Professor de filosofia da USP entende que ex-presidente é capaz de despertar reações de amor e ódio e vê crescimento da internet como fórum para injúrias, embora ressalte caráter minoritário de intolerância explícita
São Paulo – Bastaram poucas horas após a divulgação de que Luiz Inácio Lula da Silva teria de se tratar de um tumor na laringe para que aflorassem nas redes sociais e em comentários de leitores em páginas da internet manifestações contra o ex-presidente da República. Alguns usuários passaram a promover uma campanha para que o petista fosse buscar tratamento no Sistema Único de Saúde (SUS).
“A internet entrou em um processo de radicalização de opiniões. Muitas vezes ela não serve como um fórum de debates, ela serve como um caso de injúrias”, afirma Vladimir Safatle, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP). Em breve entrevista por telefone, ele aponta que Lula é uma figura capaz de despertar amor e ódio por conta do papel inegavelmente importante que tem na história brasileira.
Sem entrar no mérito dos comentários específicos contra o ex-presidente, Safatle lembra que há um histórico de violência na direita brasileira, “que é muito ressentida com a presença da esquerda na vida política nacional”.
No sábado, em conversa na rádio CBN, a colunista de política Lucia Hippolito culpou Lula pela doença. “Não é surpresa tendo em vista o abuso da fala do presidente, que jamais teve um exercício de fonoaudiologia, e estava no palanque todo santo dia, tabagismo, alcoolismo”.
Em um vídeo colocado no YouTube, o usuário identificado como Dâniel Fraga afirmou: “Desejo o mal. Espero que continue fumando suas cigarrilhas, seus charutos cubanos, que esse câncer volte com força total e que ele morra”. O presidente da Juventude do PSDB de Santo André, no ABC paulista, João Antonio Cardoso, discordou dos que propagaram esta visão: “Não tô feliz nada. Se essa porra morrer vai virar mártir e brasileiro idiota vai votar no PT por causa dele”.
O episódio contra Lula ocorreu um ano após as manifestações, também nas redes sociais, de intolerância contra nordestinos. Após a vitória de Dilma Rousseff nas eleições presidenciais contra o tucano José Serra, floresceram em comentários as visões de que os eleitores do Nordeste haviam votado de maneira clientelista. A declaração postada pela estudante de Direito Mayara Peluso acabou por sintetizar o teor das mensagens. “"Nordestisto (sic) não é gente. Faça um favor a SP: mate um nordestino afogado!”.
Para Safatle, nada que surpreenda. “Existe um setor da vida nacional que se aproveita dos sentimentos mais arcaicos para expressar sua incompreensão completa com o que está em jogo na sociedade brasileira.”
Confira a seguir trechos da entrevista concedida à Rede Brasil Atual.
Quais as motivações para os comentários contra o ex-presidente Lula?
Tem duas coisas interessantes para se pensar. Com o advento da internet, o que aconteceu em larga medida foi que o conjunto de opiniões que são extremamente preconceituosas, que muitas vezes beiram o racismo, a xenofobia e coisas da mesma natureza, foram tendo o direito de cidadania. Porque a internet garante o anonimato das opiniões. Pode-se fazer uma apologia do nazismo em um comentário que isso não vai redundar em nada porque você tem várias maneiras de aparecer como anônimo. Claro que tem sempre esse tipo de mediação feito pelos servidores, mas a internet entrou em um processo de radicalização de opiniões. Muitas vezes ela não serve como um fórum de debates, ela serve como um caso de injúrias.
Nesse caso, além disso, o ex-presidente Lula é uma personalidade que desperta amor e ódio. Fenômenos dessa natureza acabam permitindo que esses sentimentos contrários aflorem.
Por que Lula desperta essa relação de amor e ódio?
Queira ou não, é uma das figuras mais importantes da história brasileira desde 1945. Independente do julgamento que se possa faz do presidente Lula, esse aspecto é inegável. Foi o único presidente eleito na história do Brasil que conseguiu eleger seu sucessor de maneira democrática. Isso demonstra, entre outras coisas, uma posição muito privilegiada dele no cenário político brasileiro. Daqui para a frente, muito do que acontece vai ser em função dele. De como se posicionar frente a Lula, do pós-Lula, questões dessa natureza. Não me parece estranho que seja um personagem que desperta tanta controvérsia de opiniões.
A origem humilde e a vida sindical alimentam essa parcela do ódio?
É difícil dizer porque não vi o perfil desses tipos de comentários. O que se sabe é que há um histórico de violência não só em relação a ele, mas à esquerda em geral, por parte de setores da vida nacional que colocam todos no mesmo balaio e fazem afirmações das mais radicais. Basta ver os posts sobre questões ligadas à ditadura militar, que são da ordem do medonho, dizendo que eram bandidos, que tinham de ser torturados. Me parece que é mais uma das manifestações muito recorrentes, cada vez mais por conta da internet, de uma certa parcela da direita brasileira que é muito ressentida com a presença da esquerda na vida política nacional.
Coincidentemente, isso ocorreu um ano após as manifestações contra nordestinos nas redes sociais.
É a vida política nacional no seu nível mais raso. Acredito que esse tipo de opinião, pelo menos de maneira explícita, é veiculada por uma minoria, que grita muito, mas pelo menos não é muito grande – isso de maneira explícita. Aquilo decorreu da visão de que o Brasil havia sido dividido eleitoralmente, o que era uma meia verdade porque as votações do PT foram expressivas em todos os estados. Existe um setor da vida nacional que se aproveita dos sentimentos mais arcaicos para expressar sua incompreensão completa com o que está em jogo na sociedade brasileira.
Qual o papel da imprensa na formação do imaginário sobre Lula nestes setores da sociedade?
Uma questão da democracia é que sempre será preciso tolerar um pouco isso. Tem um setor da imprensa nacional extremamente agressivo no que diz a respeito de seus oponentes porque se vê como perseguido, que gosta de se utilizar dessa figura, e que no fundo usa dos expedientes retóricos mais crassos possíveis. Nesse sentido, nada disso me impressiona muito. Até porque uma doença de um ex-presidente é tratada em qualquer lugar do mundo da maneira mais serena possível. Existe todo um imaginário em torno das doenças dos políticos, sempre há muita especulação porque se for alguma coisa grave o político sai de cena. Uma figura como o Lula, se sai da vida política, traz uma série de consequências muito importantes. Desde a época da finada União Soviética que não se sabia nada sobre a saúde dos políticos. Faz parte da esfera política essa questão sobre a saúde.
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