quinta-feira, 27 de novembro de 2008

MIRIAM LEITÃO NÃO VENDE CARRO USADO

27 DE NOVEMBRO DE 2008

O leitor de O Globo, que pensa em vender seu carro usado para comprar um novo, está em apuros. A se guiar pelas informações que obtém no caderno de economia do jornal, ele não sabe se deve abandonar seus planos ou se pode procurar o veículo que deseja e negociar com calma. É uma decisão a ser tomada de acordo com a página lida.

Por Gilson Caroni Filho, na Agência Carta Maior


Afinal, deve dar crédito aos vaticínios da veterana analista de economia, Miriam Leitão, para quem vivemos na véspera do apocalipse, graças à conjugação da crise internacional com a falta de prudência do governo? Ou confiar que, passado um momento de instabilidade, a tendência da economia brasileira é se normalizar com as medidas que vêm sendo tomadas pelo Banco Central de abrir linhas para o financiamento do comércio exterior e de flexibilização do compulsório. Meirelles ou Miriam, eis a questão? Mantega ou Gustavo Franco, qual o norte a ser seguido?

Estamos na iminência de um brutal contingenciamento de crédito ou, como assegura Fábio Barbosa, presidente da Febraban “o mercado está pouco a pouco retornando à normalidade"? No Globo essa é uma questão que assume dimensões esquizofrênicas. A leitura da edição de domingo, 23 de novembro, é fundamental para entendermos o que anda acontecendo na imprensa nativa. Sintoma de tempos em que a análise dos fatos se confunde com o desejo das fontes e dos especialistas de plantão.

Na página 28, em sua coluna, Miriam pontifica: “as locadoras brasileiras estão recusando terceirização de frota por que não conseguem comprar carros novos, nem repassar os velhos. Locadoras funcionam assim: usam sempre carros novos e revendem os já usados, às vezes para as próprias montadoras, mas esse giro agora está difícil, por dificuldades de captação de financiamento numa ponta, e falta de consumidor final na outra ponta do negócio". Pronto, é melhor o leitor adiar o sonho de adquirir um novo veículo. O motor do setor automotivo engasgou por falta de ajuste de custos.

Na página seguinte, em matéria assinada pelo jornalista Bruno Rosa, intitulada "Itens usados em alta", o mesmo leitor fica sabendo que "a crise já fez o consumidor brasileiro mudar de hábitos. As roupas novas deram lugar à remodelagem de peças antigas esquecidas no armário. O dinheiro aplicado no banco foi resgatado para adquirir um carro usado, que já está vendendo mais que os similares zero quilômetro". Boas novas, o sonho não morreu. Seu carro novo é uma possibilidade real.

O que explica que, na mesma edição, encontremos informações tão desencontradas? A resposta faria corar qualquer estudante de jornalismo. A colunista confiou na fonte e descuidou da apuração. Relegou a segundo plano a checagem do que noticiava. Produziu uma ficção econômica, permitindo que a fonte produzisse o fato.

Bruno, ao contrário da experiente jornalista, foi a campo e trouxe a notícia que desmentia a coluna. No meio disso tudo, um editor dormia em berço esplêndido, deixando claro que nem O Globo lê O Globo. Se o jornalismo deve ser o resultado de uma prática honesta, não há como deixar de perguntar se o nosso hipotético leitor compraria um carro usado de Miriam Leitão.

A resposta deve estar na sua preferência por páginas pares ou ímpares. Será esse o novo critério de noticiabilidade? A velha prática do par ou ímpar, dependendo da aposta da fonte que pauta? A que ponto chegou o "rigor jornalístico"! E pensar que é esse campo, por sua centralidade política, que formata agendas e tenta, desesperadamente, ser fiel ao imaginário da classe média. As sucessivas tentativas infrutíferas demonstram o motivo do fracasso: é na grande imprensa que a falta de crédito tem-se mostrado mais acentuada. Falta liquidez ao pântano.

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