sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Dilma e a sociedade civil



O que os consumidores dos noticiários recebem à guisa de análise e, no caso, balanço do governo, é um “discurso infantilizante”. A dificuldade está em que não se pode fazer a contra-informação com um discurso igualmente simplista e emocional. “É preciso desenvolver uma ecologia da informação para descontaminá-la das mentiras que podem ser fatualmente demonstradas”, propõe o editor do Le Monde Diplomatique, Ignacio Ramonet.

Por Luiz Marques *

Lula registrou as realizações do governo em cartório, enfatizando na documentação sobretudo as conquistas sociais. Como interpretar o gesto do expoente que se despede da Presidência com 83% (DataFolha, dez/2010) de aprovação na opinião pública? Aprovam o gestor mas não conhecem os feitos da gestão, conquanto 80% (idem) declarem aprovação à mesma ? Por que a necessidade de um certificado cartorial ao final do segundo mandato?

O objetivo foi acautelar-se contra uma modalidade de significação, explorada pela grande mídia, para perpetuar uma marca negativa no governo. Como Lula alertou em uma ocasião, se um estudante daqui a duas décadas fizer uma pesquisa nos noticiários atuais chegará à conclusão de que este é o pior governo da história do Brasil. E o mais corrupto.

O périplo presidencial confrontou o “mito”, na acepção do semiólogo Roland Barthes (Mitologias, SP, Difel, 1975), desconstituindo as “falsas evidências” veiculadas entre 2002 e 2010 para formar as “crenças aceitas pela comunidade” (que respondem pelo parco percentual que considera o governo ruim ou péssimo). A versão mítica da Folha de São Paulo, Estadão, Veja e Jornal Nacional, da Rede Globo, reproduzida por outros veículos, assim, encontrou um contraponto simbólico. Empate técnico, já nos descontos.

Folha de São Paulo

A guerra de posição, que travestiu-se em guerra de movimento no frustrado impeachment de Lula, não acabou com a vitória da primeira mulher alçada ao Palácio do Planalto. Dia seguinte, quem deveria zelar pela retidão no jornalismo, começou a inventariar as “promessas” que aquela herdaria, omitindo das manchetes o que as matérias revelavam: obras de infraestrutura em andamento, aliás, muitas concluídas. O ápice da manipulação viu-se em um caderno especial que superou as maledicências usuais sobre os oito anos do ex-retirante nordestino (FSP, “Crescimento, avanços sociais e escândalos”, 19/12/2010).

Conforme salientou Paulo Henrique Amorim, no blog Conversa Fiada, a chamada de capa trazia uma ressalva: “Lula entrega país melhor, mas imposto é recorde”. A função do “mas” consistia em adjudicar um predicado pejorativo à marca do governo. O jornal fazia-se passar pela “consciência” da população ao trazer à tona o tema com o qual os conservadores procuram rearticular-se, depois do profundo descrédito em que caiu o modelo gestionário ancorado nas perorações sobre o “Estado mínimo” e os “ajustes fiscais”. Com pertinência, Amorim alertou ainda para a ausência de menções às riquezas do Pré-Sal, garantidas pela substituição do regime de concessão para o de partilha, e à operação de subscrição de ações da Petrobrás, a maior da história do capitalismo. Quanto ultraje sem rigor!

Valeria a pena mencionar o que se desfiou também sobre a política externa pós-FHC, altiva e soberana, um dos muitos sucessos de que pode orgulhar-se o povo brasileiro, enfeixada em letras garrafais com um título depreciativo “Ambição política definiu o tom da diplomacia”. Mais subjetiva, impossível. Lê-se então que “a troica formada pelo presidente Lula, pelo chanceler Celso Amorim e por Marco Aurélio Garcia, assessor do Planalto, mudou a ênfase da política externa brasileira”, o que a família Frias lamenta obviamente.

Estultices

Entre outras estultices, o colunista de plantão atribuiu a alteração de foco à “chegada ao poder do PT, com histórico de desconfiança em relação aos Estados Unidos”. Nenhum pejo em assumir os interesses geopolíticos dos EUA, e nenhuma compreensão sobre a importância da integração latino-americana e o papel estratégico do Mercosul em uma economia globalizada. Não à toa, a cobertura jornalística da recente reunião de cúpula do Mercosul, na trinacional Foz do Iguaçu, foi pífia quando não boicotada. Sem um comentário sobre as políticas acordadas pelo bloco para a criação de um Estatuto de Cidadania, que assegura a livre circulação na região em vez da perseguição aos imigrantes como ocorre no hemisfério Norte. O Sul não entra na pauta dos proprietários da opinião pública.

O “mensalão” é apontado como um divisor de águas da era Lula, dando de barato a sua veracidade ainda por provar-se, mas nada se adita acerca das medidas implantadas pelo governo para combater a corrupção estrutural no aparelho estatal. Não obstante, iniciativas importantes foram tomadas pelo governo no período, como a “transformação da Corregedoria-Geral da União em Controladoria-Geral da União, dando a ela maior autonomia institucional e status de ministério, e a maior autonomia da Polícia Federal na investigação do crime organizado”, sublinha o cientista político Fernando Filgueiras (Carta Capital, 22/12/2010). A ponto de a CGU tornar-se uma referência reconhecida internacionalmente na luta anticorrupção, com sobras de elogios ao governo.

O que os consumidores dos noticiários recebem à guisa de análise e, no caso, balanço do governo, é um “discurso infantilizante”. A dificuldade está em que não se pode fazer a contra-informação com um discurso igualmente simplista e emocional. “É preciso desenvolver uma ecologia da informação para descontaminá-la das mentiras que podem ser fatualmente demonstradas”, propõe o editor do Le Monde Diplomatique, Ignacio Ramonet. Esse é o sentido da ida de Lula até um cartório, a fim de oficializar os volumes que relatam avanços em todas as áreas administrativas: demonstrar com fatos que a engrenagem mistificadora da mídia, afora não divulgar com objetividade e não contextualizar as ações governamentais, escondeu ao longo dos anos a sua repercussão emancipadora na vida social, política, econômica e cultural do Brasil. Ah se meu fusca falasse!

Resgate da palavra

Por outro lado, ao autenticar os sucessos sociais alcançados com a implementação de políticas públicas e controles transparentes sobre o erário, “como nunca antes…”, Lula resgatou a autoridade da palavra em uma sociedade movida pela instantaneidade das imagens. Dinâmica que induz a posicionamentos irrefletidos, ao gosto momentâneo das massas. A dominância das imagens desemboca no que o filósofo Paul Virilio (Página 12, 20/11/2010), ao acusar o culto da velocidade, batizou de “democracia reflexa”: bloqueia o pensamento, o cotejo de argumentos e inviabiliza a interlocução entre pares.

A imagética impactante do espetáculo provoca reações que levam ao eclipse da razão, e não a uma reflexão para fundamentar com juízos autônomos um parecer frente às questões de interesse comum. Lula, ao contrário, lançou mão da escrita para provar o que fez e auxiliar a apreensão consciente por parte dos concidadãos. Como na música, ilustra Virilio, é necessário achar o ritmo certo para participar e fortalecer o processo democrático.

O ritmo frenético das críticas magnificadas pela lente de aumento da mídia empresarial, acompanhadas por fotos ou filmagens que mobilizem estereótipos e preconceitos (tipo mulher fumando charuto), tem sido a regra para minar as bases sociais do governo junto às classes médias. O que vale é a exposição sensacionalista, sem a obrigação de apresentar uma comprovação às acusações e insinuações. O alvo é a reputação dos governantes. Tudo serve de pretexto, do custo de produção da festa de posse ao salário dos guarda-costas. Não é a qualidade das imputações o que importa, é a quantidade.

Repolitizar a política

A enxurrada de suspeições, reiteradas dia após dia, gera um ambiente de desgaste político e moral impedindo o trabalho de discernimento individual e coletivo. A marca, finalidade última da publicidade, é consequência da solapa. Com o que a mídia traça a linha de ataque a ser seguida pelos partidos de oposição. Em lugar de destacar as concepções em disputa sobre o Estado e os projetos propugnados por cada campo político-ideológico para a nação, estimulam-se as avaliações e sensações centradas na moralidade. Nas pegadas dos ultraconservadores estadunidenses dedicam-se à despolitização da política.

É bem verdade que a extensão da banda larga no território nacional, propiciando um acesso mais amplo à internet, ajuda a conter a sabotagem sobre as realizações das administrações progressistas nas distintas esferas federativas, bem como as distorções deliberadas que transformam o significado dos fatos em seu oposto. Especialistas são unânimes em afirmar que a diversificação das fontes informativas retira poder aos monopólios da comunicação, o que não implica minimizar a influência que desfrutam (Venício Lima, Carta Maior, 21/12/2010). De todo modo, as redes globais contribuem para a repolitização da política, tornando-se instrumentos que interagem com os movimentos sociais e estimulam a emergência de novos atores sociais. A entrevista de Lula aos blogueiros já mostrou que existe vida além da mediocridade da imprensa marrom.

Se os movimentos reivindicativos clássicos vinculavam-se às categorias profissionais de trabalhadores, a mobilização que acontece via internet remete a determinados códigos culturais de ideias e valores. O desafio está em fazer da defesa do governo Dilma uma ideia aglutinadora na internet e, da liberdade de expressão, um valor indissociável da luta contra os monopólios da voz e da imagem. A censura ao Wikileaks, que não mereceu contestação dos subsidiários do capital midiático, indica o desprezo do capitalismo com os princípios democráticos e republicanos. Seu apreço restringe-se à acumulação e ao golpismo.

Interação permanente

A intenção da mídia, por ora em marcha lenta, será a de provocar uma crise de identidade no governo. Caberá aos partidos políticos de sustentação da esperança liderada agora por Dilma abrirem-se para uma interação com a juventude, as mulheres, os negros, os social-ambientalistas, os defensores dos direitos humanos. Empreendimento que será potencializado pelos governantes através de espaços dialógicos deliberativos envolvendo os setores sociais organizados. Quanto maior a participação popular, maiores os atrativos para a formação de redes comunicacionais que conjuguem o desejo de transformações profundas na realidade. A internet só é um mural passivo de anúncios para os burocratas.

A reforma tributária e a reforma política, prioridades em 2011, não podem ficar circunscritas às negociações palacianas e aos corredores parlamentares. Ambas mexem com disposições refratárias de peso. Acabar com a regressividade da matriz tributária e taxar as grandes fortunas é essencial à obtenção de recursos financeiros que respaldem a continuidade e o aprofundamento das políticas públicas de distribuição de renda. Instituir o financiamento público de campanha e o voto em lista é limitar a ingerência do poder econômico nas eleições. Tais iniciativas modificariam a cultura política do país, jogando luz sobre os programas partidários e também sobre os laços classistas das agremiações.

Mas não se materializarão sem apoio massivo nas ruas e nas redes. A internet equivale, hoje, ao que foram a fábrica fordista e as portentosas corporações sob hegemonia industrial, ontem. Fazer com que seja uma ferramenta política de solidariedade e de uma militância criativa em favor das mudanças históricas em curso no Brasil e na América Latina, nisso reside a tarefa de todas as mentes e todos os corações comprometidos com a agenda civilizatória que sucedeu a barbárie neoliberal. Lidar com esse novo parâmetro sociotécnico requer uma quebra de hierarquia, uma aceitação da diferença, uma abertura para o mal-entendido que reanima a conversação e descortina horizontes imprevistos. O futuro exige essa descontração política, livre de esquematismos burocráticos.

Marco regulatório

Os responsáveis pela opacidade que encobre os atos políticos da esquerda trocam a liberdade de expressão pela ditadura da ocultação, negando o direito à informação. Urge uma mobilização da sociedade civil (o verdadeiro campo de batalhas da luta de classes) para fazer uma revisão do marco regulatório da organização e exploração dos serviços de telecomunicações e radiodifusão, e coibir a propriedade cruzada dos meios de comunicação.

O passo inicial foi dado com o “Seminário Internacional Comunicações Eletrônicas e Convergências de Mídias”, proposto pela SECOM. A estrada é longa. Para percorrê-la, não basta a vontade política do governo. A própria opinião pública tem de tomar para si essa bandeira, manifestar-se a respeito nos grêmios estudantis, associações comunitárias, assembleias sindicais, etc, para que se converta em uma aspiração geral. A Argentina deu o exemplo, sua experiência deve ser socializada. O que está em jogo é a democracia. Para que Dilma não tenha de repetir o périplo de Lula a um cartório ao final do mandato. Do Sul21

* Professor de Ciência Política da Ufrgs

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