Nikelen Witter*
Em seu excelente livro Paisagens da História: como os historiadores mapeiam o passado, John Lewis Gaddis se utiliza de uma imagem muito interessante para ilustrar sua ideia de futuro e passado. Gaddis lembra a cena final do filme Shakespeare Apaixonado, a qual é enlaçada com o início de Noite de Reis (encantadora comédia do autor elisabethano). Na cena, a heroína Viola, após um naufrágio, chega a um lugar desconhecido. A cena mostra a personagem caminhando para além da praia, em direção a um bosque fechado, no qual ela não sabe o que irá encontrar e além do qual ela sequer pode ter relances do que irá ver. É um território totalmente novo. É o desconhecido, “cheio de perigos, mas também de infinitas possibilidades”.
Embora esta seja uma imagem naturalmente aplicável a qualquer futuro, nos acostumamos a driblar essa angústia imaginando que, ao menos uma parte desse território está mapeada, mesmo que ainda não trilhada. Contudo, há momentos em que, como Viola, tudo que vemos é um bosque de árvores densas que mal nos permitem imaginar o futuro. E o “confronto com um território não mapeado”, diz Gaddis, “seja no teatro, na história ou nas questões humanas, produz algo semelhante a essa sensação de pasmo”.
Tenho pensado assim sobre o que, a partir da última semana, vem sendo nomeado de o episódio do WikiLeaks. O monumental vazamento de informações da intercomunicação dos escritórios diplomáticos norte-americanos sacudiu o mundo. Os Estados – em especial os E.U.A. – perderam sua compostura, se viram frágeis, nus e reagiram com a disposição de quem está sob ataque inimigo. A arma deste inimigo não é outra que não a verdade e, ao que parece, esta é a pior arma que se pode usar contra qualquer Estado.
Sendo assim, gostaria de aprofundar um pouco essa análise.
Primeiro, em termos do conteúdo que foi revelado. Ora, como muitos jornalistas e articulistas já apontaram, ainda não se viram grandes surpresas no teor das informações vazadas. O que não se sabia, era presumido, o que não era presumido, era imaginado. Mesmo que algumas das informações sejam chocantes, seria ingenuidade acreditar que as comunicações entre os escritórios diplomáticos fossem muito diferentes do que se tem visto. Como, por exemplo, não levassem em conta as características e os interesses pessoais dos líderes com quem estes diplomatas se relacionam. As avaliações de caráter – mesmo que algumas sejam pueris, como reveladas por certos documentos – são absolutamente coerentes com o tipo de informação que, historicamente, o mundo diplomático precisa gerir. Afinal, a diplomacia é filha da época moderna e se comporta como tal. Mesmo que tenha andando em direção à mesa de negociações, seria uma postura muito inocente imaginarmos que todos os Estados abandonaram o uso da espionagem – seja econômica ou pessoal. Se no passado os chefes de Estado chegaram a manter redes de prostituição para ter nas mãos os líderes amigos e inimigos – Richelieu, primeiro-ministro de Luís XIII, soube fazer bom uso disso – por que acreditar que cartões de crédito ou a idade das companhias femininas dos líderes modernos não constariam nos interesses de uma nação que se pretende hegemônica, como é o caso dos EUA?
Apesar do choque de vermos essas coisas escancaradas, elas não devem surpreender realmente e estão longe de serem as que importam.
O conteúdo revelado também tem apontado para as manipulações políticas mais graves e para o comportamento norte-americano, num momento, se posicionar como campeão da “liberdade”, em outro, sustentar golpes políticos e ditatoriais. Novamente, qual a surpresa? Crescemos sabendo que a grande nação do norte sempre honrou a prerrogativa de defender, a qualquer preço, os seus interesses no mundo. Isso não é novidade desde a Doutrina Monroe.
Assim, por mais interessante, indigesto e perturbador que seja o conteúdo dos documentos divulgados pelo WikiLeaks, não acho que todo problema desse episódio resida neles.
O problema então estaria no site que fez as revelações? Ou na forma como o seu dono, o australiano Julian Assange, conduziu sua atividades? Ou, no que se tem falado ainda muito pouco, naqueles que vazaram os documentos para Assange e seus associados? Ou mesmo, o problema poderia estar no que ainda não foi revelado e que, pela reação de alguns países, pode ser muito, mas muito mais constrangedor e desestabilizador?
A mim parece, porém, que o grande problema vem de uma questão de fundo. Uma questão que põe em cheque a história da formação dos Estados Nacionais e nos joga num território desconhecido, inexplorado, sobre o qual sabemos pouco, quase nada. E, em especial, sobre o qual ainda poucos podem fazer previsões.
Essa questão está profundamente relacionada com o que, ao longo da chamada Idade Moderna, veio a ser conhecido como Razão de Estado. O primeiro grande formulador da ideia (embora não do termo) foi Maquiavel e um de seus mais hábeis usuários foi o já citado Cardeal Richelieu. Ambos percebiam com clareza o que Norberto Bobbio em seu Dicionário de Política definiu genericamente como: a “tradição afirma que a segurança do Estado é uma exigência de tal importância que os governantes, para garanti-la, são obrigados a violar normas jurídicas, morais, políticas e econômicas que consideram imperativas, quando essa necessidade não corre perigo”. Ora, diante desta formulação, não é de estranhar que um país como os EUA – que parece considerar-se constantemente sob ataque – as “razões de Estado” apareçam com tal evidência nos documentos vazados pelo WikiLeaks.
É aí que vejo o X da questão. As “razões de Estado”, como concebidas, precisam de segredo, pois é difícil violar normas jurídica, éticas e morais em nome da “segurança de um país” tendo como assistência o mundo todo. Revelações como as do WikiLeaks já foram explosivas no passado, mas, agora, seu potencial é multiplicado por milhões e milhões de internautas no mundo todo. Logo, pode-se controlar esta ou aquela parte da mídia, este ou aquele indivíduo, pode-se prender Julian Assange, mas não pode parar o que ele e seus associados colocaram em movimento, não se pode controlar uma comunidade mundial. Esse é o impressionante fato com o qual os Estados contemporâneos se assustam e com o qual não sabem lidar.
Enquanto a globalização serviu unicamente aos interesses do capital internacional e de seus defensores, ela foi considerada boa, muito boa. Mas agora as coisas parecem ser diferentes. Afinal, como lidar com a globalização quando ela atinge as consciências pessoais? Como lidar com a globalização quando ela forma comunidades planetárias que extrapolam territórios nacionais? Como lidar com pessoas que, ao mesmo tempo, são cidadãos de seus países, mas também do mundo? Como lidar com gente que ou desconhece as chamadas “razões de Estado”, ou as questiona, ou ainda, francamente as nega? Como opor os escusos “interesses” nacionais às exigências de transparência, ética e justiça clamada por essa comunidade sem fronteiras?
Até é possível imaginar que, com o esforço que vem sendo feito, o episódio vá ser sufocado, colocado em segundo plano. É crível que algo assim aconteça, embora se espere que não. Porém, o fato é que uma estrutura muito significativa foi quebrada. Um tipo de unidade, um tipo de lógica na qual os interesses de um país (o meu ou o de outra pessoa) eram o que havia de mais importante. Em seu lugar se delineia outra coisa, outro território, outro tipo de mundo político internacional. Uma comunidade mundial? O interesse da humanidade? Um novo tipo de democracia? Ou nada tão otimista assim. Eu realmente não sei. As possibilidades abertas não só pelo vazamento dos documentos, mas pelo seu amplo questionamento e condenação são infinitas. E, quando isso ocorre, lembra Gaddis, não há como se impor regras. Parafraseando a Viola de Shakespeare, eu olho ao meu redor e só consigo perguntar:
– Que lugar (novo), amigos, é este?
* Professora e historiadora
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