e obscurantista de José Serra que, atônito, procurou alçar temáticas de foro íntimo ao centro do debate político. Terminou na vergonhosa pantomima da bolinha de papel.
O que ora baliza a atuação dos atores políticos, contornando a radicalidade do enfrentamento classe contra classe, são as propostas de universalização de direitos, as quais serão robustecidas já em 2011 graças aos substanciais recursos advindos da aprovação do novo marco regulatório do Pré-Sal. Com a transferência dos fundos públicos excedentes “para os lázaros” e “as filhas dos lázaros”, para evocar a metáfora de uma crônica de Paulo Mendes Campos, e a socialização do poder político através de mecanismos decisórios abertos à participação da sociedade civil, a democracia brasileira adquire enfim uma dimensão social e ativa. Trata-se de um movimento capaz de transformar as políticas de governo em curso em políticas de Estado enraizadas na consciência do povo. Aquilo que aparentava ser um recuo conceitual são passos firmes e seguros adiante, iluminados pela lanterna acesa da justiça distributiva.
Aprofundar esse empenho civilizatório implica na reinvenção do Brasil e da própria América Latina, com a criação e a generalização de valores não-mercantis para o exercício da cidadania e a democratização dos canais de relacionamento entre os governados e os governantes. Pesquisas divulgadas após a emancipadora vitória de Dilma informam que 81% da população acha que o país está no rumo certo, no Nordeste a sensação beira os 90% (Vox Populi, dez/2010). Nesse ambiente otimista, é de prever-se a consolidação da lealdade política dos contingentes de baixíssima renda que carregam sobre os ombros o projeto sintetizado por Lula e, com a cabeça, sufragaram a primeira mulher à presidência. As classes médias tornarão a apoiar o PT ao convencerem-se de que a qualificação dos serviços públicos acarreta resultados positivos para todos e de que a luta pela igualdade não pretende suprimir a liberdade. Encerro remetendo ao princípio: a leitura do estudo feito por Singer.
* Professor de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
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