28/08/2009
A sucessão de regimes repressivos na América Latina ainda não foi tratada de forma sistemática pelos regimes democráticos vigentes. É perceptível todo um manto ideológico que se ocupa em promover um trabalho persistente de desmoralização dos ideais da esquerda, com a tentativa de anulação do valor humano e político daqueles que resistiram e, por isso, foram perseguidos, mortos ou torturados.
Há uma ideologização direitista da memória que, na verdade, impede um pacto de conciliação, porque o impõe a partir dos valores que são aceitos exclusivamente pelos que eram beneficiários do autoritarismo. A memória imposta quer cristalizar os valores da dominação do Estado de Exceção.
Isso ocorre também na narrativa que justifica o Golpe de 1964, como simples reação ao um suposto estado de “caos e desgoverno político” vigente, ameaçador da propriedade privada, das liberdades públicas, dos valores da família, sintetizando tudo no combate à “ameaça comunista”. Nesta visão, a história somente pode ser contada de uma única maneira: a de que o regime ditatorial foi uma etapa de paz civil e avanços econômicos onde se localiza as bases da ordem e da democracia atual. Tenta fixar-se um pacto de silêncio, sob a falácia de que não se deve olhar para o passado e abrir as suas feridas. Há um uso político da memória para coincidí-la com a hermenêutica dos dominadores da época e isto, em verdade, constitui-se em uma não-memória, pois impede desvelar o tipo de ordem jurídica e política que instrumentalizou os homens para transformá-los em máquinas de destruição dos seus semelhantes, fazendos-os retroceder ao estágio de uma sociedade sem contrato e transformação de monopólio estatal do uso legítimo da força (conquista da modernidade democrática) para uma repressão instrumental de dominação pela coerção. A história dominante, já dizia Walter Benjamin[1], fecha-se em uma lógica linear que pisoteia os perseguidos, que os ignora sob o cortejo triunfante do progresso.
É preciso uma ação política que permita emergir a dor e as injustiças esquecidas. A experiência traumática só se supera a partir de um exercício do luto, que como lembra Paul Ricoeur[2], é o mesmo exercício da memória: paciente, afetivo, destemido e perigoso, pois revela que nossa sociedade hoje se estrutura sobre os cadáveres dos “esquecidos”. Somente no trabalho de rememoração que podemos construir uma identidade que tenha lugar na história e não uma que possa ser fabricada por qualquer instante ou ser escolhida a esmo a partir de impulsos superficiais. Trata-se, de fato, de um dever de memória, um dever que exige disposição e vontade: uma vontade política imprescindível para que haja um abrangente apaziguamento social e também por uma questão de justiça às vítimas que caíram pelo caminho[3].
Para atingir estes objetivos, muitas nações utilizam-se as políticas de Justiça de Transição, a qual um dos eixos é o de uma intervenção educativa desde e para os direitos humanos, bem como a criação de memoriais. O Governo Lula acaba de lançar o “Memórias Reveladas” e o “Memorial da Anistia Política”, promovidos pela Casa Civil, Secretaria Especial de Direitos Humanos e Ministério da Justiça, este último em parceria com a UFMG. Um, retratando os arquivos oficiais da ditadura, e o outro o arquivo com as histórias relatadas por parte dos perseguidos políticos. São medidas capazes de ressignificar a história do país e aumentar a consciência moral sobre o abuso do passado, com o fim de construir e invocar a idéia da “não-repetição”.
Tarso Genro é ministro da Justiça
Paulo Abrão é presidente da Comissão de Anistia
[1] BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: Magia e técnica, arte e política – ensaios sobre literatura e história da cultura – Obras escolhidas I. 7.ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
[2] RICOEUR, Paul. História, memória e esquecimento. Campinas: Unicamp, 2008.
[3] MATE, Reyes. Memórias de Auschwitz – atualidade e política. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2005.
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