sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

O Brasil pode acertar as contas com a história


Maria Jandyra Cavalcanti Cunha


“Para virar a página, é preciso lê-la” -Baltazar Garzón

Na terça-feira, 14 de dezembro de 2010, duas semanas antes da troca presidencial no Palácio do Planalto, o Brasil foi condenado por crimes praticados durante a ditadura militar que sufocou o país entre 1964 e 1985. É o último constrangimento internacional do Governo Lula e o primeiro do Governo Dilma.

Na palestra realizada em outubro passado na Universidade de Brasília (UnB), numa mesa composta pelos ministros Luiz Paulo Barreto (Justiça) e Paulo Vanucchi (Direitos Humanos), Baltasar Garzón emitiu um alerta sobre a iminente condenação do Brasil. O juiz espanhol é um especialista sobre o longo braço da lei, que atravessa os tempos e as fronteiras, em busca da justiça para crimes imprescritíveis de lesa humanidade, como a tortura e os maus-tratos a presos políticos.

Foi Garzón quem alcançou o general Augusto Pinochet em Londres, em 1998, numa ousada ação judicial que punia os responsáveis pelo desaparecimento de cidadãos espanhóis abatidos pela sangrenta repressão que se instaurou no Chile em 1973, após a derrubada do governo constitucional de Salvador Allende. Pinochet amargou 503 dias de uma inédita, constrangedora prisão domiciliar na capital britânica, até ser devolvido ao seu país, onde morreu oito anos depois, aos 91 anos, exatamente a 10 de dezembro de 2006 – por ironia da história, o Dia Internacional dos Direitos Humanos.

Agora, por unanimidade, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) decidiu reconhecer a responsabilidade do Estado brasileiro na prisão, tortura, morte e desaparecimento forçado de 70 camponeses e guerrilheiros caçados pelas forças militares brasileiras nas matas da região do Araguaia, no sul do Pará, entre os anos de 1969 e 1974.

Com sede na capital costa-riquenha, San José, a CIDH é um órgão judicial autônomo que aplica e interpreta a Convenção Americana de Direitos Humanos. O Brasil é signatário dessa convenção – um detalhe que parece ter ficado tão esquecido pelas autoridades brasileiras quanto as atrocidades cometidas, entre 1971 e 1974, em três fases distintas da luta no Araguaia a cargo de cinco mil soldados (entre eles fuzileiros navais, tropas da infantaria, unidade de elite da guerra na selva e batalhões da brigada de paraquedistas), reunidos para combaterem não mais que 80 guerrilheiros do PCdoB embrenhados na densa floresta do Bico do Papagaio, nas proximidade da cidade de Marabá.

A sentença emitida contra o Brasil estabelece que o Estado brasileiro violou o direito à justiça, no que se refere à obrigação internacional de investigar, processar e sancionar os responsáveis pelos desaparecimentos causados pela repressão do regime militar. A violação ganhou roupagem legal com a chamada Lei da Anistia, promulgada em agosto de 1979 ainda no mandato do general João Figueiredo (1979-1985), o último do ciclo de cinco generais-presidentes que tutelou o país durante 21 anos.

Em agosto de 2008, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ingressou no Supremo Tribunal Federal (STF) com uma ação que solicitava a revisão da Lei da Anistia, cassando os seus benefícios sobre os agentes da repressão acusados de crimes de tortura, desaparecimento e morte e, ainda assim, anistiados pelo próprio regime a que serviram. “Esta ação da OAB visa evitar que os torturadores fiquem a salvo da história”, justificou o advogado Cezar Britto, presidente nacional da Ordem.

O procurador-geral da República, Roberto Gurgel, posicionou-se contrário à revisão. Alegou que no final da década de 1970, na campanha por uma ‘anistia, ampla, geral e irrestrita’, a OAB tinha “perfeita consciência do contexto histórico [da proposição da Lei] e de suas implicações”. O procurador-geral parece ignorar que a anistia, na verdade, não foi produto de um consenso nacional e, na verdade, refletia uma desigual correlação que beneficiava a força da ditadura contra a vontade da maioria do povo brasileiro.

A Lei da Anistia nasceu nos gabinetes do Congresso Nacional em uma comissão mista onde o partido governista, a Arena, tinha um folgado controle sobre 13 das 20 cadeiras. No Senado, o partido da oposição, o MDB, detinha apenas 25 cadeiras contra 41 da Arena — 21 delas carimbadas popularmente como “biônicas”, vagas de senadores sem voto e escolhidos de acordo com a fidelidade de seus ocupantes à vontade dos quartéis.

Apesar de toda a pressão militar do regime, a lei de anistia cuidadosamente desenhada pelos militares passou apertada na Câmara dos Deputados, vitoriosa por uma maioria de apenas cinco votos: 206 da Arena contra 201 da oposição, engrossada no último momento pela deserção de 15 arenistas liberais, rebelados diante da ordem unida do Palácio do Planalto.

Ao contrário do que imagina o procurador-geral, portanto, a Lei de Anistia de 1979 não foi amplamente debatida pela sociedade, sequer motivo de uma discussão popular. Com filigranas jurídicas e imposições políticas claras, o regime estabeleceu a figura dos “crimes políticos ou conexos”, invenção de texto que permitiu que torturados e torturadores tivessem o mesmo benefício de uma lei feita de cima para baixo por um regime indulgente com os seus próprios crimes. Sem força parlamentar para reagir, a oposição aceitou a solução jurídicamente equívoca, que permitia a volta de exilados à custa da impunidade dos agentes do Estado que abusaram da força.

No dia 29 de abril de 2010, o STF teve a oportunidade de remover esse entulho jurídico, acatando a ação corretiva da OAB que retirava a anistia das mãos ensanguentadas dos torturadores. Mas o tribunal perdeu sua chance. Acompanhando o relatório do ministro Eros Grau, ele próprio um ex-preso político submetido a maus tratos no DOI-CODI, o centro de tortura dos comandantes militares—, o Supremo Tribunal rejeitou o pedido da OAB por sete votos contra dois — os ministros Ricardo Lewandowski e Ayres Britto. “O torturador não comete crime de opinião, portanto, não executa um crime político. É um monstro, um desnaturado, um tarado”, explicou, sem convencer seus pares, o ministro Ayres Britto.

A falta de coragem da mais alta corte de justiça do país tromba, agora, com uma decisão incontrastável de um tribunal continental a que o Brasil, por força de tratado, é obrigado a acatar. A revisão 31 anos depois de uma anistia feita sob medida para proteger criminosos — e, por definição, injusta — foi colocada sob a mira da consciência jurídica internacional, forçando a comparação entre o Brasil impune e os países vizinhos cada vez mais ciosos na busca da Justiça contra seus torturadores.

Um fato agrava ainda mais a situação do STF e do Brasil: a partir de janeiro, a cadeira de presidente será ocupada por uma ex-guerrilheira que passou pelos porões da ditadura, onde sangrou 22 dias sob inclemente tortura no centro repressivo paulista da ‘Operação Bandeirante”, a Oban, a sigla que antecedeu no final dos anos de 1960 ao notório DOI-CODI. Dilma Rousseff carrega no corpo e na memória a experiência vivida de tempos e homens que, hoje, colocam o Brasil no banco dos réus. Em São Paulo, o Ministério Público Federal acaba de abrir um processo contra três militares do Exército e um da PM envolvidos diretamente na tortura. Um dos depoimentos usados pela acusação é de uma presa política chamada Dilma Rousseff.

Com a decisão da corte judicial da OEA, o Brasil poderá enfim acertar suas contas com a história. Afinal, ao contrário de seu inocente antecessor, Dilma Rousseff nunca poderá dizer que não sabia…

Linguista, professora do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade de Brasília (UnB)

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