Na última semana, o jornal O Estado de S.Paulo publicou uma matéria na qual dizia que o governo havia desistido de estabelecer limites à propriedade cruzada. Para quem não sabe, propriedade cruzada é quando o mesmo grupo controla diferentes mídias, como TV, rádios e jornais.
Por João Brant, no Observatório do Direito à Comunicação
Por João Brant, no Observatório do Direito à Comunicação
Na maior parte das democracias consolidadas, há limites a essa prática por se considerar que ela afeta a diversidade informativa. No Brasil, não existem limites, e justamente por isso esse é um dos temas em pauta no debate sobre uma nova lei para os serviços de comunicação audiovisual.
Aparentemente não foi bem isso que o ministro Paulo Bernardo afirmou, o que significa que o jornal resolveu dizer o não dito por conta própria. Curioso é que o mesmo jornal afirma regularmente ser a favor de medidas anticoncentração da mídia. Seria então um alerta às forças democráticas? Durante o último processo eleitoral, o Estadão declarou em editorial estar “de pleno acordo” com a necessidade de se discutir os limites à propriedade cruzada. E ainda: “não é de hoje que o Estado critica a concentração da propriedade na mídia e as facilidades para que um punhado de grupos econômicos controle, numa mesma praça, emissoras e publicações”.
Em 2003, o jornal fez mais de um editorial criticando a “cartelização da mídia” nos EUA, que iria surgir como resultado de medidas propostas pela FCC (Federal Communications Commission), órgão regulador das comunicações por lá. Aquele processo (e a revisão seguinte, de 2007) resultou num certo afrouxamento das regras norte-americanas, embora as mudanças mais liberalizantes propostas pela FCC tenham sido barradas pelo Poder Judiciário e pelo Congresso – com votos contrários inclusive dos republicanos –, após uma grande mobilização popular. Mas, afinal, por que esses limites são tão importantes a ponto de milhões de pessoas, em um país então governado por George W. Bush, terem se mobilizado para defendê-los?
Por quê
Historicamente, são duas as razões para se limitar a concentração de propriedade nas comunicações. A primeira é econômica, e pode ser entendida como tendo a mesma base das leis antitruste. A concentração em qualquer setor é considerada prejudicial ao consumidor porque gera um controle dos preços e da qualidade da oferta por poucos agentes econômicos, além de desestimular a inovação. Em alguns mercados entendidos como monopólios naturais (como a de transmissão de energia, de água ou telecomunicações), a concentração é tolerada, mas para combater seus efeitos são adotadas diversas medidas que evitam o exercício do 'poder de mercado significativo' que tem aquela empresa.
O segundo motivo tem mais a ver com questões sociais, políticas e culturais. Os meios de comunicação são os principais espaços de circulação de ideias, valores e pontos de vista, e portanto são as principais fontes dos cidadãos no processo diário de troca de informação e cultura. Se este espaço não reflete a diversidade e a pluralidade de determinada sociedade, uma parte das visões ou valores não circula, o que é uma ameaça à democracia. Assim, é preciso garantir pluralidade e diversidade nas comunicações para garantir a efetividade da democracia.
Uma das maneiras mais efetivas de se conseguir pluralidade e diversidade de conteúdos é garantindo que os meios de comunicação estejam em mãos de diferentes grupos, com diferentes interesses, que representem as visões de diferentes segmentos da sociedade. Ainda que a pluralidade na posse dos meios de comunicação não reflita necessariamente a pluralidade do conteúdo veiculado, na maior parte dos exemplos estudados essa correlação é positiva, especialmente no tocante à diversidade de ideias e pontos de vista (no caso da diversidade de tipos de programa, não necessariamente).
Como
Limites à propriedade cruzada tem a ver fundamentalmente com essa segunda justificativa. Países como Estados Unidos, França e Reino Unido adotam esses limites por entenderem que a concentração de vozes afeta suas democracias. É importante notar que nesses países esses limites são antigos, mas têm sido revistos e, via de regra, mantidos – ainda que relaxados, em alguns casos. Mesmo com todos os processos liberalizantes, revisões regulares de seus marcos regulatórios e convergência tecnológica, esses países seguem mantendo enxergando a propriedade cruzada como um problema.
O que aconteceu nas últimas décadas foi uma complexificação dos critérios de análise adotados, incluindo alcance e audiência como critérios definidores. Os Estados Unidos, por exemplo, tinham uma regra clássica de limite à concentração cruzada em âmbito local: nenhuma emissora poderia ser dona de um jornal que circulasse na cidade em que ela atua.
Essa regra foi levemente flexibilizada em 2007, quando se passou a levar em conta o índice de audiência das emissoras e o número de meios de comunicação independentes presentes naquela localidade. Mas essa flexibilização só vale para as vinte maiores áreas de mercado dos EUA (são 210 no total) e só acontece se o canal de TV não está entre os quatro mais vistos e se restam pelo menos oito meios independentes. Dá para ver, portanto, que a flexibilização é a exceção, não a regra.
Na França, há regras para propriedade cruzada em âmbito nacional e em âmbito local. Em cada localidade, nenhuma pessoa pode deter ao mesmo tempo licenças para TV, rádio e jornal de circulação geral distribuídos na área de alcance da TV ou da rádio. No Reino Unido, nenhuma pessoa pode adquirir uma licença do Canal 3 (segundo maior canal de TV, primeiro entre os canais privados) se ela detém um ou mais jornais de circulação nacional que tenham juntos mais que 20% do mercado. Essa regra vale também para o âmbito local. No caso britânico, há outras regras que utilizam um complexo sistema de pontuação para sopesar o impacto de licenças nacionais e locais de TV e rádio e jornais de circulação local e nacional.
Como se vê, nem com as mais agressivas tentativas de liberalização conseguiu-se chegar perto da situação brasileira, que simplesmente não prevê limites à propriedade cruzada. Exemplos como o da Globo no Rio de Janeiro, que controla a principal TV, as principais rádios e o único jornal da cidade voltado ao público formador de opinião (sem contar TV a cabo, distribuidora de filmes etc.) são completamente impensáveis em democracias avançadas. Assim, independentemente da fórmula que irá adotar, se o Brasil quiser aprovar um novo marco regulatório para o setor que seja de fato fortalecedor da diversidade informativa, e portanto de nossa democracia, essa questão não pode estar ausente. A despeito do que digam Estados e Globos.
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