segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Crise do Senado, ética e moralismo inconsistente

24 de Agosto de 2009

Na crise do Senado, "cabe a pergunta: quem interessa confundir moral e ética e a quem interessa separar o campo da ética do campo da política?" Quem indaga é Maria Valéria Duarte de Souza.* Professora e pesquisadora da PUC-Brasília na área de Ética e Bioética, ela questiona: "O que assistimos foi uma apropriação do discurso que recorre à ética, mas que se limita a um moralismo inconsistente". Veja a ínegra do artigo A moral, a ética e a política.

Os recentes fatos que, segundo a mídia especializada caracterizaram uma crise envolvendo o Senado da República, apresentam algumas características semelhantes a outras “crises” que também já afetaram outras casas legislativas. Uma dessas características é a recorrente referência à moral e à ética. A crise daquela casa legislativa seria de ordem moral, ou como afirmam muitos, de ordem ética, em razão de estarem, ambas, a moral e a ética, ausentes da política e dos políticos. Nessa lógica, a moral e a ética estão separadas do campo da política, que, dessa forma, é desqualificada, e até negada enquanto espaço onde os diferentes interesses da sociedade podem se manifestar.

Mas, se partirmos do princípio de que a chamada crise do Senado é de ordem moral e ética, imediatamente nos é colocado o problema de definir o que se entende por “moral” e por “ética”.

Nos discursos que clamavam pelo resgate da ética, ou no acompanhamento feito por diversos setores midiáticos que seguiam o mesmo tom, invariavelmente a moral e a ética apareciam como sinônimos; falava-se da moral como se fosse ética ou como se a moral fosse um dos principais atributos da ética. Nessa linha de interpretação, ser ético seria comportar-se de acordo com a moral, ou seja, de acordo com um sistema de valores que diz, em uma sociedade, o que é certo e o que é errado, não importando, saber quem diz o que é certo e o que é errado e nem porque o “certo” é considerado certo e o “errado” é considerado errado. De fato, tais questionamentos, dentro de uma concepção que confunde moral e ética, não têm razão de ser.

Porém, levando-se em conta que vivemos em uma sociedade profundamente desigual, permeada por interesses conflitantes, a utilização desses dois termos como se fossem sinônimos não está isenta de implicações ideológicas e políticas. Não se trata de uma associação inocente, sem maiores conseqüências.

Assim, cabe a pergunta: quem interessa confundir moral e ética e a quem interessa separar o campo da ética do campo da política?

Recorrendo aqui ao pensamento do professor Adolfo Sanchez Vazquez, internacionalmente conhecido por seus estudos e análises que colocam às claras os significados dos dois termos, vemos que a moral, é um conjunto de valores socialmente estabelecidos e que dizem o que é considerado certo e o que se toma como errado ou condenável em uma sociedade. A ética -- por sua vez tomando por objeto a moral, ou seja, esse conjunto de valores -- irá dizer quais os interesses, as conseqüências, as implicações de determinados valores morais. Ou seja, a Ética não diz o que é certo e o que é errado, mas busca as razões pelas quais, em determinado momento histórico, um ato ou comportamento é considerado certo, louvável, ou ao contrário, errado ou deplorável. A partir desse pressuposto, a chamada crise do Senado seria de caráter ético se, a partir de determinadas referências morais, ou seja, de determinados valores, como honestidade, probidade, transparência, fosse realizada a detalhada e escrupulosa verificação de quem, naquela casa legislativa, feriu ou fere valores desejáveis para a conduta de um representante do povo. Esta “varredura ética” - implicaria, ao apontar as reais motivações e as conseqüências dos atos de cada parlamentar, dirigente ou funcionário, e se os valores morais formalmente defendidos estavam sendo, de fato, exercidos em sua plenitude. Ao que parece, se tal empreendimento ético fosse de fato realizado, bem poucos seriam poupados de uma condenação ética, inclusive muitos dos que, com o discurso da moral, apontam supostos desvios éticos de alguns de seus pares. Chamamos de discurso da moral, mas, de fato são discursos que se limitam ao moralismo, ou seja, uma “moral de ocasião”, pois, de fato, as alegações e acusações mútuas não realizam um questionamento radical sobre as posturas dos membros da Casa como um todo. Ao contrário, todas as mazelas que, há muito já existiam como práticas corriqueiras na instituição são isoladas em um único personagem, ignorando e poupando outros sobre os quais pairavam várias acusações, algumas inclusive, já comprovadas e que assumiram muitas vezes o papel de acusadores, o que é surpreendente, considerando-se a premissa de uma “crise ética”.

Mas, esse fato comprova claramente a ausência de uma preocupação ética nesse cenário. Seria impossível, do ponto de vista de uma crise radicalmente ética, que tais acusadores fossem os mesmos cujas práticas, sob vários aspectos e com muitos agravantes, reproduzem o comportamento que criticam.

Fosse realmente a questão ética o motor da crise, a preocupação maior dos interessados em garantir a predominância dos valores realmente caros à vida política brasileira deveria ser, de imediato, a explicitação dessa gritante contradição.
Infelizmente, isto não aconteceu. Um grande número de parlamentares, inclusive os que aparecem constantemente incensados pela mídia por sua “postura ética” calaram-se diante de tal absurdo ético. Também grande parte dos integrantes da mídia, com raras exceções, confundiu a sociedade ao passar como análise imparcial e isenta, pontos de vista que, a partir de um olhar mais atendo, deixavam transparecer, no mínimo, apenas juízos de valor, o que já compromete a verdade a ser veiculada.

De fato, o que assistimos foi uma apropriação do discurso que recorre à ética, mas que se limita a um moralismo inconsistente e que, por isso, torna-se, não o questionador, o indagador, mas o justificador da velha regra de “dois pesos e duas medidas”. A partir dessa constatação podemos afirmar que, mesmo que a ética tenha sido colocada no centro das análises e argumentações, a crise é política na medida em que um comportamento considerado moralmente criticável é personificado, individualizado, de acordo com as conveniências e interesses políticos.

É importante ressaltar que apontar o conteúdo político da crise do Senado não significa banalizar os aspectos éticos, buscá-los de maneira radical, superando a superficialidade de análises revestidas de um discurso ético, quando na verdade a preocupação ética inexiste, mas que se tornou bastante útil aos articuladores da crise que buscaram conferir – a partir do recurso à ética, legitimidade as suas ações e argumentações. Isto porque a recorrente desqualificação do espaço político torna o discurso de conteúdo moralista, mas de apelo ético portador de grande impacto no conjunto de uma sociedade que ainda desconhece o valor da política para a democracia, impossibilitada que foi durante duas décadas de exercer plenamente os seus direitos políticos.

Assim, o apelo ético – ou moral, uma vez que nesse contexto os dois termos têm sido indiscriminadamente utilizados – é extremamente funcional para que seja dada a visibilidade apenas a determinados fatos e personagens, tomados de forma individualizada e isolada, enquanto outros permanecem cuidadosamente protegidos sob o véu de um conveniente esquecimento.

De igual modo, a negação de seu conteúdo político, o que soa no mínimo estranho em uma Casa política, tem por objetivo esvaziar de sentido o campo da política, tornando-a a antítese de uma postura ética ( questionadora, indagadora, investigativa).

Obviamente, a negação do campo da política como espaço legítimo de explicitação dos conflitos e contradições da sociedade, tem por objetivo afastar o povo da vida política brasileira. Desqualificar a política, tornando-a sinônimo de vileza, desonestidade e ausência de moral, a transforma em espaço a ser repudiado, ou ignorado. Dessa forma, retira-se a política da vida social inviabilizando-a como espaço de participação do povo em suas lutas, excluindo-o, assim, do protagonismo político. Isolar a ética da política como se fossem matérias de diferentes naturezas, significa mistificar a ética, afastando-a da realidade, dos vários interesses que a configuram, e desqualificar a política, enquanto expressão da vida social.

A moral a ética e a política, são de fato, indissociáveis: a análise e as indagações e questionamentos que a ética faz a respeito de valores e condutas de caráter moral explicitam os condicionantes, as motivações e interesses de quem praticam, defende ou recrimina tais atos. Tal explicitação implica uma tomada de posição, que é necessariamente política. Ou seja, não há neutralidade possível. Em uma sociedade de classes, a concepção de uma ética neutra é tão despropositada como a idéia de uma política sem conflito. Os que acreditam em tal possibilidade se encontram entre a ingenuidade dos que uma sociedade idealizada e sem contradições e a astúcia dos que sabem que, o discurso da neutralidade esconde, de fato, interesses, muitas vezes, inconfessáveis aos quais estão vinculados.

* Mestre em Sociologia, professora universitária e pesquisadora na área de Ética e Bioética.
Fonte:Portal Vermelho.

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