26 de Agosto de 2009
Na Avenida Amazonas, em Quito, a poucos passos do hotel onde se hospedava, encontramos - como qualquer transeunte na noite do domingo, 9 de agosto - Eduardo Galeano, que havia chegado à capital equatoriana para assistir, como convidado especial, ao ato de posse do presidente Rafael Correa, cerimônia realizada em 10 de agosto. O paramos e nos identificamos para solicitar uma entrevista, à qual ele aceitou com gosto.
Por Fernando Arellano Ortiz
"Agora não pode ser, mas nos vejamos amanhã, depois da posse de Correa", nos disse o autor de "As veias abertas da América Latina" e de "Espelhos".
Como sempre, Galeano respondeu às perguntas com ironia e não pouco humor, é por isso que suas reflexões saem do comum. Como um latino-americanista, o escritor uruguaio faz uma análise peculiar da realidade sócio-política em nosso hemisfério. Confira abaixo e comente.
"Tempo aberto de esperança"
Após 200 anos de emancipação na América Latina, pode-se falar de uma reconfiguração do sujeito político na região, levando em conta os avanços políticos que se traduzem em governos progressistas e de esquerda em vários países latino-americanos?
Sim, há um tempo aberto de esperança, uma espécie de renascimento que é digno de comemoração em países que não terminaram de se tornar independentes, apenas começaram um pouquinho (a conquistar sua independência). A independência é uma tarefa pendente para quase toda a América Latina.
Com toda a erupção social que tem ocorrido no hemisfério, pode-se assinalar que há uma ênfase da identidade cultural da América Latina?
Sim, eu creio que sim e isso passa, certamente, pelas reformas constitucionais. Me ofendeu a inteligência, além de outras coisas que eu senti, o horror do golpe de Estado em Honduras, que invocou como causa o pecado cometido por um presidente que quis consultar o povo sobre a possibilidade de reformar a Constituição, porque o que queria Zelaya era consultar sobre a consulta, nem sequer era uma reforma direta.
Supondo que fosse uma reforma constitucional, que seja bem-vinda, porque as constituições não são eternas e para que os países possam ser plenamente realizados têm que reformá-las. E eu me pergunto: o que aconteceria aos Estados Unidos se seus habitantes continuassem obedecendo à sua primeira Constituição? A primeira Constituição dos Estados Unidos afirmava que um negro equivalia a três quintos de uma pessoa. Obama não poderia ser presidente porque nenhum país pode ter um governante que seja três quintos de uma pessoa.
Você reivindica a figura do presidente Barack Obama por sua condição racial, mas o fato de ele manter ou expandir a presença norte-americana mediante bases militares na América Latina - como está acontecendo agora na Colômbia, com a instalação de sete plataformas de controle e espionagem - não desmente as verdadeiras intenções deste governante do Partido Democrático, e simplesmente segue ao pé da letra os planos expansionistas e de ameaça de uma potência hegemônica como os EUA?
O que acontece é que Obama até agora não definiu muito bem o que quer fazer em relação à América Latina, às nossas relações - tradicionalmente duvidosas -, ou a outras questões. Em algumas áreas, há um desejo de mudança expresso, por exemplo, no que tem a ver com o sistema de saúde que é escandaloso nos Estados Unidos. Você quebra a perna e paga até o fim dos dias uma dívida por esse acidente. Mas, em outras áreas não. Ele continua a falar de "nossa líderança", "nosso estilo de vida", em uma linguagem muito semelhante à de seus anteriores.
A mim me parece muito positivo que um país tão racista quanto aquele - e com episódios de racismo colossais, descomunais e escandalosos, ocorridos há 15 minutos em termos histórico s- tenha um presidente seminegro. Em 1942, ou seja, a meio século, o Pentágono proibiu as transfusões de sangue negro e o diretor da Cruz Vermelha se demitiu ou foi dispensado porque se recusou a aceitar a ordem, dizendo que todo o sangue era vermelho e era absurdo falar de sangue negro. E ele era negro, foi um grande cientista, que tornou possível a aplicação do plasma em escala universal, Charles Drew.
Então um país que fez um disparate como proibir o sangue negro ter Obama presidente é um avanço. Mas, por outro lado, até agora não vejo nenhuma mudança substancial, aí está por exemplo a forma como seu governo enfrentou a crise financeira. Pobrezinho, eu não queria estar em seu lugar, porém a verdade é que terminaram recompensando os especuladores, os piratas de Wall Strett que são muito mais perigosos que os da Somália, porque estes assaltam nada mais que barquinhos na costa, ao passo que os da Bolsa de Nova York assaltam o mundo.
Eles foram recompensados; eu queria começar uma campanha, ao princípio, comovido pela crise dos banqueiros, com o slogan: "adote um banqueiro", mas abandonei essa ideia porque vi que o Estado assumiu essa tarefa. (Risos).
E o mesmo com a América Latina, como que não tem ainda muito claro o que fazer. Eles têm mais de um século, nos Estados Unidos, dedicados à fabricação de ditaduras militares na América Latina. Então, na hora de defender uma democracia como no caso de Honduras, ante um claríssimo golpe de Estado, vacilam, têm respostas ambíguas, não sabem o que fazer, porque eles não têm prática, lhes falta experiência, estão há mais de um século trabalhando na direção oposta.
Então compreendo que a tarefa não é fácil. No caso de bases militares na Colômbia não só ofende a dignidade coletiva da América Latina, mas também a inteligência de qualquer um. Porque se dizer que sua função será o de combate à droga, por favor, até quando!?
Quase toda a heroína consumida no mundo vem do Afeganistão, quase toda, dados oficiais das Nações Unidas que qualquer pessoa pode ver na internet. E o Afeganistão é um país ocupado pelos Estados Unidos e, como se sabe, os países ocupantes têm a responsabilidade pelo que acontece nos países ocupados, por conseguinte, têm algo a ver com este narcotráfico em uma escala universal e são dignos herdeiros da rainha Vitória que era traficante de drogas.
"Não se pode ser tão hipócrita"
A rainha britânica introduzido por todos os meios, no século XIX, o na China, através de comerciantes da Inglaterra e Estados Unidos...
Sim, a famosa rainha Vitória da Inglaterra impôs o ópio na China mais ao largo de duas guerras de 30 anos, matando uma quantidade imensa de chineses, porque o império chinês se recusou a aceitar essa substância dentro de suas fronteiras. E o ópio é o pai da heroína e da morfina, exatamente. Então aos chineses custou tudo, porque a China era uma grande potência que poderiam ter competido com a Inglaterra no início da revolução industrial, era a oficina do mundo, e a guerra do ópio os arrasou, os transformou em uma bagunça. Daí entraram os japoneses em quinze minutos.
Victoria era uma rainha narcotraficante e os Estados Unidos que tanto usam a droga como um álibi para justificar suas invasões militares, porque é isso, são dignos herdeiros desta feia tradição. Acho que é hora de despertarmos um pouquinho, porque não se pode ser tão hipócrita. Se vão ser hipócritas, que o sejam com mais cuidado. Na América Latina temos bons professores de hipocrisia, se querem podemos em um acordo de ajuda tecnológica mútua fornecer alguns hipócritas próprios.
Há exatamente nove anos, você disse em uma entrevista em Bogotá, concedida a este repórter, a seguinte frase: "Deus salve o a Colômbia do Plano Colômbia." Qual é agora a sua reflexão sobre este país andino que enfrenta um governo autoritário entregue aos interesses dos Estados Unidos, com uma alarmante situação de violação dos direitos humanos e um conflito interno que segue sangrando?
Além de problemas extremamente sérios que foram se intensificando ao longo do tempo. Eu não sei, te digo, não sou alguém para dar conselhos para a Colômbia ou aos colombianos, eu sempre fui contra esse mau hábito de alguns que se sentem capazes de dizer o que cada país deve fazer. Eu nunca cometi esse pecado imperdoável e eu não vou cometer agora com a Colômbia. Só pode-se dizer que espero que os colombianos encontrem o seu caminho, oxalá o encontrem. Ninguém pode impor de fora, nem pela esquerda nem pela direita, nem pelo centro, ou qualquer coisa. Serão os colombianos que vão encontrá-lo.
E eu posso dizer que dou testemunho. Se há um tribunal mundial que vá julgar a Colômbianpelo que se diz da Colômbia - que é violenta, narcotraficante, condenada à violência perpétua -, eu vou dar o testemunho de que não, de que este é um país carinhoso, alegre e que merece melhor destino.
Reivindicando a memória de Raul Sendic
Muitos anos atrás, mesmo há quatro décadas, havia um personagem eme Montevidéu, que se reuniu com um jovem artista chamado Eduardo Hughes Galeano com a finalidade de dar idéias para o desenvolvimento de suas caricaturas, chamado Raúl Sendic, o inspirados da Frente Ampla no Uruguai ...
E líder guerrilheiro dos Tupamaros, embora na época ainda não fosse. É verdade, quando eu era criança, quase quatorze anos, e comecei a desenhar caricaturas, ele ficava olhando e me dava idéias, era um homem bem mais velho que eu, com alguma experiência, e ainda não era o que mais tarde se tornou: o fundador, organizador e líder dos Tupamaros.
Eu me lembro que ele disse a Dom Emilio Frugoni que era então o chefe do Partido Socialista e editor do semanário onde eu publicava caricaturas de início: "Este vai ser ou presidente ou um grande delinquente." Foi uma boa profecia e acabei sendo um grande delinquente..." (risos).
O fato de hoje a Frente Ampla governar o Uruguai e um ex-guerrilheiro como Pepe Mujica ter uma chance de ganhar a eleição presidencial é uma reivindicação à memória de Sendic?
Sim, e de todos aqueles que participaram de uma luta de muito tempo para quebrar o monopólio de dois, o bipólio exercido pelo Partido Colorado e o Partido Nacional durante a maior parte da vida independente do país. A Frente Ampla irrompeu há muito pouco no cenário político nacional e me parece muito positivo que esteja governando agora, apesar de que eu não concordo com tudo o que faz e acho que não faz tudo o que deveria.
Mas isso não tem nada a fazer, porque afinal a vitória da Frente Ampla também foi uma vitória da diversidade política que eu acredito que é o fundamento da democracia. Na frente coexistem vários partidos e movimentos diferentes, unidos por uma causa comum, naturalmente, mas com suas diversidades e diferenças, e eu as reclamar, para mim isso é fundamental.
O que representa para você como Uruguai o fato de que um líder emblemático da esquerda, como Pepe Mujica, ex-guerrilheiro tupamaro, tenha amplas oportunidades para chegar à presidência do seu país?
Tem alguma chance, não vai ser fácil, vamos ver o que acontece, mas eu acho que é um processo de recuperação. As pessoas se reconhecem em Pepe Mujica porque ele é radicalmente diferente de nossos políticos tradicionais, em sua linguagem, mesmo em seu aspecto e tudo, embora ele tenha tentado se vestir como um fino cavalheiro não vão bem, e ele exprime muito bem uma necessidade e uma vontade popular de mudança. Eu acho que seria bom se ele chegasse à Presidência, vamos ver se isso acontece ou não.
Em qualquer caso, o drama do Uruguai como o do Equador, é claro - um país no qual estamos falando agora - é que está sangrando sua população jovem. Ou seja, a nossa é uma pátria peregrina; Em seu discurso de posse, o presidente Rafael Correa falou dos exílados da pobreza e a verdade é que há uma enorme quantidade de uruguaios, muito mais do que eles dizem, porque não são oficiais os números, mas não inferior a 700 mil, 800 mil uruguaios em uma população pequeníssima - porque no Uruguai somos 3 milhões e meio -, é então uma quantidade enorme de pessoas fora.
Todos ou quase todos, jovens. Então ficaram os velhos ou as pessoas que já cumpriram esta etapa da vida, na qual se quer que tudo mude, para se resignar a não mudar nada ou que se mude muito pouca coisa.
Depois de seus famosos livros "As Veias Abertas da América Latina", publicado em 1970, e "Espelhos", publicado em 2008 - que contam as histórias de infâmia, o primeiro sobre nosso continente e o outro sobre a maior parte do mundo - há espaço para continuar acreditando na utopia?
"Espelhos" o que faz é recuperar a história universal em todas as suas dimensões, seus horrores, mas também em suas festas, é muito diferente de "As Veias Abertas da América Latina", que foi o começo de um caminho. As "Veias Abertas" é um ensaio sobre economia política, escrito em uma linguagem não muito tradicional no gênero, por isso ele perdeu o concurso da Casa das Américas, porque o júri não o considerou seriamente.
Foi um momento em que a esquerda só acreditava que o sério era o chato, e como o livro não era chato, não era sério, mas é um livro muito concentrado na história econômica e política e nas barbaridades que essa história significava para nós, como nos deformou, estrangulou.
Em vez disso, "Espelhos" tentar acolher todo o mundo, as noites e os dias, as luzes e as sombras, são todas histórias incrivelmente breves, e também há uma diferença de estilo. As Veias Abertas tem uma estrutura tradicional, e a partir daí eu tentei encontrar uma linguagem minha, própria, que é a do relato curto, pecinhas coloridas para armar grandes mosaicos, um estilo como a dos muralistas, e cada história é uma pequena pedrinha que incorpora uma cor, e um dos últimos relatos de "Espelhos" evoca uma memória da minha infância e é verdadeiro.
É que quando eu era pequeno eu pensava que tudo que estava perdido na terra ia parar na lua, estava convencida disso e fiquei surpreso quando chegaram os astronautas na lua, porque não encontraram nem promessas quebradas, nem ilusões perdidas, esperanças frustradas, e então eu me perguntava: se não estão na lua, onde estão? Será que estão aqui na terra, nos esperando?
Fonte: Rebelión
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