quinta-feira, 27 de novembro de 2008

CRIMES ESQUECIDOS


27/11/2008

Luiz Antonio Cintra

A pediatra marroquina Najat M’jid, relatora especial da ONU sobre a venda de crianças, prostituição e pornografia infantis, chega ao Brasil nos próximos dias para participar do 3º Congresso Mundial de Enfrentamento da Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. Realizado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), o governo brasileiro e ONGs ligadas ao tema, o congresso pretende criar um plano de ação em busca de soluções nacionais e internacionais para esse problema, que ano a ano se agrava mundo afora. O encontro ocorrerá no Rio de Janeiro, entre 25 e 28 de novembro, com a participação de representantes de 150 países, incluindo chefes de Estado e primeiras-damas. Antes de embarcar para o Brasil, Najat concedeu a seguinte entrevista por telefone à CartaCapital.

CartaCapital: Há alguma razão especial para o Brasil ser escolhido como sede do congresso internacional?

Najat M’jid: Não. A exploração sexual de crianças e de adolescentes existe em todas as regiões do mundo. É importante dizer que alguns países de fato criaram estratégias para enfrentar a questão, ainda que eu não esteja convencida de que existe algum país com uma estratégia de fato eficiente. Em relação ao Brasil, vale mencionar que o Congresso, algumas semanas atrás, aprovou uma legislação muito forte em relação à pornografia infantil. A lei é muito importante por enfrentar o material em circulação na internet, que é muito difícil de detectar, daí a importância de criar normas que criminalizem essas práticas de produção e divulgação de pornografia.

CC: A exploração tem crescido no mundo nos últimos anos, segundo a ONU. Quais fatores explicam essa tendência?

NM: É preciso muito cuidado em relação à dinâmica da exploração sexual infantil. Há muitos problemas a serem enfrentados, como o turismo sexual, a pornografia infantil na internet, que tem crescido muito e ganhou importância. Por conta das campanhas internacionais e de manifestações da sociedade civil em muitos países, a questão também tornou-se mais evidente. Em nações onde existem guerras civis e catástrofes naturais, como na África, várias famílias tiveram de se refugiar, o que significa dizer que estão mais vulneráveis. Também cresce o tráfico de seres humanos de modo geral, o que inclui o comércio de crianças relacionado à exploração sexual.

CC: Em quais países esse problema cresce mais?

NM: É difícil responder onde e de que forma a exploração sexual cresce mais rapidamente, inclusive porque temos um problema sério em relação às informações. Em nenhum país temos acesso a um sistema nacional de informação realmente confiável. Tomamos conhecimento de alguns casos por meio das ONGs, alguns apresentados pela mídia, outros pela Justiça ou pela polícia, mas é bem difícil termos uma perspectiva ampla do problema. É visível, no entanto, que em muitos países o problema tem crescido nos últimos anos.

CC: É uma questão superada nos países desenvolvidos?

NM: O problema da exploração sexual infantil não tem a ver apenas com os países de baixa renda, também existe nos desenvolvidos. O papel dos países desenvolvidos é muito importante, porque eles podem ter uma rede conjunta de atuação para enfrentar esse problema e proteger as crianças, ao mesmo tempo que ajudam os de menor renda a criar suas próprias estratégias. A pobreza é um dos fatores da exploração infantil, não o único. Quando se fala de pobreza, não se trata apenas do nível de renda da família, mas também em relação ao acesso aos serviços sociais, como educação, saúde, água, saneamento básico. Muitas crianças se tornam fonte de renda de suas famílias por conta da ausência desses serviços. As crianças envolvidas em guerras ou com o mercado de trabalho são mais vulneráveis. Na Libéria ou em Serra Leoa, por exemplo, será preciso reconstruir todo o sistema de assistência social, e em muitos casos as crianças são a esperança dessas famílias. Outro ponto importante é o desenvolvimento, em nível internacional, da indústria do sexo e do tráfico de crianças e mulheres. Se não enfrentarmos todos esses aspectos ao mesmo tempo, será impossível dizer que vamos prevenir o tráfico e a exploração.

CC: No Nordeste brasileiro, existem muitos casos de exploração infantil envolvendo turistas de países europeus. Como enfrentar a questão?

NM: Em muitos países em que o turismo sexual ocorre, a primeira pergunta a ser feita é por que os turistas vão a esses locais. Eles vão porque existe oferta. Trata-se, de fato, de uma indústria, com oferta e demanda. A demanda vem dos países ricos, mas eles vão aos lugares onde as crianças não têm acesso fácil aos serviços sociais ou são o esteio da família. E vão aos países em que eles têm certeza de que a lei não protege os menores nem criminaliza a exploração sexual. Onde têm convicção de que não vão parar na Justiça, onde a implementação da legislação não é muito eficiente por causa da corrupção, por exemplo. É por esse motivo que chamamos a atenção de toda a indústria do turismo para aderir a um código de conduta, o que é muito importante. Ao mesmo tempo, é preciso controlar as fronteiras mais críticas. Em terceiro lugar, é preciso proteger as crianças, garantindo a elas o acesso aos serviços sociais. As campanhas públicas contra a exploração também são importantes, bem como dar a elas garantias de sigilo em caso de denúncias. Finalmente, esses países têm de criar leis extraterritoriais, pelas quais os criminosos poderão ser processados em outros países.

CC: De que forma a crise econômica poderá afetar esse cenário?

NM: Quando surge uma crise financeira, o problema é que o orçamento alocado em todos os serviços sociais em geral é reduzido. Receio que a crise afete os programas de cooperação e assistência aos países mais pobres. Muitas famílias ficarão mais pobres e terão mais dificuldade de garantir a educação e a saúde de suas crianças, muitos pais serão obrigados a deixar seus lares em busca de emprego e a imigração ilegal tende a crescer. Sabemos que os traficantes e exploradores usam essa vulnerabilidade para se tornar mais poderosos, oferecendo seus “serviços” às famílias, por meio de contratos ilegais, prometendo um futuro melhor ou um visto de residência.

CC: Há como controlar os sites dedicados a publicar imagens relacionadas à pedofilia ou à exploração sexual das crianças?

NM: Esse é o grande desafio. É muito difícil encontrar quem está por trás desses sites. Recentemente, a Espanha, em parceria com o Brasil, criou uma política muito eficiente para enfrentar a “cibercriminalidade”. Precisamos capacitar a polícia e os operadores do Direito para que saibam usar as novas tecnologias de informação. As empresas que atuam na internet terão de adotar um código de conduta. Também é preciso controlar o acesso à internet, porque em muitos países há acesso fácil a cibercafés. É hora de criarmos parcerias fortes com as grandes empresas da internet, que até aqui não tiveram grande envolvimento com o tema.

CC: O que se pode esperar do documento final do congresso?

NM: Espero que não tenhamos apenas recomendações, como em Estocolmo e Yokohama, mas também compromissos firmados entre os governos e as demais partes. É preciso um plano concreto a respeito do que será feito, quando e de que modo, com um cronograma dos objetivos a serem alcançados. E também precisamos criar um mecanismo para monitorar a implementação das políticas, não podemos esperar cinco anos até que isso seja feito. É preciso criar um marco legal contra todos os exploradores, mas também para proteger as crianças.
CartaCapital.

Nenhum comentário: